Ofensiva do capital internacional sobre as terras na América Latina
23/04/2012
- Opinión
O mundo se depara com importantes desafios para garantir as condições de vida do planeta, num futuro mais ou menos distante conforme a intensidade e velocidade da evolução do processo de aquecimento global. Segundo a comunidade científica internacional os riscos para a segurança alimentar subjacentes ao processo de mudanças climáticas são muito fortes. Neste caso, biodiversidade, terra e água, assumem significados cada vez mais estratégicos para o futuro da humanidade.
Países da América Latina, a exemplo do Brasil, agraciados pela natureza com a abundância desses recursos, (afora a riqueza mineral), têm o dever de protegê-los em benefício das suas gerações presentes e futuras e, por suposto, para ações solidárias, via comércio, ou não, com o resto do mundo.
A relevância estratégica desses recursos recomenda mesmo que as políticas correspondentes de preservação, acesso e utilização devam integrar os objetos da segurança nacional das nações.
Nesse contexto, os instrumentos regulatórios sobre a posse e o uso da terra na América Latina deveriam refletir essa visão contemporânea que incorpora, portanto, a sua dimensão geopolítica.
Afora a democratização do acesso à terra e a opção por um novo modelo agrícola centrado na busca da soberania alimentar com o protagonismo da produção agroecológica pelos camponeses, nos parece irrenunciável e inadiável a imposição de controle rigorosos à propriedade fundiária por estrangeiros em nossos países, o que não ocorre notadamente no Brasil e na Argentina por herança do neoliberalismo.
Afinal, além de envolver questão imanente ao exercício da soberania sobre os nossos territórios, o conteúdo desse tema passou a adquirir apelo na agenda política global até por envolver impulsos neocoloniais.
Durante toda a década de 1990 o Bird assumiu uma posição protagonista na elaboração e na implementação de políticas agrárias, centralizadas inteiramente na promoção do livre mercado de terras. Com esse propósito o Bird promoveu
“...o estímulo à mercantilização total do acesso à terra rural, a ser viabilizada por mudanças institucionais e legais, com o objetivo de elevar a produtividade da terra, favorecer o livre fluxo da força de trabalho no campo, atrair o capital privado para a economia rural e potencializar a integração subordinada de parcelas específicas do campesinato pobre ao regime de acumulação comandado pela burguesia agroindustrial-financeira”.(1)
E, numa clara estratégia de facilitar ao capital externo o acesso às terras rurais, o Bird não hesitou em influenciar e pressionar o governos nacionais, cooptados pela agenda neoliberal, a promover mudanças no plano político-adminstrativo, jurídico e tributário. Mudanças no aparato institucional voltadas para “...expandir e acelerar as relações de arrendamento e compra/venda de terras rurais” (Pereira, p.22).
A partir da crise do capitalismo internacional, em 2008, a ofensiva do grande capital sobre as terras rurais, em todas as partes do planeta, se tornou ainda mais forte e explícita.
A própria FAO tem alertado para os graves desdobramentos do processo, em curso, de ‘tomada de terras’ nos países do Sul, fruto de ações especulativas, ou não, do capital externo, com forte presença do capital financeiro. Tal processo ganhou fôlego a partir da crise econômica de 2008 nos países do Norte como opção, em particular, à crise dos derivativos.
Essa realidade é retratada nas precisas e alarmantes palavras da assessora da Via Campesina Camila Montecinos:
“Após as últimas crises econômicas, os grandes capitais especulativos não tinham onde investir seu dinheiro e perceberam que investir na compra de terras para produzir comida era um grande negócio. Estão comprando e exigindo que lhes sejam entregues terras da mesma forma como são entregues as concessões mineiras. (...) Isso está acontecendo em todas as partes e, na América Latina, os países mais atingidos são a Argentina e no Brasil. (...) Esses capitais especulativos se apoderam de terras que atualmente estão em mãos camponesas ou do Estado”.
E, ela conclui de forma enfática: “Dessa forma, hoje, há uma intenção consciente e sistemática [do grande capital internacional] de apoderar-se da alimentação, de controlar o comércio, a produção e os territórios”.(2)
Essa ofensiva do grande capital tem sido possível graças a uma conjunção de fatores, como: (i) os efeitos das recorrentes posições de desequilíbrio da oferta alimentar e agrícola, em geral, por conta das frequentes quebras de safras por fenômenos climáticos gradativamente mais severos; (ii) a expansão dos agrocombustíveis; e (iii) a aposta na atratividade econômica dos mercados voluntários e institucionalizados de carbono; neste caso, em gestação nas negociações no âmbito da COP do Clima.
Cabe, aqui, abrir um parêntese para ressaltar que o comércio mundial de créditos de carbono, uma verdadeira mercantilização do ar, serve de instrumento do grande capital para controlar territórios e se adonar das riquezas naturais ali existentes, principalmente, nos territórios indígenas, como ocorrem tentativas hoje no Brasil. Empresas internacionais, como a Celestial Green Ventures (irlandesa) e a Viridor Carbon Services (britânica) buscam firmar contratos (ilegais e inconstitucionais) com povos indígenas da Amazônia brasileira que são verdadeiros atentados a soberania nacional e à cultura desses povos, além da tentativa de usurpar suas riquezas naturais. O cacique Osmarino Manhoari Munduruku não hesita em condenar esse tipo de projeto, uma vez que proíbe seu povo de caçar, pescar, plantar, retirar frutas do mato ou cortar madeira, durante os próximos 30 anos. E, mais ainda, assegura a essas empresas os direitos de uso de absoluto sobreas terras indígenas, realizar todas as análises e estudos técnicos e assegurar, sem restrições, a acesso dos seus técnicos às áreas definidas pelo contrato.(3)
Nas estimativas do Bird, o capital especulativo externo, combinando as diferentes práticas numa estratégica única de se apoderar de territórios, já se apropriou de mais de 65 milhões de hectares nos países do Sul, em especial, na África e América Latina.
Segundo a FAO, o que mais preocupa hoje é a volatilidade dos preços dos alimentos, o que impõe graves ameaças á segurança alimentar principalmente nos países não desenvolvidos. Milho, trigo e arroz, três cereais que compõem a base da alimentação mundial, estão entre os produtos que mais tiveram alta nos preços desde 2008.
Relatório do Banco Mundial, de setembro de 2011, informa que os preços em julho estavam, em média, 33% acima dos registrados no mesmo mês do ano passado. No caso do milho, o aumento foi de 84%; do açúcar, de 62%; do trigo, de 55%; e o do óleo de soja, de 47%.
Nesse cenário no qual os estoques mundiais de alimentos mantêm-se baixos, sem previsão de recuperação e preços voláteis, a fome e a insegurança alimentar transformam-se em componentes de desagregação social e desestabilização política das nações mais vulneráveis.
Agrava a situação a forte expansão dos preços dos insumos agrícolas em consequência direta da alta do petróleo, cuja cotação avançou 45% no último ano, pressionando os custos de produção. Em especial, vale assinalar o valor dos fertilizantes, que subiu 67% na mesma comparação. Isso porque a produção de insumos como agrotóxicos e fertilizantes é muito intensiva em energia. Ademais, a concentração da comercialização tanto dos insumos quanto dos produtos agrícolas nas mãos de poucas empresas transnacionais acaba por promover especulação no mercado de commodities.
Em resumo, caberá ao movimento popular do campo e aos povos indígenas empunhar bandeira de resistência a essa ofensiva do capital internacional sobre as terras do nosso continente. Serão batalhas que os meios de comunicação da burguesia não pouparam esforços e recursos desinformar a sociedade, distorcer informações e exercer influências sobre os governos, em defesa dos interesses do capital. São batalhas que vão além da defesa dos recursos naturais em nossos países. Essas lutas giram em torno, também, dos princípios da soberania nacional e da soberania alimentar dos nossos povos.
- Gerson Teixeira (ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA) e João Paulo Rodrigues (membro da Coordenação Nacional do MST).
Referencias Bibliográficas:
(1) PEREIRA, João Márcio Mendes. In Capturando a terra. Sauer, Sérgio e Pereira, João Márcio Mendes (orgs.). Expressão Popular, São Paulo/SP, 2006, p. 17.
(2) MONTECINOS, Camila. Entrevista a Rádio Del Mar. Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia_imp.asp?lang=PT&img=N&cod=61716
(3) MUNDURUKU, Osmarino Manhoari. In Editorial do sítio Vermelho. : http://altamiroborges.blogspot.com.br/2012/04/creditos-de-carbono-e-soberania.html
Este artigo foi publicado na revista de ALAI América Latina en Movimiento 474, "La descolonización inconclusa", abril 2012.
https://www.alainet.org/de/node/157407
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