Antes que seja tarde demais
09/11/2004
- Opinión
O governo Lula é prisioneiro de impasses profundos, dos quais
não se libertará. Suas ações e omissões têm agravado, em curto
período de tempo, todos os nossos dilemas. Caminha para um
fracasso de grandes dimensões.
Há uma tragédia em curso no Brasil, e ela, por enquanto, nos
confunde e nos paralisa. Pois a política – o nosso instrumento
da mudança – foi despolitizada, reduzida a doses cavalares de
marketing e a um conjunto de pequenos arranjos, muitos dos quais
bastante suspeitos, tudo a serviço da conquista e da preservação
de posições de poder. Nada mais há de libertário nela. Nenhum
impulso de superação do que existe. Nenhuma ligação com fins e
valores. Passada a eleição, discute-se agora se Marta ganhará a
embaixada em Paris, quem "se cacifou" para a próxima disputa,
qual dos gaúchos vai perder vaga no ministério, como encontrar
cargos suficientes para acomodar tanta gente e coisas assim tão
transcendentais, enquanto Lula diz platitudes, passeia com sua
cadela, vai ao cineminha do palácio e aguarda a chegada do novo
avião. Na economia, tudo vai bem, pois os bancos e o agronegócio
vão bem. O povo tenta sobreviver.
Precisaremos reinventar a política. Os partidos operários
modernizaram a política européia ainda no século XIX. Ampliaram
os limites das hesitantes democracias de então, forçando os
conservadores a se adaptar. No Brasil, em pleno século XXI, o PT
no poder rebaixou os ideais republicanos – já não digo
socialistas – ao nível de um jogo circense que instrumentaliza a
nossa democracia, igualmente hesitante, para apequená-la. A
política confirma-se como um espaço de competição entre grupos
de profissionais que, ao buscarem seus interesses, concorrendo
entre si, acabam por construir uma situação de eterno equilíbrio
flutuante, por meio da manipulação periódica dos desejos de
eleitores-consumidores. É, como se vê, uma variante do mercado.
Não há mais projetos de sociedade em disputa. Não há espaços
para que o povo apareça como protagonista e reivindique para si
a construção de seu próprio futuro. Discute-se, no máximo, quem
administra melhor o que aí está.
Nesse contexto, os políticos – os do PT e os outros – esforçam-
se por adaptar-se ao que a sociedade é, ou parece ser, conforme
lhes informam as onipresentes e minuciosas pesquisas de opinião.
Não aceitam correr o risco de pensar no que ela não é, nem
parece ser, mas pode vir a ser. São incapazes de despertar
qualidades novas que estejam latentes. E ficam iguais. O futuro
que resulta do somatório dessas ações da pequena política,
dessas sucessivas operações de curto prazo, tendo sempre em
vista a próxima eleição, esse futuro – o único admitido pelo
jogo institucional atual – é apenas o prolongamento do presente.
Não contém o caráter novo de um verdadeiro futuro. Consolida-se
assim, pois agora sem oposição, o status quo que tem origem na
contra-reforma conservadora da década de 1990. Os porta-vozes da
burguesia exultam diante de tanta maturidade.
Tivemos, ao longo da história, muitos tipos de esquerda. Pela
primeira vez, temos agora uma esquerda de negócios. Pois, tendo
destruído a militância, o que Lula e o PT necessitam cada vez
mais – mídia e dinheiro – só a classe dominante pode lhes dar.
Pela palavra de suas principais lideranças e pela sua prática, o
PT já não esconde sua condição de partido tradicional, integrado
política e moralmente à ordem em vigor. Entre perdas e ganhos,
firmou posições no espectro da política institucional, cada vez
mais divorciada do país real, mas não mais poderá ser o eixo de
gravitação de uma proposta transformadora, mesmo reformista, que
pretenda ser séria.
Estamos assistindo, pois, ao fim de um ciclo na existência da
esquerda brasileira, com o colapso político e moral de sua força
hegemônica. Este ciclo acabou porque: (a) a interpretação que o
PT tem sobre a crise do nosso país – que seria superada com uma
retomada do crescimento econômico – está fundamentalmente
errada; (b) o programa liberal e conservador do governo Lula,
ao fortalecer as forças do capital contra as forças do trabalho,
agrava a velha crise, em vez de abrir um período novo; (c) o
tipo de prática que o PT propõe aos seus filiados – integrar-se
cada vez mais às instituições do Estado, construindo carreiras
políticas individuais – perpetua e aprofunda o impasse da
esquerda; (d) a relação do PT com o povo – desmobilizadora e
mistificadora – já permite classificá-lo como um partido
conservador; (e) permeado por interesses menores de todo tipo,
ele não é mais capaz de reformar-se e abandonar esse caminho
falso.
Engana-se quem ainda espera que da cartola de Lula surja algo
novo. O neoliberalismo do seu governo não é uma política. É uma
ideologia. Como todas as outras, não deixa porta de saída. Só
produz mais do mesmo, e esse mesmo é pura mesmice. É preciso
compreender bem esse ponto, para que não haja ilusões. No
imaginário neoliberal, o mercado é o espaço de interação de
incontáveis agentes, sem que nenhum deles possa, sozinho ou em
grupo, controlar os processos de troca a ponto de impor os seus
próprios fins aos demais. Ao governo, nessa visão, cabe cuidar
apenas de preservar certas condições macroeconômicas que
permitam o mercado operar. Fora do âmbito da empresa individual,
essa escola de pensamento é hostil a qualquer idéia de metas,
pois a busca de metas democraticamente definidas exige uma
intervenção consciente nos processos econômicos e sociais, em
nome de um futuro pensado, desejado, imaginado, concertado, e
não produzido por aquela cega interação mercantil.
Quando se apresentam como representantes do futuro, os
neoliberais nos vendem uma mercadoria que não podem entregar,
pois eles mesmos não têm meios de saber a qual futuro se
referem. A alocação dos recursos será ótima – eles dizem – se
for produzida pelo livre mercado, simplesmente porque o livre
mercado produz uma alocação qualquer, desconhecida, considerada
ótima por critérios internos à própria teoria que o glorifica.
Se essa alocação ótima produzirá bem-estar, não se sabe. Isso,
aliás, não tem a menor importância.
Ora, se permanece indefinida a imagem do futuro que se deseja
atingir, inexistem pontos de referência que permitam uma
avaliação rigorosa dos processos reais. Diante de qualquer
dificuldade, o pensamento neoliberal consegue acionar uma saída
de emergência com a incessante repetição de que é preciso
esperar mais e insistir mais, dobrando a aposta quando
necessário, pois – eis aí o verdadeiro problema – "o modelo
ainda não foi completamente implantado". Há anos ouvimos isso,
aqui e alhures, e não sem razões. Pois, sendo o livre mercado
apenas um tipo ideal, incapaz de organizar efetivamente o
conjunto da vida social, então, por definição, a implantação do
modelo neoliberal está sempre incompleta. Cria-se um discurso
que, como os demais discursos ideológicos, externaliza suas
dificuldades. Não depende do confronto com uma realidade que lhe
seja exterior, já que abriga em si condições suficientes para
legitimar-se em qualquer circunstância. Os fracassos o
fortalecem, pois ele sem pre conta com uma poderosa fuga para a
frente: "Isso e aquilo estão atrapalhando o mercado." O
argumento pode ser repetido ad infinitum, pois sempre haverá
instituições e práticas, formais ou informais, que "atrapalham"
o mercado. Como a vida das pessoas não pode ser reduzida a
operações de compra e venda, qualquer sociedade organizada
transcende muito o mercado, qualquer uma contém, e reproduz, e
recria, inúmeras instâncias não mercantis. Elas sempre serão as
culpadas.
As deficiências do projeto neoliberal conduzem seus defensores à
inevitável conclusão de que é preciso aprofundar esse mesmo
projeto. A incapacidade de realizar-se é, simultaneamente, uma
fraqueza do modelo, no plano da realidade, e uma fonte de seu
vigor, no plano de ideologia. Mantém-se em ação um moto-perpétuo
típico dos pensamentos dogmáticos que não reconhecem nenhuma
autoridade fora de si. É isso o que explica a agenda anunciada
pelo governo Lula para o próximo ano, em retilínea continuidade
com o que já foi feito: reforma das leis trabalhistas, autonomia
legal para o Banco Central, negociações para a Alca... Falta
tanta coisa a fazer – sempre faltará! –, até que o mercado
possa, enfim, nos redimir. Já se foram dois anos, de quatro, do
mandato popular...
É o caminho sem volta que o governo Lula trilha alegremente, com
uma radicalidade típica de cristão-novo, recém-convertido. Está
brincando com fogo. Todos pressentem que a desigualdade social e
a dependência externa vêm se tornando dramáticas, colocando em
risco a nossa existência como sociedade organizada e nação
soberana. Ninguém se iluda: apesar de tanta "maturidade" na
política institucional, a sociedade brasileira está longe de ter
encontrado um equilíbrio estável. Essas multidões concentradas
em grandes cidades, com acesso à informação e sem alternativas
dentro do sistema atual são – em tamanha escala – um fenômeno
novo em nossa história. É cedo para dizer como vão comportar-se
quando perceberem que foram traídas de novo. Considerada em
perspectiva histórica, a Revolução Brasileira amadureceu, embora
as condições políticas para realizá-la não tenham sido
construídas.
Quando o velho já morreu e o novo não nasceu, é tempo de muita
incerteza. Como força transformadora, o PT já deixou de existir
(a brava Luizianne é a exceção dessa regra). Nossa tarefa, agora
e por muito tempo, é refundar a esquerda para refundar o Brasil.
Antes que seja tarde demais.
* César Benjamin é autor de A opção brasileira (Contraponto,
1998, nona edição) e Bom combate (Contraponto, 2004). Integra o
Movimento Consulta Popular. Revista Reportagem, 3 de novembro
de 2004
https://www.alainet.org/de/node/110857
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