A guerra perfeita
13/07/2004
- Opinión
Caros Amigos, junho de 2004
Em vinte páginas publicadas originalmente em janeiro de
1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Alexandre
Kojève realizou uma síntese e uma reinterpretação geniais
do capítulo IV da Fenomenologia do Espírito, de Hegel. O
capítulo se chama "Autonomia e dependência da consciência-
de-si: dominação e sujeição", e é nele que Hegel
desenvolve a dialética do senhor e do escravo.
O que diferencia o desejo animal e o desejo humano, ele
diz ali, é que o primeiro se dirige a objetos reais,
"positivos", que existem na natureza, enquanto o segundo –
o desejo especificamente humano – se dirige a um outro
desejo: "A história humana é a história dos desejos
desejados. (...) O Ser humano só se pode constituir se
pelo menos dois desejos se confrontam."
O confronto, por sua vez, tem de ser (ou, pelo menos,
tornar-se) assimétrico. Pois, se ambos os contendores
lutassem até a morte, a História não poderia existir.
Torna-se escravo aquele que coloca sua vida acima de sua
liberdade, e por isso, em algum momento, pára de lutar.
Torna-se senhor aquele que coloca sua liberdade acima de
sua vida, e por isso continua lutando. Instaura-se assim
um processo histórico muito complexo, que Hegel descreve
de forma longa e brilhante, com um final surpreendente.
Marx será herdeiro direto dessa construção ideal,
reinterpretando-a com novos conteúdos.
Ao longo da História real, o estabelecimento e a
reafirmação de relações de senhorio e servidão passaram
normalmente pela guerra, forma extrema de impor a vontade
de um à vontade do outro. Na segunda metade do século XX,
depois de uma conflagração que devastou o coração do
Ocidente, a Rússia, o Norte da África, o Médio e o Extremo
Orientes, com a terrível experiência do extermínio
planejado e o advento da era atômica, chegamos a pensar
que a guerra se tornara obsoleta. Estávamos errados. O que
a inibiu, nos anos seguintes, foi o equilíbrio de poder
entre duas superpotências capazes de se aniquilar.
Superado esse equilíbrio, a potência restante voltou a
torná-la um instrumento banal. Com o fim da Guerra Fria, a
imposição de uma nova ordem ao mundo passou a exigir
guerras regionais. A principal delas está em curso no
Iraque, tendo como motivações mais importantes aquelas
ligadas à geopolítica do petróleo.
Muitos de nós pensamos que essa guerra havia sido
resolvida com a queda de Bagdá. Teriam ficado comprovadas
a eficácia decisiva de uma nova geração de armamentos e a
superioridade da técnica. Para reforçar essa impressão, a
topografia do país estava a favor do invasor: Lawrence da
Arábia já havia percebido, em 1918, que uma guerra no
deserto mimetiza uma guerra no mar, na qual a
superioridade aérea, cada vez mais, é o elemento decisivo.
Estávamos errados, de novo. O acontecimento mais
relevante no mundo atual é a resistência do Iraque e a
surpreendente constatação de que o povo iraquiano vencerá.
Pois o tempo, agora, está a seu favor: para o lado norte-
americano, é uma guerra de altíssimo custo, enquanto, para
o iraquiano, é de baixíssimo custo; são muito maiores as
capacidades iraquianas de aceitar baixas e repor
combatentes; em becos e ruas, a superioridade do armamento
perde para a qualidade da infantaria, a mobilidade, o
domínio do terreno, a surpresa e, principalmente, o apoio
popular. Por trás de tudo isso está o fator fundamental:
os norte-americanos destruíram a infra-estrutura física e
as instituições do Estado invadido, incluindo aí suas
forças armadas, mas não foram capazes de quebrar a vontade
dos iraquianos que optaram por resistir. Hoje sabemos que,
ao contrário, a vontade dos Estados Unidos será quebrada
primeiro. Por isso, de uma forma ou de outra, em prazo
menor ou maior, o Iraque vencerá.
A guerra, pois, continua a ser um confronto entre
homens, decidido pela vontade dos homens. Se o ocupante
não consegue obter suficiente base política na sociedade
local, a ocupação fracassará, independentemente da
superioridade tecnológica que possa exibir. Retornemos a
Hegel: quem segue lutando, escravo não será.
Retornemos, porém, muito mais: há 2.500 anos, Sun Tzu
dizia que a guerra perfeita é aquela que não chega a ser
travada. O estrategista perfeito é o que consegue quebrar
a vontade do outro sem ter de arcar com os custos e os
riscos de uma guerra real. Sob esse ponto de vista, a
guerra patrocinada por Bush no Iraque, em busca de bons
negócios, é escandalosamente imperfeita: dispendiosa,
suja, cínica, aberta, ilegítima, infindável,
insustentável.
A guerra perfeita da potência dominante, nos últimos
anos, foi travada contra o Brasil. Pois aqui, sim, ela
quebrou a vontade do outro – a nossa vontade – sem ter de
arcar com os custos de uma guerra real. Conseguiu tecer a
ampla base política interna que legitima uma ocupação que,
por isso, pode permanecer virtual. Se alguém tinha
dúvidas disso, deve tê-las perdido quando ouviu a
declaração lapidar de Lula em recente reunião com
banqueiros de Nova York, logo após a aprovação do salário
mínimo de R$ 260,00: "O Brasil é um bom negócio."
Lula foi recatado. Poderia ter dito: o Brasil continua
a ser um bom negócio. Pois isso sempre foi. Foi excelente
o negócio do açúcar, que nos séculos XVI e XVII, baseado
aqui, formou o moderno mercado mundial e encheu as burras
dos banqueiros europeus. Foi magnífico o negócio do ouro
na segunda metade do século XVIII; graças a ele, a
Inglaterra – que nunca teve minas de ouro – constituiu
suas enormes reservas e criou o primeiro padrão monetário
mundial (o padrão libra-ouro) no século XIX, símbolo e
suporte de sua hegemonia. A partir de 1840, até bem
entrado o século XX, foi maravilhoso o negócio do café,
estimulante de baixo custo e fácil distribuição, ofertado
à classe trabalhadora da Europa e dos Estados Unidos, que
precisava ser disciplinada para o trabalho fabril. Foi
sempre estupendo o negócio do endividamento perpétuo dessa
sociedade que, preferindo a sobrevivência medíocre – na
condição de "bom negócio" para os outros – à luta pela
autonomia e a liberdade, escolheu o destino de escravo, a
que Hegel se referia, duzentos anos atrás.
A guerra perfeita, repito, foi a guerra que nos
derrotou. O presidente Lula é a prova.
* César Benjamin é autor de A Opção Brasileira
(Contraponto, 1998, nona edição) e Bom Combate
(Contraponto, 2004). Escreve uma análise mensal de
economia e política econômica na página
www.outrobrasil.net.
https://www.alainet.org/de/node/110252
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