A contra reforma agrária e o aumento das desigualdades sociais no campo

11/08/2014
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A concentração das terras e a desigualdade social no campo[1]
 
As classes dominantes no Brasil insistem e defendem a atual estrutura fundiária brasileira marcada historicamente por elevada concentração da terra. E, no âmbito dessa opção política retrógrada, de natureza neoliberal[2], estimulam não somente as iniciativas das classes dominantes de contra reforma agrária como contribuem para a concentração da renda e da riqueza no país.
 
A essa política conservadora se aliam outras iniciativas governamentais que facilitam a apropriação privada dos recursos naturais, a exploração dos povos do campo, o estímulo ao histórico perfil agroexportador da agricultura brasileira, a degradação da biodiversidade e negam a soberania alimentar no Brasil. Esse conjunto de fatores pode ser considerado como uma das principais causas da desigualdade social no campo no país.
 
Há décadas que se registra a manutenção de índices elevados de concentração da terra[3], de grilagem de terras públicas, de devastação florestal[4], de degradação biológica das águas doces e de desprezo social explícito pelos povos tradicionais brasileiros (os quilombolas, os ribeirinhos, os extrativistas, os assalariados rurais e os camponeses pobres) numa estratégia dominante de segregação social, facilitando, sobremaneira, a exploração econômica e a subalternidade dos povos do campo pelas empresas capitalistas.
 
A postura político-ideológica dos governos de manutenção de uma estrutura agrária socialmente injusta, aliada às suas ações objetivas de natureza econômica, favorece a concentração e centralização da posse da terra e reforça mais ainda a concepção social retrógrada de que os camponeses se constituem em ‘povos sem destinos’, destinados historicamente a desaparecerem da formação econômica e social brasileira.
 
Nessa onda dominante conservadora os governos se apequenam perante os interesses de classe das empresas do agronegócio, fazendo coro com eles nos discursos  reacionários de negação da realização da reforma agrária no país. E, ao contrário de se afirmarem por atitudes progressistas de democratização da posse e uso das terras, agem em favor das medidas de contra reforma agrária. E os grandes proprietários de terras continuam ampliando as suas áreas, contribuindo para o aumento da concentração fundiária no país.
 
Esse processo histórico de crescente concentração das terras e de sua estrangeirização, numa tendência irrefreável fortalecida pelo consentimento e apoio das classes dominantes a esse comportamento, propicia outras formas de concentração e centralização na economia que contribuem para a sua reprimarização, mantendo a economia brasileira, em especial a pauta de exportações, dependente da superexploração dos recursos naturais do país. Exportamos de maneira venal as nossas riquezas primárias numa demonstração de incompetência e entreguismo estratégicos.
 
Uma das conseqüências da concentração das terras é a pressão política e econômica pela apropriação e expropriação das terras dos camponeses pelas empresas capitalistas. Essa expansão capitalista no campo nega, numa prática de exclusão social e produtiva, o modo de produzir e de viver dos camponeses. Impede, de fato, o exercício de outra possibilidade e forma de produção agrícola já consagrada em todo mundo pela história camponesa: a construção de uma relação harmoniosa homem-natureza e de oferta continuada de alimentos saudáveis para as populações rurais e urbanas.
 
Instaura-se, de maneira similar ao imposto nos tempos coloniais pelos invasores portugueses, um processo de acumulação por espoliação[5] dos recursos naturais. E, mais, esse processo de exploração da natureza reafirma a dependência da economia brasileira aos interesses dos grandes grupos econômicos multinacionais, no âmbito mais geral da contemporânea divisão internacional do trabalho, facilitando a ampliação, entre outros, dos impérios alimentares[6].
 
Constata-se, então, na dinâmica da agricultura brasileira o confronto entre dois modelos de produção: o modelo capitalista cuja racionalidade está centrada no lucro e tem como estratégia a artificialização e a estandartização dos produtos agrícolas (amplo senso) para a exportação; o modelo camponês de produção cuja lógica é estabelecida pela reprodução social da família e tem como estratégia a diversificação de cultivos e criações, a harmonia entre a ação antrópica e a natureza, e a oferta de alimentos saudáveis.
 
A concentração da terra e os impérios alimentares
 
A concentração das terras agricultáveis no Brasil desde a colônia sempre foram destinadas para a produção de produtos para a exportação. E, num sentido contrário, porém, complementar, ficou destinada à agricultura camponesa a tarefa social de garantir a oferta de produtos alimentares básicos. Porém, em função dos interesses da reprodução capitalista dominante, os produtos para a exportação sempre foram protegidos e favorecidos pelos governos enquanto os produtos alimentares básicos foram regulados no sentido praticarem preços baixos no varejo para se reduzir a pressão do item alimentação na composição do salário mínimo dos trabalhadores urbanos.
 
A apropriação privada das terras agricultáveis em todo o mundo, em especial naqueles países com extenso território como o Brasil, tem sido acompanhada do controle oligopolístico da alimentação. Isso significa que as populações estão submetidas aos interesses desses grupos econômicos multinacionais não apenas pelo controle que exercem sobre a oferta de alimentos, mas, inclusive, pelo tipo de alimentação disponibilizada. Pode-se afirmar que vivenciamos uma tirania do paladar, este sujeito à flutuação da taxa do lucro médio obtido pelos produtos de ocasião que garantam a lucratividade dessas empresas oligopolistas. Nessa perspectiva a oferta de alimentos determina o tipo de consumo que será efetuado pela população.
 
Nas últimas décadas a alimentação tornou-se uma das formas de exercício do imperialismo, este expresso pelo controle oligopolista das terras agricultáveis em todo o mundo[7] assim como da definição centralizada da oferta de alimentos por um pequeno grupo de empresas multinacionais como, por exemplo, o domínio sobre as principais cadeias alimentares pelas empresas Nestlé, Cargill, Monsanto, Pepsico e Wal-Mart[8].
 
Esse comportamento oligopolista da oferta de alimentos restringe as margens de reprodução social dos camponeses que têm na diversidade dos cultivos e criações uma das bases para a garantia de fontes alternativas de geração de renda familiar. Essa tendência dominante de homogeneização e estandartização dos alimentos violenta não apenas as práticas de produção históricas camponesas, como também as suas formas e tipos de inovação tecnológica e os seus hábitos de trabalho e de consumo, estes bastante articulados com os ciclos da produção agrícola, as estações do ano e as festas e ritos sociais camponeses.
 
No âmbito maior dessa perspectiva, a imposição da tirania alimentar pelos grupos oligopolistas multinacionais que controlam as cadeias alimentares e a afirmação das grandes empresas do agronegócio, nega a diversidade agrícola dos camponeses e acentuam as desigualdades sociais ao imporem uma prática de produção e de consumo que é contrária dos desejos e aspirações de garantia de uma dieta alimentar adequada às variadas demandas das populações do país e de suas regiões. As dietas alimentares tornam-se determinadas pelas especulações sobre o comportamento das ‘commodities’ nas bolsas de mercadorias e futuros.
 
A expansão capitalista no campo não somente destroça as culturas camponesas e a oferta de alimentos saudáveis como reafirmam, a cada gesto desse processo de controle oligopolista da alimentação, a imposição de produtos agrícolas beneficiados e industrializados, enfatizando a descriminação social contra a produção dos camponeses.
 
A concentração de terras e a contra reforma agrária
 
No contexto histórico contemporâneo econômico e social brasileiro onde os governos exercitam a contra-reforma agrária e, portanto, facilitam indiretamente a concentração das terras agricultáveis não é de se estranhar que a reprodução social dos povos do campo seja duramente afetada pelas restrições que tal concentração fundiária impõe à dinâmica do crescimento da agricultura. Ademais, é relevante se acentuar que os imóveis registrados em 2010 pelo INCRA nas categorias minifúndios e pequena propriedade somavam 90,10 % do total de imóveis, mas ocupando apenas 23,84% da área total dos imóveis. Não é de se estranhar, portanto, já se ter constatado em 2009 que
 
 “(...) Os camponeses são o grupo social mais atingido pela pobreza extrema no Brasil, revela estudo divulgado nesta quinta-feira (15) pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas). Entre as famílias consideradas ‘extremamente pobres’, 36% tinham como fonte de renda, em 2009, a produção agrícola... Para o IPEA, os principais fatores que levam os camponeses à pobreza são, pela ordem, o pequeno tamanho de suas terras; a baixa disponibilidade de insumos agrícolas, especialmente de água; a falta de assistência técnica; e os baixos preços pagos pelos seus produtos.”[9]
 
Mesmo assim continua a compra de terras pelos grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros fortalecendo a concentração fundiária. Martine Dirven indaga e responde sobre o tema em suas conclusões à página 30 de seu texto[10]: “(...) Há concentração e estrangeirização das terras agrícolas no Cone Sul do continente? Sem duvida alguma! Quais são as razões? As razões aduzidas pela sua exaustiva pesquisa são:
 
a) no âmbito econômico: menor regulação e forças favoráveis para a concentração tanto nas cadeias de valor agroalimentares como do modelo neoliberal em geral; b) no legal: liberalização dos mercados de terras sem diferenciação entre nacionais e estrangeiros; c) no organizativo: forte aumento do peso e da concentração de núcleos de poder nos extremos (insumos e maquinaria, exportação e venta no varejo) das cadeias de valor nacionais e, sobretudo, globalizadas; d) no organizativo no nível do estabelecimento rural: entrada de grandes consórcios que administram e prestam serviços a vários estabelecimentos, especialmente relacionados com o cultivo da soja na Argentina (e Brasil), ainda que seja um modelo que parece estar se estendendo a outros países e outros cultivos; e) no financeiro: pela sua qualidade de bem finito, a terra é uma boa aposta em tempos financeiros turbulentos e muito melhor em tempos de tendências à alta dos preços das commodities agrícolas; f) no geral: a capacidade de gerenciamento de um bom gerente excede as necessidades de um estabelecimento rural de pequenas dimensões, daí que para otimizar o uso dos recursos humanos é necessário aumentar o tamanho da exploração, como os ‘pools’ na Argentina, os consórcios chilenos e as operações de varias empresas globalizadas demonstram que nos tempos atuais e com as tecnologias disponíveis, estas podem englobar dimensões insuspeitáveis em poucos anos, tanto em matéria de superfície administrada como de atividades conexas ou não.    
 
Ora, a reforma agrária é um processo de democratização popular do acesso e posse da terra. É, sem dúvida alguma, geradora social de novos camponeses. Negar a reforma agrária é negar o desenvolvimento rural pela via da sua massiva camponeização que se pretende moderna sem conduzir a um uso do espaço rural oligopolizado, homogeneizado, estandartizado e degradado pelas tecnologias agrícolas dependentes dos agrotóxicos. Pelo contrário, é a afirmação da diversidade cultural (etnodiversidade), da agrobiodiversidade e de uma ação antrópica que promova a natureza na sua totalidade.
 
A concentração de terras e a realização camponesa
 
A conseqüência mais contundente da concentração da posse e do domínio privados dos recursos naturais, em particular das terras agricultáveis, é a ampliação dos obstáculos para a realização camponesa, o que acentua as diferenças sociais no campo. Esses obstáculos são conseqüência indireta das políticas públicas que favorecem alguns produtos para a exportação, e cuja presença na pauta de exportações de produtos agropecuários e florestais tem representado, em média, 75% das exportações brasileiras de produtos de origem rural. Nos últimos anos observou-se a seguinte média na participação na pauta de exportações por grupos de produtos de origem rural: soja e derivados 22%; carne e couros 25%; madeira, celulose e papel 17%; açúcar e álcool 11%; essa porcentagem variando discretamente em função dos interesses de compra representados pelos grandes grupos econômicos multinacionais (‘tradings’).
 
Tais ‘commodities’ são produzidas em grandes escalas pelas empresas capitalistas no campo e por parcelas dos estabelecimentos camponeses que se submetem aos riscos econômicos decorrentes da perda do controle interno da gestão das suas unidades de produção ao seguirem as orientações das empresas capitalistas, em particular declinando da prática histórica de diversificação dos cultivos e criações e da produção interna de insumos.. 
 
 Se a esse tipo de subalternização camponesa se acrescentar a precariedade da assistência técnica oferecida pelos governos para os camponeses, deixando-os à mercê do apoio técnico ofertado pelas grandes empresas de comercialização de insumos agroindustriais e de aquisição dos produtos agrícolas, tudo leva a crer que a reprodução social camponesa estará determinada pelos interesses dominantes de manterem os camponeses em condições de subalternidade que facilite às grandes empresas capitalistas a sua exploração pela competição desigual dos seus produtos nos mercados[11].
 
A essas contingências determinadas pelas políticas públicas se deve acrescentar aquelas conjunturas onde se constata uma crise da agricultura como fruto das oscilações dos mercados internacionais oligopolizados de ‘commodities’.
 
Sem dúvida que qualquer crise numa sociedade de classes sempre atinge de forma mais brutal as classes subalternas. No caso de uma crise da agricultura, essa crise significa, antes de tudo, crise para o povo brasileiro e para os camponeses. As empresas capitalistas do agronegócio, pela sua internacionalização e por considerarem a natureza como mercadorias, encontram nessas crises uma forma tradicional de seletividade entre concorrentes. Reforçam, nesses casos e sempre que possível, a tendência à oligopolização. E quanto mais fortes se encontram as classes dominantes maior é a exploração relativa que exercem sobre as classes dominadas.
 
A crise na agricultura no Brasil é de caráter estrutural, não somente pela concentração fundiária, mas, também como decorrência do modelo capitalista de produção dominante concentrado em poucos produtos de exportação que são submetidos aos preços internacionais na concorrência com outros países produtores de ‘commodities’. Como as empresas capitalistas no campo buscam custos de produção menores e margens de lucro maiores (mesmo em períodos de crise da agricultura) tendem a se apropriarem de áreas de florestas e savanas; a explorarem impunemente os trabalhadores rurais e os camponeses; a exigirem dos governos grandes obras de infraestrutura (estradas, navegabilidade dos rios, portos, etc.); continuados ajustes de políticas protecionistas de mercados; crescentes investimentos governamentais indiretos que facilitem seus negócios e tratados de livre comércio (TLCs).
 
O modelo capitalista de produção é internamente excludente dos camponeses e demais povos do campo, e internacionalmente receptivo à desnacionalização pelas grandes empresas multinacionais tanto dos recursos naturais como da agricultura. Adeptos da concepção liberal para as práticas do capital na sociedade brasileira os empresários capitalistas nada tem de liberais ao serem, sem exceções, exploradores extremamente autoritários em relação às classes subalternas. Esses grandes empresários, sejam de origem nacional ou estrangeira, tem ao seu lado não apenas os governos, mas os meios de comunicação que são pagos por eles para enaltecerem as virtudes burguesas do agronegócio e desmerecerem o modo de ser e de produzir camponês.
 
As táticas de ação conjuntural dos camponeses, além de disputarem os programas assistencialistas governamentais, sempre inoportunos com respeito ao cumprimento dos prazos e usualmente geradores de camponeses inadimplentes pelas formas como são concebidos, devem dar conta das mais distintas formas de resistência social devido à violação continuada dos seus direitos seja por grileiros seja pelos prepostos dos grandes empresários proprietários de terras.
 
Nesse processo de resistência social ensaiam, ademais, construir a sua autonomia relativa perante os capitalistas, efetuar poupanças capazes de realizarem o que denomino de acumulação camponesa. Esta é produto do trabalho direto familiar camponês. Nada tem a ver com a acumulação capitalista que se faz pela apropriação da mais valia gerada pelos trabalhadores durante os processos de trabalho capitalista marcado pelas relações sociais de produção de assalariamento.
 
 Para que os camponeses possam, mesmo que de forma primária, realizar poupança familiar pelo seu processo de trabalho, seria relevante que uma proposta estratégica fosse por eles elaborada e que se colocasse muito além dos programas governamentais assistencialistas, programas estes que, na maioria das vezes, reforçam a subalternidade dos camponeses ao capital.
 
Uma proposta camponesa para superar a sua subordinação ao capital deveria contemplar diversas mudanças estruturais, mas necessariamente deveria partir do enfrentamento da concentração da terra no Brasil.
 
Alguns objetivos dessa proposta estratégica seriam: a realização de uma reforma agrária massiva; a implantação de outro modelo tecnológico de produção a partir da concepção camponesa de agricultura; assumir uma concepção de campesinato que afirme a sua autonomia e a acumulação camponesas; construir propostas de agroindustrialização sob controle popular; implantar sistemas cooperativos semi-estatais de prestação de serviços e a apropriação social da natureza pela unidade dos povos do campo.
 
Ademais, a mobilização da massa popular do campo deveria ter como perspectiva a conquista de políticas públicas de melhoria da produção e de aumento da renda familiar, superando a tendência atual dos governos de torná-las dependentes da caridade e misericórdia públicas.
 
Seria, então, da maior relevância a consolidação da unidade política dos movimentos e organizações sociais popular do campo no sentido da constituição de uma Aliança Popular no Campo a partir dos objetivos estratégicas consensuados que se coloquem além dos objetivos táticos de reivindicação e de protestos.
 
A afirmação camponesa num contexto de opressão necessita superar os horizontes de sua realização que se tornam restritos pela exclusão social e ideológica a que estão submetidos. A realização camponesa deveria valorizar a sua imensa diversidade e relação com a natureza de maneira que tornem as suas paisagens como ‘paisagens culturais’ cujo “(...) conceito abarca as idéias de pertencimento, significado, valor e singularidade do lugar.” [12]
 
A concentração de terras e a negação da soberania alimentar
 
Os camponeses são os principais responsáveis pela produção de alimentos no país. No entanto, a imagem sobre a oferta de alimentos que é veiculada para a população urbana confunde o consumir ao induzi-lo a entender, mesmo sub-repticiamente, que o responsável agrícola pela oferta da alimentação é o agronegócio. Mesmo que a agroindústria, como parte do agronegócio, seja responsável por parcela considerável dos produtos beneficiados para o consumo corrente da população urbana, não existe nessa relação entre produção e consumo de alimentos a presença explícita do camponês, ele sim o responsável pela produção de quase dois terços dos produtos consumidos nas cidades.
 
Esse deslocamento da imagem do sujeito social real da produção de alimentos no Brasil desloca, também, o sujeito social responsável direto pela soberania alimentar  n país que são os camponeses.
 
Nas crises conjunturais da agricultura, os camponeses ao invés de usufruírem dessa oportunidade adversa da economia rural por seremos protagonistas da oferta de alimentos saudáveis, acabam sendo arrastados e prejudicados pelas crises devido às importações de alimentos e sua distribuição por preços subsidiados que os governos efetuam para responderem a uma situação econômica e social precarizada. Nesse sentido, as crises da agricultura acabam, no final das lógicas de intervenção pública nos mercados, favorecendo as grandes empresas capitalistas sejam as de produção ou sejam as de comercialização.
 
A alimentação do povo brasileiro tem sido tratada como questão secundária, isso devido à grande oferta de produtos alimentares nas mais distintas regiões do país, oferta essa favorecida seja pela diversidade de clima que permitem várias safras durante todo o ano, seja pela diversificação de cultivos e criações organizadas pelos camponeses.
 
No entanto, como são os empresários os que oligopolizam a oferta de alimentos, para eles é indiferente se a origem dos alimentos é de produção nacional ou são importados. Muitas vezes, como ensejam ampliar seus lucros eles buscam na importação de alimentos caminhos comparativos que lhe são favoráveis. Isso em detrimento das safras nacionais, por vezes com custos de produção comparativamente mais elevados. Nessas circunstâncias, como as políticas públicas de estoques reguladores foram minimizadas devido à lógica liberal de não presença das ações públicas nos mercados, as importações tornam-se usuais e em diversas circunstâncias concorrenciais com os produtos alimentares ofertados pelos camponeses.
 
Além disso, o comércio internacional de commodities (petróleo, grãos e metais) é cartelizado, proporcionando margens de lucro elevadas para as 10[13] empresas multinacionais que o constituem. Essas empresas são: Vitol, sede em Genebra (investimentos dos EUA), petróleo; Glencore (USA) petróleo e minério; Trafigura (Holanda, Inglaterra e mais 56 países): petróleo, metais não ferrosos, frota navios; Cargill (USA) grãos; Gunvor (sueca): petróleo e metais na Rússia; biodiesel; infraestrutura de energia; ADM (USA), grãos; Noble (Escocesa com capital chinês), produtos agrícolas, energia, minérios, metais; Mercuria (Suíça), energia, petróleo, gás natural, biocombustível, carvão; Bunge (Holanda e Argentina), fertilizantes e grãos; Phibro (USA - Philips Brothers, subsidiária da Oxy-petróleo), energia, metais e commodities agrícolas.
 
O desafio da soberania alimentar no Brasil reside no enfrentamento social do controle oligopolista da oferta e comercialização de alimentos. O oligopólio mundial de alimentos e matérias primas originárias da agricultura e do extrativismo se amplia na medida direta em que os alimentos são produzidos, na sua maioria, assim como os insumos utilizados pela agricultura industrial altamente capitalizada, numa relação antrópica predadora da natureza, comprometedora da saúde humana e crescentemente artificializada.
 
A afirmação da soberania alimentar no país acaba sendo desprezada pela hegemonia das concepções de mundo do agronegócio, este em geral submetido às regras de comercialização determinadas pelas grandes empresas multinacionais. Tanto assim que na divisão internacional do trabalho que ocorreu a partir de meados da década de 1980, a transferência da oferta de alimentos para os países do sul da linha do equador induziu reestruturações nas economias rurais locais indiferentemente se essa divisão internacional do trabalho provocasse opressão e exclusão da produção social dos camponeses. No Brasil, essas mudanças foram objetivamente realizadas com a segunda onda de ‘modernização’ na agricultura realizada a partir do final de década de 1980, quando passa a prevalecer, sem objeções, os interesses científicos, tecnológicos e comerciais das grandes corporações multinacionais seja no direcionamento da pesquisa como a natureza da inovação tecnológica no campo.
 
A concentração de terras e o isolamento das lutas sociais no campo
 
As iniciativas dos governos brasileiros têm sido orgânicos à reprodução dos interesses de classe das classes dominantes no campo e na cidade. As próprias políticas compensatórias para os trabalhadores rurais e urbanos para os camponeses, estimuladas por vários desses governos, nada mais são do que políticas complementares de apoio governamental às empresas capitalistas. Essa postura governamental de fato contribui para destroçar as iniciativas de reivindicação e de luta social das classes subalternas.
 
As políticas públicas sendo orgânicas ao processo de reprodução dos grandes capitais nacionais e transnacionais na agricultura e na agroindústria estimulam as demais frações dos capitais (industrial, serviços e comercial) a disputarem o fundo geral de mais-valia parcialmente representado no orçamento geral da União. Essa busca incessante de vantagens, como as facilitações tributárias, cambiais, taxas de juros, entre outras, permitem às diversas frações dos capitais a redução dos seus gastos de reprodução ampliada do capital e contribuem para a ampliação dos seus processos de acumulação.
 
Nesses contextos, os poderes da república, ao serem orgânicos aos interesses do capital, tornam-se objeto de disputa entre os lobistas que buscam vantagens de oportunidade e favores para as corporações, propiciando condições efetivas para a presença de contravenções e de impunidade nas relações entre os interesses públicos e os privados.
 
Na dinâmica mais geral da hegemonia dos interesses privados no âmbito dos aparelhos do Estado neoliberal algumas conseqüências anti-sociais se verificam:
 
-         Acentua-se o processo de privatizações para garantir, sob a ética liberal, que a concorrência e os mercados se tornem norma universal de funcionamento das relações humanas, amplo senso;
 
-         A sociedade civil se despolitiza, convertendo-se, pela hegemonia da concepção de mundo dominante, em difusora dos ideais das ideologias anti-estado, de conciliação entre classes sociais e de afirmação da natureza como mercadoria, passível de ser negociada;
 
-         A paralisia teórica se instaura tendo com conseqüência uma disjunção entre teoria e prática, caracterizada por um lado pelo empirismo acadêmico e por outro lado o praticismo da ação política das lutas dos movimentos e organizações sociais populares;
 
-         Inexistem esforços para a elaboração de propostas de um novo modelo econômico, político e social para o campo; de uma estratégia de desenvolvimento rural a partir dos povos originários e do campesinato que inclua como uma da suas dimensões as mudanças fundiárias pela reforma agrária.
 
Numa sociedade sob a égide dos valores neoliberais predomina a estratégia de mudanças sem rupturas. Governa-se com as velhas instituições apoiando-se nas oligarquias e renunciando à mobilização social como uma das formas de pressão. Essa tendência para a conciliação entre classes sociais reafirma a estrutura fundiária e nela a concentração de terras O velho é a referência, os novos valores possíveis são afastados. Nesse contexto, a mesmice é o novo.
 
(Curitiba, agosto de 2014)
 
- Horacio Martins de Carvalho é agrônomo e consultor da Via Campesina.


[1] Texto elaborado para a Revista da ABRA, Ano 35, Volume 1, Nº 2- Edição Novembro 2014/abril 20154 - ISSN 0102-1184.
[2]“(...) o neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo... O neoliberalismo pode se definir como o conjunto dos discursos, das práticas, dos dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência”, in Dardot, Pierre e Laval, Christian (2099). La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale. Paris, La Découverte. Ver, em particular, a Introduction, p.6.
[3]Índice de Gini em torno de 0,847 na década atual, não sendo aqui considerado os cálculos governamentais recentes sobre esse índice, os quais considero tendenciosos.
[4] “(...) No período (últimas três décadas - HMC), 93 parques nacionais e outras unidades de conservação tiveram suas fronteiras reduzidas ou suas categorias alteradas. Na prática, o que se fez foi retirar ou reduzir a proteção de 5,2 milhões de hectares de florestas nativas antes preservadas em parques, reservas, estações ecológicas...” Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/533941-conservacao-da-natureza-perde....
[5]Harvey, David (2004). O novo imperialismo. São Paulo, Edições Loyola.
[6]Ploeg, Jan Dowe van der (2008). Camponeses e impérios alimentares. Lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre, Editora UFRGS, em particular o cap. 9.
[7]Ver: “La política del acaparamiento mundial de tierras Replanteando las cuestiones de tierras, redefiniendo la resistencia. Saturnino M. Borras Jr. y Jennifer Franco, Mayo de 2010. ICAS Working Paper Series No. 001; TNI, LPDI; ICAS; ICCO”.
[8] Segundo Vandana Shiva,  in Grandes corporações promovem uma ditadura do alimento, IHU on line 24 de agosto de 2013.
 
[9] Balza, Guilherme (2011). Camponeses são os mais afetados por pobreza extrema no Brasil, aponta IPEA. São Paulo, UOL noticias, 15 de setembro. 
[10]Martine Dirven. Dinámicas del mercado de tierras en los países del Mercosur y Chile: una mirada analítica-crítica.  FAO, noviembre 2011. 34 p.
[11] Ver capítulo 1. Economia política do campesinato, in Armando Bartra Vergés (2011). Os novos camponeses. Leituras a partir do México profundo. São Paulo, Cultura Acadêmica; Cátedra UNESCO de Educação no Campo e Desenvolvimento Rural.
[12] Consultar Santilli, Juliana (2009). Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. São Paulo, Editora Peirópolis. Citação à p. 390.
https://www.alainet.org/de/node/102370
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