Camponeses e a necessária busca do tempo perdido

24/06/2015
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Os camponeses no Brasil tem vivenciado um processo histórico que tem sido marcado pela sua continua subalternidade aos interesses das classes dominantes, sejam aqueles do período imperial que outrora se caracterizou pelo exercício do poder patrimonial das minorias durante o regime de sesmarias sejam os outros interesses da classe dominante no âmbito da democracia burguesa pelo poder que as diversas frações da burguesia nacional e estrangeira[1] exercem. São poderes de classe --- os de outrora e os atuais, que lhes facilita a exploração dos camponeses do país[2].

 

Alguns comportamentos e iniciativas têm sido utilizados pelas diversas frações da burguesia para subjugar os camponeses no Brasil, entre os quais dois se destacam: a privatização e concentração das terras com o consequente alijamento dos camponeses do acesso direto à terra para a produção (posse e uso), e  a apropriação da renda gerada pelos camponeses, enquanto produtores diretos, quando os seus produtos (agora mercadorias) são oferecidos para as trocas nos mercados controlados pelas empresas da burguesia (ou seus prepostos), sejam elas nacionais ou estrangeiras.

 

A esses comportamentos se somam outros numa ampla diversidade de formas de subjugar os camponeses como, por exemplo, os contratos de produção (ditos de integração camponês-capitalista) efetivados em diversos ramos da produção agrícola onde a sujeição cativa indireta dos camponeses ao capital é frequente, proporcionando um tipo de transferência consentida da renda dos camponeses para as empresas capitalistas.

 

Devido à constante pressão da burguesia sobre a terra, seja esta já sob o uso e posse pelos camponeses ou aquelas terras públicas e ou privadas por eles ocupadas, os camponeses sofrem com a avidez, as afrontas e a violência cotidiana por parte da burguesia a qual considera que os recursos naturais são destinados (sic) aos seus interesses privados, repudiando assim qualquer outra proposição e ou iniciativa social e distributiva.

 

Esse tem sido, e continua sendo, o comportamento político e social das classes dominantes no Brasil, reforçado seja pela lei nº 610, de 18 de setembro de 1850, conhecida como a ‘Lei de Terras’ que dispôs, à época, sobre normas do direito agrário brasileiro, ainda que contemporaneamente com o Novo Código Civil de 2002, esse direito é relativizado.

 

A Constituição Federal, assim como o Novo Código Civil de 2002, possuem uma visão de sociabilidade, deixando de lado o caráter individualista da propriedade, sendo necessário buscar-se o equilíbrio entre os interesses individuais e os da coletividade, garantindo primazia à dignidade da pessoa humana e todas as consequências e aportes que seu respeito impõe.”[3]

 

Ainda que a legislação proporcione instrumentos legais para que uma política pública redistributiva possa ser efetivada para que a terra rural cumpra sua função social, por exemplo, através da reforma agrária, o processo de concentração e centralização da posse da terra continua elevado.

 

“A reforma agrária é uma das formas de se reorganizar a estrutura fundiária. O artigo 184, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, determina que a União desapropriará, por interesse público, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não cumpra sua função social. Assim, importante analisar a função social em si, posto que requisito essencial, no caso de seu descumprimento, para que o Estado desaproprie a terra para fins de reforma agrária.”[4]

 

E, como não poderia ser de outra maneira, quando o arbítrio se impõe a conflitualidade social se instala.

 

Medeiros[5] destaque que:

 

 “Os dados sobre conflitos fundiários e violência no campo no Brasil no ano de 2014 indicam a permanência de conflitualidade que é constitutivo da nossa história e cujo cerne é, como diversos pesquisadores tem apontado, o acesso à terra. As disputas em torno desse bem revestiram-se de diversas formas ao longo do tempo, mas sua raiz está no processo de transformação da terra em equivalente de mercadoria e, portanto, na criação de condições para a sua  livre compra e venda no mercado e apropriação da renda fundiária. A mercantilização subjuga e tende a diluir outros significados dados à terra pelos que nela vivem...Não por acaso, as ocorrências quantitativamente mais significativas se verificam em estados onde está em jogo a permanência na terra de famílias que lá vivem de há muito...Mais um paradoxo a ser melhor compreendido: o reconhecimento do direito à terra não elimina a pressão e a violência, reabrindo condições para o conflito.”

 

As dificuldades de acesso e permanência na terra, por parte dos camponeses, é potencializada pelas tentativas da burguesia de explorar a renda agrícola por eles gerada. Por maior esforço que os camponeses dispensassem e dispensem para reter essa renda gerada pelo seu trabalho familiar, parte dela foi e continua sendo apropriada pela burguesia quando, em geral, os produtos camponeses são ofertados nos mercados capitalistas. Nesses mercados o valor de uso dos produtos camponeses não tem como correspondência um preço de mercado (valor de troca) que satisfaça suas necessidades e aspirações. Tendem, na maior parte das vezes, a ser inferior ao seu preço de custo.

 

Os camponeses são explorados pela burguesia não somente nas trocas desiguais entre seus produtos (dos camponeses e os da burguesia). É necessário compreender os processos de exploração articulados entre si: o processo de exploração do trabalho camponês com o processo de transferência de renda do camponês para a burguesia na circulação das mercadorias camponesa e burguesa. [6]

 

Essa exploração dos camponeses tende a se agravar ainda mais porque é relativamente pequena a quantidade dos seus produtos ‘in natura’ e/ou processados que são ofertados diretamente, sem intermediações, para o consumidor final. Mesmo com o êxito relativo das cooperativas de comercialização e de agroindustrialização camponesas o produto camponês termina, em geral, nas mãos dos atravessadores, desde os prepostos das empresas agroindustriais regionais até aqueles das empresas capitalistas multinacionais de comercialização dos produtos da agricultura em geral. Os produtos camponeses tendem, então, a serem negociados num mercado oligopsônico (poucos compradores).

 

É necessário, ademais, se perceber o camponês não como um produtor de subsistência, como insinua o discurso burguês ou a percepção romântica de alguns setores da esquerda política, mas sim um produtor que produz produtos diversificados (sem o predomínio do monocultivo) para um mercado contemporâneo[7] já distorcido pelo poder de compra atacadista burguês.

 

 Superar essa condição de subalternidade histórica dos camponeses perante o capital tem sido objeto de diversos estudos institucionais e de pesquisadores independentes. Todavia, não é demais expor alguns comentários (outra leitura) sobre uma das dimensões dessa exploração a que estão sujeitos os camponeses e que se refere ao seu ‘tempo de trabalho perdido’ (ou transferido), tempo esse que é apropriado pelas diversas frações da burguesia. Refiro-me aqui ao tempo de trabalho que as famílias camponesas não conseguem reter para si no âmbito da renda líquida agrícola anual esperada quando da troca mercantil de seus produtos devido aos mercados imperfeitos onde se pratica trocas desiguais entre os produtos camponeses e aqueles ofertados pelas diversas frações da burguesia, sejam estes de natureza agropecuária ou industrial.

 

Seria relevante, no entanto, superar a idéia imposta pelas classes dominantes, e que se torna lugar comum na consciência de parcela da população pela alienação política, de que os camponeses tem sido, são e devem ser subalternos aos interesses de classe da burguesia, seja porque, segundo essa ideologia, seus produtos se caracterizam como ‘artesanais’ --- esta expressão significando que são objetos considerados como de baixo valor de troca ainda que possuam elevado valor trabalho, ou porque tecnologicamente adotam processos e instrumentos de trabalho supostamente obsoletos ou, ainda, porque não se submetem ao processo de classificação e padronização imposto pela lógica do desperdício da burguesia.

 

Os saberes camponeses[8] são, então, desconsiderados pelas classes dominantes porque irrelevantes tendo em vista que a força de trabalho é familiar e, segundo esse pressuposto burguês, desqualificada. Ademais, e numa outra dimensão já perpassada pelo reacionarismo, porque os burgueses consideram que a força de trabalho camponesa é sempre subalterna porque eles são pobres.

 

A inovação tecnológica --- como consequência do progresso técnico implícito e necessário no modo de produção capitalista, a que os camponeses têm acesso, é predominantemente o resultado da adaptação das tecnologias geradas para as empresas capitalistas, sendo estas consideradas pelas instituições de pesquisa e de experimentação governamentais e privadas como a referência dominante do conceito de unidade de produção que deve responder pelos negócios no campo. Nessa perspectiva, e como consequência da lógica dominante, os camponeses como ‘os pobres do campo’ são também tratados como incompetentes para elaborarem e exercerem um projeto hegemônico para o mundo rural. Portanto, incapazes de negar a atual direção intelectual e moral das classes dominantes. E por isso os camponeses são desqualificados como produtores e intelectuais pela intelectualidade orgânica do capital.

 

Outrora, aos camponeses era reservada --- desde sempre no âmbito da subalternidade às classes dominantes, a tarefa de produção agrícola não apenas para o autoconsumo da sua família como para gerar algum excedente que fosse capaz de suprir a demanda de alimentos básicos para a população urbana e a rural não produtora de produtos agrícolas, em particular o proletariado.

 

Aliada a essa divisão do trabalho imposta pelas classes dominantes tem sido disseminada a concepção de mundo --- e se mantem assim apesar das lutas camponesas, na qual os camponeses são tratados como povos simples, humildes e trabalhadores manuais cujas aspirações são restritas à reprodução social da família na simplicidade de seu modo próprio de vida, isto é, como os pobres da terra.

 

Nesse traço da concepção de mundo dominante se pode evidenciar o desdém pelos pobres praticado socialmente pelas diversas frações da burguesia. E a essa repulsa política-social se acresce a reprodução de um processo de hegemonia das idéias burguesas sobre o campesinato, isso devido, sobretudo, à precariedade e ou ausência de uma proposta de concepção de mundo contra-hegemônica para o campo concebida a partir do campesinato, conforme já acentuado anteriormente.

 

A manutenção de diversos outros elementos da concepção de mundo dominante no nível da consciência política camponesa, ainda que relativizados devido às constantes lutas sociais camponesas que buscam afirmar a sua identidade como classe social, é resultante da ocorrência de alguns fatores econômicos, políticos e ideológicos relacionados entre si, tais como:

 

×          a adoção induzida de cima para baixo de um padrão tecnológico dominante que é sempre portador da ideologia da concepção de mundo burguesa;

×          a insuficiência da resistência social camponesa ao processo de apropriação privada da natureza pelo capital exercido pela ofensiva das empresas capitalistas rurais e urbanas, nacionais e estrangeiras;

×          a precariedade dos processos de agroindustrialização sob a direção camponesa como um elemento que anunciasse um novo projeto de modo de produção para o campo;

×          a presença constante de políticas públicas de ajuste do crescimento econômico camponês (novos comportamentos consumistas e incorporação da tecnologia dita capital-intensiva) que os induz à subalternidade em relação às empresas capitalistas do campo e da cidade;

×          os produtos camponeses quando se apresentam para a venda de seus produtos nos mercados dominados pelas empresas capitalistas tem sido sempre subestimados e desvalorizados pela ideologia dominante não apenas como maneira de pressionar para baixo o preço de mercado dessas mercadorias mas, sobretudo, para desqualificados  perante os consumidores.

 

Nesses contextos sociais de subalternidade camponesa o tempo de trabalho familiar camponês incorporado aos seus produtos que são oferecidos nos mercados termina por se tornar um tempo perdido camponês, um tempo de trabalho que é apropriado pela burguesia no processo de valorização desigual dos seus produtos nesses mercados capitalistas.

 

“Tempo perdido: dependendo do ângulo pelo qual se observa o problema, esta questão pode ser vista de várias maneiras. Tempo perdido pode ser visto pelo extensionista que, ridicularizando a prática do diálogo, por acha-lo ingênuo e utópico, tenta impingir aos camponeses seus conhecimentos científicos e técnicos sem ao menos contextualiza-los. Tempo perdido é considerado o do puro verbalismo inócuo, onde a palavra, outrora geradora de conceitos e noções reais das coisas se transforma em palavrado vazio e sem sentido. Tempo perdido, também, é o do ativismo cego, acrítico e, por isso mesmo, destituído de cientificidade. Não se considerará tempo perdido aquele gasto no diálogo que aproxima os homens e que diminui as distâncias de seus mundos, fazendo-os contemporâneos e iguais, para uma busca conjunta da verdade, dando-lhes oportunidades para se constituírem como sujeitos de transformação.[9]

 

Esse tempo perdido do camponês é tempo de vida da família e poderia, em outros contextos históricos (quiçá numa sociedade menos desigual), ser tempo de bem estar, tempo sem as tensões pessoais e familiares inúteis que são impostas pela lógica da agricultura produtivista dominante que, segundo Aurélie Trouvé[10], poderia ser assim resumida: “produzir sempre mais, sempre mais barato, sempre com menos agricultores”. Esse produtivismo que constrange todos os processos produtivos numa sociedade dominada pelo modo de produção capitalista impõe, ademais, uma concepção de mundo às avessas de um bom viver: vive-se para trabalhar, ainda que o produto do trabalho seja apropriado e usufruído por uma minoria de pessoas e ou grupos sociais dessa sociedade.

 

O que significaria, então, a necessária busca do tempo perdido camponês? Seria, no meu entender, a busca ou o resgate pelos próprios camponeses desse tempo de trabalho que é apropriado pela burguesia. Seria, apesar de todas as circunstâncias desfavoráveis, impedir que os produtos camponeses (objetivação de seus tempos de trabalho) sejam apropriados pela burguesia a preços de mercado que vilipendiam o produtor. Diria mesmo que seria a necessária luta camponesa pela superação do modo de produção capitalista de maneira a se produzir num outro modo de produção menos desigual socialmente, e que propiciasse condições para que os camponeses pudessem reaver ‘seus tempos perdidos’, estes historicamente acumulados como bens pela burguesia.

 

A superação do modo de produção capitalista é tarefa estratégica difícil de ser concretizada no médio prazo devido à correlação de forças econômicas, políticas e sociais desfavoráveis aos camponeses (e ao proletariado). Mas, a solução perante tal dificuldade não comportaria o imobilismo, mas ações táticas capazes de acumularem forças para que a utopia camponesa, expressa na busca do tempo perdido, seja alcançada.

 

Qual a decisão estratégica que os camponeses deveriam adotar para não deixarem fugir do seu controle parcela relevante do seu tempo de produção, aqui assinalado como um ‘tempo perdido’? Eu afirmaria que seria indispensável, como pré-requisito político-ideológico, a afirmação do camponês como classe social.

 

Para tanto seria desejável a construção cotidiana de uma consciência e prática políticas necessárias para que se concretize a autonomia relativa camponesa perante o capital. E, quem sabe, manter viva e ativa uma utopia camponesa na qual a equidade e o bem-estar sejam mais constantes do que os sofrimentos prolongados e as esperanças não satisfeitas. E que o homem, no seu sentido amplo, seja considerado como parte harmoniosa da natureza.

 

Seriam, então, esses tempos, tempos de lutas e de enfrentamentos contra o capital, tempos de aprendizado, de libertação e de construção de um novo jeito de se produzir no campo e de se relacionar com a natureza: libertar-se da subalternidade histórica ao capital, aprender a ser liberto, construir novos cotidianos em que a solidariedade entre as pessoas e a harmonia na relação com a natureza se afirmassem numa sociedade sem classes sociais.

 

Todavia, essa construção tem sido sistematicamente negada pelos técnicos e intelectuais orgânicos do capital como sendo uma concepção de mundo obsoleta porque camponesa e não necessariamente capitalista. O que significaria dizer, do ponto de vista dominante, do capital, que os camponeses deveriam aceitar o padrão tecnológico dominante ofertado pela concepção de mundo que sugere e exercita o domínio da relação homem-natureza pelo capital, ou seja, a natureza como um recurso econômico a ser utilizado apenas para a obtenção de lucro. E, mais, que a competitividade imposta pela lógica liberal, plena de tormentos e aberrações, golpes e mentiras, fosse aceita passivamente pelos camponeses.

 

No entanto, muito diferentemente dessa lógica liberal burguesa tortuosa e falsa, os camponeses seguem outros valores, tais como dispõe o Artigo I do poema Estatutos do Homem, de Thiago de Mello:

 

Fica decretado que agora vale a verdade

 agora vale a vida,

 e de mãos dadas,

 marcharemos todos pela vida verdadeira,”

 

e pelo seu Artigo Final:

 

Fica proibido o uso da palavra liberdade,

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante

a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.”

 

Seria então outro tempo onde os camponeses se afirmariam como sujeitos sociais, negando a subalternidade ao capital, marchando todos, conforme o poema, ‘pela vida verdadeira’.

 

Não construiriam um mundo à parte daquele em que vivem, mas, ao contrário, seus esforços seriam, juntamente com o dos trabalhadores das cidades, direcionados para mudar esse mundo de desigualdades sociais.  

 

Isso não significaria afirmar, supostamente, que os camponeses seriam contrários ou avessos ao desenvolvimento científico e tecnológico. Eles são críticos a um tipo de ciência que se pratica a partir dos valores dominantes, assim como avessos às tecnologias que derivam dos saberes que consideram tanto os produtores rurais como a natureza como meros objetos para a oferta de produtos agroalimentares demandados pela população. É explicito, portanto, o antagonismo entre a concepção de mundo camponesa e aquela que tem sido imposta pela ideologia capitalista, ainda que predomine na prática produtiva camponesa comportamentos que lhe são induzidas pela subalternidade ao capital a que estão submetidos. 

 

A superação desses antagonismos poderia ser considerada, no âmbito da temática aqui abordada como um tempo de redescobertas, talvez um ‘novo tempo’, onde não apenas as contradições sociais no campo seriam evidenciadas como também se apresentassem as soluções para supera-las. Um novo tempo onde as liberdades seriam mais do que palavras e esperanças, mas cheias de cotidianidades que passariam desapercebidas.

 

Não é demais ressaltar que as diversas e constantes lutas de resistência social camponesas contra as ofensivas do capital no campo são insuficientes, ainda que indispensáveis, devido às ações predatórias sociais e ambientais sempre constantes das diversas frações do capital, as quais mantêm os camponeses numa prática de defensiva politica permanente.

 

Os movimentos e organizações sociais e sindicais populares do campo devem ou deveriam desempenhar um papel da maior relevância no conjunto das ofensivas camponesas contra o capital. No entanto, é ainda débil a consciência política das instituições e movimentos que aglutinam, mediam e supostamente representem os interesses coletivos dos camponeses no sentido de considerarem, por um lado, os camponeses como classe social e, por outro lado e como consequência, as empresas capitalistas do campo como contrárias à reprodução social das unidades de produção camponesas, a não ser que estas se comportem como subalternas aos interesses de classe da burguesia.

 

As ofensivas camponesas necessitam afirmar a sua especificidade, como já insisti em outro texto[11] meu: ‘os camponeses, na sua práxis social, ao afirmarem a sua própria especificidade estão diretamente negando a lógica do capital que tem no lucro o único sentido de ser. E tendo como centralidade a reprodução social da família, os camponeses desenvolvem hábitos de consumo e hábitos de produção onde a família é a gestora da sua unidade de produção, a trabalhadora direta e aquela que usufrui os produtos do seu trabalho, não estabelecendo assim as relações sociais de assalariamento, vivenciam outra concepção de mundo muito diferente daquela que é determinada pelas relações sociais de produção capitalista.  E isso é intolerável para as classes dominantes burguesas.”

 

Para a lógica da acumulação capitalista a reprodução social do capital no campo considera como princípio que os recursos naturais (e nele a terra) são recursos à disposição (posse e uso) da burguesia. Negam, como pressuposto de classe, que a terra possa ser socializada ou compartilhada com os camponeses. Daí que, por exemplo, as iniciativas de reforma agrária só têm sido toleradas pelas diversas frações da burguesia na medida em que sejam subalternas aos interesses da reprodução do capital. Sem dúvida alguma que a maioria dos assentados da reforma agrária rompe com o padrão tecnológico dominante e pratica a agroecologia. Esta é uma das maneiras objetivas de se negar o padrão tecnológico dominante assim como a ideologia que o acompanha.

 

 A forte e consistente luta social realizada pelos movimentos e organizações sociais e sindicais de luta pela terra não tem conseguido afetar de maneira contundente os interesses de classe da burguesia em relação à apropriação privada da natureza. No entanto, a presença ativa e objetiva de lutas sociais contrárias à concentração e centralização da apropriação privada dos recursos naturais abre um caminho de contestação que evidencia o caráter predatório anti-social e anti-ecológico exercido pelas diversas frações da burguesia no campo. O mesmo se poderia argumentar em relação aos insumos impostos pelas empresas multinacionais na agricultura que são tão nocivos à vida como a apropriação privada dos recursos naturais.

 

Esses são parte dos pontos centrais não apenas da ideologia dominante como da sua prática política através dos governos e das suas instituições no âmbito da sociedade civil.

 

Nesse sentido o desafio está historicamente colocado: os recursos naturais devem ser de apropriação social e não privada, não devem se submeter ao controle do Estado burguês, mas aos interesses públicos e coletivos num contexto histórico onde o poder popular possa ser exercido plenamente. Enquanto isso não se dá o ‘tempo perdido’ tanto dos camponeses como do proletariado continuarão a ser apropriado pela burguesia, apesar das efetivas resistências sociais que se plasmam nos mais diversos espaços da sociedade.

 

Sem dúvida alguma que a busca do tempo perdido é uma expressão da linguagem como elemento auxiliar da reflexão. Isso porque dos tempos já vividos nos resta nós mesmos e nossas circunstâncias, outros nós mesmos, com as novas lembranças, experiências, ensinamentos e ambientes que pudermos manter, conservar e utilizar. E, quem sabe, a partir desse amplo espectro de       tempos vividos, poderemos reduzir ao máximo possível os tempos perdidos e potencializarmos os tempos redescobertos.

 

A construção da estratégia de luta social camponesa para a afirmação da sua autonomia relativa perante o capital, condição necessária e indispensável para que os camponeses se apropriem dos tempos perdidos nos seus processos de produção, se transformaria, assim, de tempo perdido para tempo redescoberto (ou reconquistado).

 

 Os tempos redescobertos camponeses seriam tempos de consciência da libertação da opressão exercida pelas diversas frações da burguesia no processo da construção da autonomia relativa camponesa perante o capital. E, mais, tempos reconquistados das suas vidas, de tempos de opressão para tempos de libertação.

 

(Curitiba, junho de 2015)

 

- Horacio Martins de Carvalho é agrônomo e consultor da Via Campesina.



[1] Consultar Carvalho, Horacio Martins (2015). Camponeses: mais além da convivência com o capital. Curitiba, janeiro, mimeo, 13 p.

[2] Não abordo neste texto as relações de exploração a que são submetidos os trabalhadores rurais assalariados permanentes e ou temporários.

[3] Reis, Cristiane de Souza. A função social da propriedade rural e o acesso à terra como respeito à dignidade humana. Rio Grande, XI, n. 53, maio 2008 in

http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2912.

Consulta dia 22 de junho de 2015, às 09: 44 horas.

[4] Ibid.

[5] Medeiros, Leonilde Sérvulo (2015). Conflitos fundiários e violência no campo, in Conflitos no campo no Brasil, 2014. Goiânia, CPT Nacional, pp. 26-30. Citação da p. 26-27.

[6] Cf. Vergés, Armando Bartra (2011). Os novos camponeses: leituras a partir do México profundo. São Paulo, Cultura Acadêmica e Cátedra  Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Rural, p. 21-23.

[7] Ver Ploeg, Jan Douwe van der (2008). Camponeses e impérios alimentares. Lutas por autonomia e  sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre, Editora da UFRGS.

[8] Carvalho, Horacio M. (2010). Na sombra da imaginação (1). Reflexão a favor dos camponeses. Curitiba, abril, mimeo 12 p.

[9]  Brito, Regina Helena P. e Vasconcelos, Maria Lucia M. Carvalho. Conceitos de Educação em Paulo Freire. Petrópolis, Vozes. Citação da  p. 183.

[10] Scheffer, Paul (2015). L’agrobusiness, tueur em série. Le monde diplomatique. Paris, mai;

 in http://www.monde-diplomatique.fr/2015/05/SCHEFFER/52939.

[11] Carvalho, Horacio M. (2010). Desafios para o campesinato como sujeito social. Curitiba, setembro, 4 p.

 

https://www.alainet.org/de/node/170647
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