A filosofia chinesa do cuidado: o Feng Shui
02/03/2014
- Opinión
Uma das vantagens da globalização que não é só econômico-financeira mas também cultural, é permitir-nos colher valores pouco desenvolvidos em nossa cultura ocidental.
No caso, temos a ver com o Feng-Schui chinês. Literalmente significa “o senhor das receitas”. Originalmente era o sábio que, a partir de sua observação da natureza e da fina sintonia com o Chi, a energia universal, indicava como bem montar a moradia.
Beatriz Bartoly, em sua brilhante tese em filosofia na UERJ, da qual fui orientador, escreve: “o Feng Shui nos remete para uma forma de zelo carinhoso” - nós diríamos cuidadoso e terno – “com o banal de nossa existência, que no Ocidente, por longo tempo, tem sido desprestigiado e menosprezado: cuidar das plantas, dos animais, arrumar a casa, cuidar da limpeza, da manutenção dos aposentos, preparar os alimentos, ornamentar o cotidiano com a prosaica, e, ao mesmo tempo, mejestosa beleza da natureza. Porém mais do que as construções e as obras humanas é a sua conduta e a sua ação que é alvo maior desta filosofia de vida, pois mais do que os resultados, o Feng-Shui visa o processo. É o exercício de embelezamento que importa, mais do que o belo cenário que se quer construir. O valor está na ação e não no seu efeito, na conduta e não na obra.”
Como se depreende, a filosofia Feng-Shui visa antes o sujeito que o objeto, mais a pessoa do que ambiente e a casa em si. A pessoa precisa envolver-se no processo, desenvolver a percepção do ambiente, captar os fluxos energéticos e os ritmos da natureza. Deve assumir uma conduta em harmonia com os outros, com o cosmos e com os processos rítmicos da natureza. Quando tiver criado essa ecologia interior, está capacitado para organizar, com sucesso, sua ecologia exterior.
Mais que uma ciência e arte, o Feng Shui é fundamentalmente uma ética ecológico-cósmica de como cuidar da correta distribuição do Chi em nosso ambiente inteiro.
Nas suas múltiplas facetas o Feng Shui representa uma síntese acabada do cuidado na forma como se organiza o jardim, a casa ou o apartamento, com harmoniosa integração dos elementos presentes. Podemos até dizer que os chineses como os gregos clássicos são os incansáveis buscadores do equilíbrio dinâmico em todas as coisas.
O supremo ideal da tradição chinesa que encontrou no budismo e no taoismo sua melhor expressão, representada por Laotse (do V-VI século a.C.) e por Chuang Tzu (século IV-V a.C.), consiste em procurar a unidade mediante um processo de integração das diferenças, especialmente das conhecidas polaridades de yin/yang, masculino/feminino, espaço/tempo, celestial/terrenal entre outras. O Tao representa essa integração, realidade inefável com a qual a pessoa busca se unir.
Tao significa caminho e método, mas também a Energia misteriosa e secreta que produz todos os caminhos e projeta todos os métodos. Ele é inexprimível em palavras, diante dele vale o nobre silêncio. Subjaz na polaridade do yin e do yang e através deles se manifesta. O ideal humano é chegar a uma união tão profunda com o Tao que se produza o satori, a iluminação. Para os taoistas o bem supremo não se dá no além morte como para os cristãos, mas ainda no tempo e na história, mediante uma experiência de não-dualidade e de integração no Tao. Ao morrer a pessoa mergulha no Tao e se uni-fica com ele.
Para se alcançar esta união, faz-se imprescindível a sintonia com a energia vital que perpassa o céu e a terra: o Chi. Chi é intraduzível, mas equivale ao ruah dos judeus, ao pneuma dos gregos, ao spiritus dos latinos e ao axé dos yoruba/nagô, ao vácuo quântico dos cosmólogos: expressões que designam a Energia suprema e cósmica que subjaz e sustenta todos os seres.
É por força do Chi que todas as coisas se transformam (veja o livro I Ching, o livro das mutações) e se mantém permanentemente em processo. Flui no ser humano através dos meridianos da acupuntura. Circula na Terra pelas veias telúricas subterrâneas, compostas pelos campos eletro-magnéticos distribuidos ao longo de meridianos da ecopuntura que entrecruzam a superfície terrestre. Quando o Chi se expande significa vida, quando se retrái, morte. Quando ganha peso, apresenta-se como matéria, quando se torna sutil, como espírito. A natureza é a combinação sábia dos vários estados do Chi, desde os mais pesados até os mais leves.
Quando o Chi emerge num determinado lugar, surge uma paisagem aprazível com brisas suaves e águas cristalinas, montanhas sinuosas e vales verdejantes. É um convite para o ser humano instalar ai sua morada. Ou encontra um apartamento no qual se sente “em casa”.
A visão chinesa do mundo privilegia o espaço, à diferença do Ocidente que previlegia o tempo. O espaço para o taoismo é o lugar do encontro, do convívio, das interações de todos com todos, pois todos são portadores da energia Chi que empapa o espaço. A suprema expressão do espaço se realiza na casa, no jardim ou no apartamento bem cuidado.
Se o ser humano quiser ser feliz deve desenvolver a topofilia, o amor ao lugar onde mora e onde constrói sua casa e seu jardim ou mobilia seu apartamento. O Fen Shui é a arte e técnica de bem construir a casa, o jardim e decorar o apartamento com sentido de harmonia e beleza.
Face ao desmantelamento do cuidado e à grave crise ecológica atual, a milenar sabedoria do Feng-Shui nos ajuda a refazer a aliança de simpatia e de amor para com a natureza. Essa conduta reconstrói a morada humana (que os gregos chamavam de ethos), assentada sobre o cuidado e a suas múltiplas ressonâncias como a ternura, a carícia e a cordialidade.
- Leonardo Boff é teólogo e escritor, escreveu: Virtudes para um outro mundo possivel, 3 vol. Vozes 2006.
https://www.alainet.org/pt/articulo/83657
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