Habemus Papam subversivo

14/01/2014
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Surpreendentes notícias chegaram de Londres durante as recentes festividades: o Financial Times, no dia de Natal, resolveu atacar abertamente o papa Francisco pelas posições críticas que ele tinha recentemente manifestado sobre a desigualdade no mundo e, em geral, contra as posições mais extremas do atual sistema econômico.
 
O colunista John Gapper, britânico que mora em Nova York, é um dos mais badalados comentaristas econômico-financeiros do jornal londrino. O que mais espantou foi, porém, a escolha simbólica feita pelos editores. O FT é considerado uma espécie de bíblia do neoliberalismo, e a escolha do dia 24 de dezembro para polemizar abertamente com o papa indica que está em jogo um desafio profundo. Em outros termos, a cúpula do sistema capitalista não gosta do novo papa, e ao mesmo tempo o teme: o posicionamento do FT é só uma das primeiras manifestações de antagonismo em uma luta que se prefigura duríssima. Agora, para todos aqueles, como este modesto contador de fatos, que atribuem ao neoliberalismo as principais responsabilidades pela atual decadência mundial, o fato de o Financial Times colocar o papa Francisco na barricada dos adversários representou notícia animadora. Se o FT está contra Francisco, nós estamos felicíssimos por ter o papa como aliado e, portanto, melhor presente de Natal não poderíamos ter recebido de além da Mancha.
 
Sem meios-termos, desde as primeiras linhas, o longo artigo do Financial Times afirma que o papa está errado na análise econômica sobre os desequilíbrios mundiais denunciados na sua primeira Exortação Apostólica, batizada Evangelii Gaudium (o Gáudio do Evangelho, 24 de novembro de 2013). “O papa Francisco põe a mira no moderno capitalismo por encorajar a ‘idolatria do dinheiro’ e a crescente desigualdade no mundo”, ataca Gapper. Vem depois a citação literal de uma só frase, no parágrafo 56 da Exortação: “Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira”. Até aqui a citação do FT, mas na verdade o papa continuava, afirmando: “Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum”. “Considerando o mundo como um todo”, prossegue o FT, “o papa está errado em ambos os pontos. Não só a distribuição da renda ficou mais equitativa, mas também o capitalismo pode se gabar desse resultado”.
 
É verdade que a distância entre ricos e pobres aumentou no Ocidente, concede Gapper, mas em nível global nos últimos anos a desigualdade econômica diminuiu. Citando o índice Gini de desigualdade global, o comentarista observa que, nos países emergentes, China e Índia em particular, onde vive a grande maioria da população mundial, a desigualdade diminuiu como resultado da globalização. Na prática, observa o FT, acontece que na última década, em termos econômicos, houve duas classes de “vencedores” no mundo: os ricos em todos os lugares e a classe média nos países emergentes. E houve dois perdedores: os pobres em todos os lugares e a classe média nos países ocidentais. Através de inúmeras estatísticas e gráficos, o comentarista tenta fortalecer suas posições, mas, na ânsia de demonstrar o óbvio, perde de vista a complexidade do conjunto.
 
A Evangelii Gaudium, texto articulado que só em parte se dedica às questões sociais do mundo contemporâneo, já foi violentamente criticada por alguns expoentes da direita americana, que, sem perífrases, colocaram o pontífice entre os marxistas por ter ousado criticar o capitalismo. A bem da verdade, a opinião do papa Francisco parece ser compartilhada por outro perigoso esquerdista, sempre com base nas convicções da direita americana. Estamos falando do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que em recente discurso lamentou o fato de que os 10% mais ricos da população americana, que antes levavam para casa um terço da renda nacional, hoje chegam a levar mais da metade. E que os administradores das grandes empresas, que antes ganhavam de 20 a 30 vezes mais do que o salário médio, agora ganham 273 vezes a média americana. “A desigualdade”, tem afirmado recentemente Obama, “é a questão que define o nosso tempo. No que resta da minha Presidência, todos os meus esforços serão focalizados em limitá-la”.
 
O artigo do FT não chega às mesmas grosseiras conclusões do Tea Party americano, mas parece ser inspirado pelas mesmas preocupações, ou seja, a perda de hegemonia mundial do núcleo duro do capitalismo central, provocada pelo papa que veio do “fim do mundo”. O presidente negro incomoda, mas já foi parcialmente neutralizado e agora representa sem dúvida uma preocupação menor.
 
A leitura integral e uma análise complexa da Exortação Apostólica levam a entender em todas as suas potencialidades as posições da nova doutrina social que Francisco quer adotar para a Igreja e, ao mesmo tempo, levar aos homens de boa vontade. Três questões se destacam claramente na grande riqueza de conteúdo da Evangelii Gaudium: uma ideia de Igreja aberta e proativa, uma forte crítica ao capitalismo neoliberal e uma perspectiva ética de inclusão social.
 
O papa não se expressa contra nem a favor de determinado sistema de mercado, mas vai direto ao coração da crise mundial que se espraia em nosso tempo. Estamos assistindo a um colapso de todo o sistema monetário, o que é consequência da derrota do conjunto de valores que dominou a terceira fase da Revolução Industrial, a tecnológico-financeira. E Francisco demonstra-se muito mais firme e claro do que seus antecessores em condenar a injustiça e a especulação: “Uma reforma financeira que levasse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentar este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar!”
 
Aparece nítido no texto papal o diagnóstico da falência ético-antropológica do sonho de um bem-estar puramente materialista que caracteriza o capitalismo contemporâneo, com base unicamente egoísta e individualista. “Para apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com esse ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos darmos conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse responsabilidade de outrem, que não nos compete. A cultura do bem-estar anestesia-nos a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas essas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem mero espetáculo, que não nos incomoda de forma alguma.”
 
O que o papa Francisco indica é a necessidade de uma saída social e humana da crise econômica: “Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência dessa situação, grandes massas da população veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída”. O papa lembra “que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los”. Só dessa maneira se pode gerar a vitória da economia sobre as finanças e reafirmar o papel dos povos nas atividades produtivas e de consumo. Em suma, a economia deve ser posta a serviço do homem, para cada homem, e o bem comum deve ser declinado em sentido popular e social, não individualista e centralizador.
 
As mais belas páginas da Exortação referem-se aos pobres: “Com a exclusão, fere-se, na própria raiz, o fato de pertencermos à sociedade em que vivemos, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder, já não está nela, mas fora. Os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’”. Contudo, o papa Francisco não propõe uma visão crítica de pauperismo moralizante, tampouco oferece receitas pragmáticas: seu papel não é esse. Sem dúvida, opera uma inversão radical na maneira de enfrentar globalmente a questão da exclusão social, atribui dignidade à pobreza e introduz com força a questão da exclusão na democracia de amanhã. Seu raciocínio é sobretudo conceitual e ideal, e por isso preocupa tanto seus detratores.
 
O artigo do FT termina com outra citação do papa: “Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um retorno da economia e das finanças a uma ética propícia aos seres humanos”. Com indescritível impudência (ou talvez por simples ignorância) o articulista conclui perguntando retoricamente: “A questão é: para quais seres humanos?”
 
Qualquer comentário parece supérfluo. Preferível recorrer ainda às palavras do papa: “Assim como o bem tende a difundir-se, também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça”.
 
- Claudio Bernabucci, de Roma
 
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/82320
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