A desumanidade em close, sintoma de uma sociedade doente

18/12/2013
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As cenas exibidas no jogo Atlético Paranaense e Vasco da Gama, em Joinville (SC), na última rodada do Brasileirão – para além de todos os erros das autoridades públicas e privadas, e que poderiam ter evitado ou minimizado o problema –, são a confirmação da falência do Estado e das instituições democráticas para lidar com um fenômeno que se repete com enorme frequência diante da passividade de quem deveria buscar soluções e acionar mecanismos para evitar atos de selvageria, dentro e fora dos estádios.
 
Outros países tomaram providências e acabaram com os torcedores-vândalos em curto espaço de tempo. Basta citar os hooligans, no Reino Unido, por exemplo. Aqui, clubes e torcidas organizadas são uma via de mão dupla, num toma- lá-dá-cá de interesses escusos. No Brasil, para uma parcela das torcidas, o jogo de futebol deixou de ser a principal motivação para ir aos estádios. A adrenalina de confrontos com torcedores adversários parece produzir mais sensação de prazer do que um grito de gol. Parece haver uma glorificação da brutalidade, como, por exemplo, na ascensão como fenômeno de massa, com direito a cobertura permanente da televisão, das lutas sangrentas do UFC e MMA. Não é isso, isoladamente, que produz violência nas ruas ou nos estádios, mas algo está errado numa sociedade que elege esses confrontos à condição de espetáculo até mesmo na principal rede de TV do país. Não demorou, é claro, para que seus principais lutadores se transformassem em ídolos para crianças, adolescentes e adultos.
 
Talvez não seja apenas uma coincidência que o principal narrador esportivo do “país do futebol” leve também todo o seu entusiasmo às lutas marciais. Não, não há relação direta entre uma coisa e outra, eu sei. Mas ninguém pode fugir à contradição de, numa determinada hora e lugar, animar o “vale-tudo” e, em outra, fazer a apologia da paz e do fair play.
 
Profi ssionais da mídia, donos de emissoras, patrocinadores e governos que promovem lutas encarniçadas à condição de show não podem lavar as mãos como se não houvesse, por ínfima que seja, uma incoerência. O que se exibe nos meios de comunicação, não raro, é modelo para milhões de pessoas, modela consciências. Emissoras de tevês – e rádio – são concessões públicas cuja principal finalidade (artigo 221, parágrafo primeiro da Constituição) é dar “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”. Pergunta: Quem cumpre? Quem fiscaliza?
 
Há muitos interesses em jogo e muito dinheiro para bancar essas lutas, que remetem aos tempos das arenas de gladiadores romanos. O espetáculo da brutalidade, nos ringues ou nos estádios de futebol, é sintoma de algo muito mais profundo que acontece com a sociedade brasileira. Se não bastasse a violência das guerras entre torcidas, que choca pela sua crueldade e estupidez, é cada vez mais difícil explicar e compreender por que seres humanos agem com tanta desumanidade, covardia e irracionalidade quando, mesmo diante de um corpo já inerte, pessoas continuem motivadas a dar socos, chutar e até a golpear com pedaços de pau ou barras de metal, numa atitude que, evidentemente, poderá resultar em morte.
 
Ausência total de sentimentos, nenhum remorso, a desumanidade em close nas câmeras. O amor a um time elevado à máxima potência do ódio ao adversário, seja ele quem for. Uma exibição de horror e perigosa bestialidade a nos relembrar, a todo momento, até onde a insensatez humana pode nos levar. E de quanto terror, tortura e ódio já fomos capazes de produzir ao longo da nossa história.
 
O ovo da serpente está sendo gestado. O que acontece com o futebol é só o sintoma de algo mais profundo: o diagnóstico de uma sociedade que está doente. Na qual cada vez mais pessoas desdenham do espírito público e só querem viver seu egoísmo consumista. Uma sociedade que esqueceu os valores fundamentais à convivência; que não abre mão da enorme desigualdade. Um povo massacrado pela falta de educação, cultura e oportunidades.
 
Uma mídia manipuladora, demagógica, que se especializou em “anestesiar” as consciências e impedir o verdadeiro exercício da cidadania. Uma sociedade que continua racista, preconceituosa e discriminatória – a última a abolir a escravidão no planeta. Com uma das mais violentas polícias do mundo, para manter a segregação entre ricos e pobres.
 
Um sistema político quase impraticável se os eleitos não aderirem aos coronéis que mantêm o poder desde as capitanias hereditárias. Um parlamento em que a maior parte dos que ali estão legislam em causa própria ou em favor de grupos muitos restritos, com vistas ao enriquecimento fácil e rápido. Um poder judiciário que pune, seletivamente, de modo casuístico, e que se mantém de olhos vendados diante das injustiças sociais.
 
Enfim, a lista de nossas mazelas é ampla, geral e irrestrita, e explica boa parte do caos que se vê no interior de muitas famílias, nas ruas, nos bairros, na guerra que se trava em cada cidade e que toma conta do país, numa explosão de violência que parece não ter fim e que não será solucionada com mais violência policial. Somente em 2012, morreram assassinadas 50.108 pessoas. Faça as contas: durante os 90 minutos de uma partida de futebol são quase nove assassinatos, no país que também registrou mais de 50 mil estupros no último ano e 50 mil mortes anuais no trânsito.
 
Se é necessário, circunstancialmente, reprimir e punir, é muito mais eficaz educar, dar oportunidades, propor leis e mecanismos que diminuam o abismo social entre ricos e pobres; ensinar a respeitar toda diversidade, étnica, cultural, religiosa, política, de gênero e orientação sexual; criar uma polícia para proteger o cidadão, mais que o patrimônio; produzir informação, cultura e entretenimento de qualidade, com uma democrática divisão das concessões de rádio e televisão, consolidar, enfim, uma sociedade mais justa e solidária. Sem isso, a barbárie vai se espalhar e produzir cada vez mais vítimas. Dentro e fora de estádios.
 
- Celso Vicenzi é jornalista.
 
 
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