A militarização do discurso

27/10/2013
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A cada dia que passa, fica mais visível o pobre viés editorial da dita grande imprensa. É impressionante a falta de capacidade ou de boa fé dos jornais e portais de alto alcance e investimento em cobrir um momento histórico, político, cultural e social tão ímpar, inédito e rico de fatos, debates, idéias, disputas e reflexões. Eu me pergunto: que tipo de força apaga qualquer resquício de senso crítico em tais editorias, a ponto de todos os acontecimentos e debates serem tratados de uma forma maniqueísta, reduzindo uma questão infinitamente complexa a um roteiro enlatado hollywoodiano?
 
O quê se vê é a redução de um levante popular a uma batalha épica entre o “bem e o mal”, quando na verdade não há “bem e mal”, mas forças políticas com diferentes representações na sociedade, que cometem erros e acertos. A abordagem raramente permite esse tipo de reflexão, ao contrário, dá uma formula mágica (entenda-se bélica, jurídica e aterrorizante) para interpretar os fatos noticiados. E esse é o caminho mais curto para a manipulação do imaginário e da opinião pública.
 
Isso pôde ser visto, por exemplo, no caso da agressão ao coronel Reynaldo Rossi, ocorrida na última sexta-feira, no terminal Parque Dom Pedro, durante manifestação pela tarifa zero. Na ocasião, diversos manifestantes black blocks cercaram o militar e o golpearam, causando graves ferimentos no oficial e uma comoção generalizada da imprensa. Ao deparar com uma matéria publicada no portal Terra, me senti como se estivesse lendo um perfil de uma provável reencarnação de Jesus Cristo, a história de um velho hippie que sobrevive desde os anos 60 graças a uma floricultura montada no quintal de casa ou algo do tipo. A forma como foi descrito o coronel direcionava claramente a interpretação do texto para esse lado. Sejamos um pouco menos ingênuos, por favor.
 
É bem verdade que houve um uso desproporcional da força por parte dos manifestantes e, como defensores dos direitos humanos que somos, nós comunicadores não deveríamos nunca nos posicionar a favor de uma agressão brutal como essa. Mas um fato desta complexidade merece uma abordagem um pouco mais aprofundada. E refrescando a memória dos coleguinhas, vale lembrar que o coronel Rossi foi o comandante da operação “anti-manifestação”, lá atrás, na noite de 13 de junho, quando dezenas de jornalistas foram atacados pela Tropa de Choque, sob as ordens deste senhor. Naquela noite, o fotógrafo Sérgio Silva foi ferido nos olhos por uma bala de borracha atirada por um dos homens de Rossi e acabou cego. Uma fotógrafa da Folha também foi atingida nos olhos. Jornalistas eram revistados, presos para averiguação e até atacados fisicamente se portassem qualquer equipamento de proteção, como capacetes, máscaras de gás e vinagre. E mesmo assim os coleguinhas não se posicionam de uma maneira mais incisiva a respeito dos fatos. Mas tudo bem, seria pedir muito. Afinal, “tenho que garantir o meu, né? O mercado está muito ruim para todo mundo”.
 
Tudo bem, exigi demais. Mas então por que não podem simplesmente oferecer uma análise só um pouquinho mais crítica e menos maniqueísta? Ou dar a mesma atenção para tantos casos de abusos cometidos pela polícia militar contra jornalistas, advogados e manifestantes, pra não falar da imensurável barbárie nas periferias, longe dos holofotes? Ou sobre as revistas desumanas, como num caso fotografado recentemente no Rio, em que há uma garota cercada por policiais e sendo revistadas por um deles, homem. Detalhe: ela aparece arreando a calça e a calcinha, enquanto o agente do Estado usa uma lanterna para averiguar suas partes íntimas. Por acaso isso não é digno de ser noticiado pelo grande partido político que se tornou a imprensa corporativa brasileira? Até quando nossos comunicadores continuarão fazendo eco para as idéias mais baixas e obscuras presentes na nossa sociedade? Fazendo o bom e velho coro fascista, aquele que visa pautar os comportamentos e táticas de uma luta social da qual não faz parte, por falta de interesse e de sensibilidade?
 
Não estou dizendo para aplaudirem toda e qualquer coisa que venha das ruas. O apelo é para que nosso trabalho simplesmente não seja esvaziado por políticas editoriais maniqueístas e panfletárias e que, sendo a favor ou contra determinada pauta ou fato ocorrido, nosso dever é analisar com um mínimo de crítica. Deixemos os coros histéricos para os medíocres, a não ser que nossa escolha seja a de seguir o mesmo caminho de sensacionalismo e mediocridade.
 
Falei.
 
- Raphael Sanz é jornalista.
 
Segunda, 28 de Outubro de 2013
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