A derrota da Comuna de Paris
Os destrutores da Comuna precisaram adotar parte de seu programa para governar o país onde as contradições de classe tinham se manifestado de modo mais aberto e agudo.
- Análisis
A derrota da Comuna foi a derrota da França revolucionária, e o início de um século de miséria, morte e humilhações para os povos coloniais dominados pela nação porta-voz da liberdade. Em 1789, 1792, 1820, 1830, 1848 e 1871, uma série de revoluções transformou o país no centro político do mundo, realizando o ciclo da revolução democrática até a revolução proletária passando por todas as etapas intermediárias, fazendo da França o modelo para o pensamento político de todo o mundo. Por que a Comuna foi derrotada? Seu primeiro erro, “decisivo” segundo Marx, aconteceu no seu dia inicial, 18 de março de 1871, quando o governo de Thiers evacuou Paris. O Comitê Central parisiense deveria, sem demora, ter ordenado à Guarda Nacional marchar sobre Versalhes, inteiramente indefesa. Também deixou o exército regular abandonar Paris depois deste fracassar em Montmartre; suas tropas haviam confraternizado com a população parisiense, mas foram posteriormente retomadas pela oficialidade e utilizadas contra Paris. Por que a Comuna não perseguiu Thiers, seu governo e suas tropas desmoralizadas? Pierre Luquet opinou que foi principalmente pela crença ilusória na possibilidade de chegar a um acordo com o governo “legal”: “O decreto de morte da Comuna foi pronunciado no próprio dia de sua vitória, pelo Comitê Central da Guarda Nacional”.[i] Este, contrariamente a sua declaração antimilitarista de 29 de março, não abdicou de sua vontade de dirigir militarmente o movimento, concorrendo de fato com a Comuna. A desunião entre o Comitê Central e o Conselho Executivo da Comuna se tornou pública, enfraquecendo a revolução. A Comuna, ainda assim, garantiu o funcionamento da máquina administrativa parisiense, abandonada por muitos funcionários públicos, sobretudo pelas chefias. Os correios, os trens, a gráfica nacional, a receita, as escolas, continuaram a funcionar. Conseguiu manter a Guarda Nacional com os soldos em dia e equipada, e proibiu a acumulação de cargos remunerados.
A Comuna foi criticada por ter descuidado do apoio às lutas operárias da província e, particularmente, das Comunas que surgiram em algumas grandes cidades do interior (“para levantar a França, foi alocado no máximo cem mil francos”, queixou-se Lissagaray); a Comuna não conseguiu compreender o papel eminentemente impulsionador e centralizador que poderiam desempenhar suas diretivas: ela poderia tentar promover uma coalizão dos diversos movimentos municipais contra o governo de Versalhes; nem mesmo percebeu o que representaria a busca de atividades e movimentos de solidariedade: a possibilidade de abertura de novos focos de luta e de esclarecer e desfazer as mentiras de Versalhes, sobretudo junto ao campesinato (grande maioria da população da França). Também foi apontado o descuido da Comuna para com o movimento operário internacional: havia uma comissão encarregada de manter as relações com o exterior, mas esta esqueceu quase totalmente o resto do mundo. Lissagaray apontou que, por toda a Europa, a classe operária bebia avidamente as novas de Paris, combatia com a grande cidade, multiplicava os comícios, as passeatas, os apelos. Seus jornais lutavam contra as calúnias da imprensa burguesa. O dever da comissão para o exterior era de alimentar esses auxiliares. Alguns jornais estrangeiros endividaram-se até a falência para defender a mesma Comuna de Paris que deixava seus defensores perecerem por falta de apoio econômico. Desde o primeiro instante, as velhas classes possuidoras, ao contrario, reagrupadas em Versalhes (com Thiers e a Assembleia Nacional no comando), organizaram-se para esmagar a Comuna, obtendo da Prússia a libertação de centenas de milhares de soldados presos na guerra. A campanha propagandística internacional contra a Comuna foi feroz.
A Comuna foi apresentada como inimiga de Deus e da religião, como o Anticristo anunciado enfim chegado. A Comuna, tendo proclamado a separação da Igreja do Estado, não podia senão excluir a instituição religiosa do ensino público que, por sua vez, devia ser organizado. Mas a Comuna não ficou só nesse plano: deu-se por tarefa inicial erradicar da escola, em todos os níveis, tanto a influência clerical-religiosa, que incitava os homens, desde a sua infância, a submeter-se ao seu destino, quanto à influência da moral burguesa. O ensino religioso nas escolas tinha sido reforçado depois do fracasso da Revolução de 1848: “Não se pode salvar a propriedade senão através da religião, que ensina a carregar docilmente a cruz”, diziam Montalambert, Falloux e Thiers. Charles Fourier havia criticado duramente a falsidade do ensino que inculcava nas crianças o “amor ao próximo”, enquanto a indústria e o comércio os lançavam à concorrência desenfreada, assim como a moral que defendia a “virtude”, enquanto a sociedade ensinava-lhes a ignorá-la. Tendo levantado a bandeira da República do Trabalho, a Comuna tentou levar adiante uma revolução cultural, que eliminasse: 1) a divisão entre trabalho manual e intelectual; 2) a opressão das mulheres pelos homens; 3) a opressão das crianças pelos adultos. A Comuna esforçou-se em providenciar aos professores “uma remuneração condizente com suas importantes funções” e, pela primeira vez, proclamou a isonomia salarial e de trabalho entre docentes, independente de seu sexo. Além de suprimir o ensino da religião, a Comuna ainda procurou criar o “ensino gratuito, laico e obrigatório”; uma Comissão foi instituída para transformar o ensino privado confessional em ensino laico, bem como para organizar e desenvolver o ensino profissional. A Comuna conseguiu abrir duas escolas profissionais: uma para moços e outra para moças.
A Delegação do Ensino da Comuna proclamou, a 17 de maio de 1871, sob a assinatura de Edouard Vaillant: “Considerando importante que a Revolução Comunal afirme seu caráter essencialmente socialista por uma reforma do ensino, assegurando a todos a verdadeira base da igualdade social, a instrução integral a que cada um tem direito e facilitando-lhe a aprendizagem e o exercício da profissão para a qual o dirigem seus gostos e aptidões. Considerando, por outro lado, que enquanto se espera que um plano completo de ensino integral possa ser formulado e executado, é preciso decretar as reformas imediatas que garantam, num futuro próximo, essa transformação radical do ensino. A Delegação do Ensino convida as municipalidades distritais a enviar, no mais breve prazo possível, para o doravante Ministério da Instrução Pública, as indicações e as informações sobre os locais e estabelecimentos melhor apropriados à pronta instituição de escolas profissionais, onde os alunos, ao mesmo tempo em que farão a aprendizagem de uma profissão, completarão sua instrução científica e literária”.
Por causa de sua prematura derrota, a Comuna de Paris não teve o tempo de dar sua medida nos mais diversos campos, incluído o escolar. A Circular Vaillant indicava, contudo, que ela pretendia realizar uma reforma socialista da escola. A instrução integral, tendendo a fazer homens completos, a desenvolver harmoniosamente todas as faculdades, a ligar a cultura intelectual à cultura física e ao ensino técnico, era uma das reivindicações da Associação Internacional dos Trabalhadores, votada no seu Congresso de Genebra de 1866, e na resolução do Congresso da AIT de Lausanne de 1867. A 9 de maio de 1871, a seção parisiense da Internacional havia pedido à Comuna para perseverar na via do progresso do espírito humano, decretando a instrução laica, primária e profissional, obrigatória e gratuita em todos os graus. No “Jornal Oficial” de 13 de abril, um manifesto do cidadão Rama, referendado por Benoît Malon, desenvolvia, sobre o ensino primário, opiniões inspiradas no espírito laico e irreligioso. Por pouco que tenham podido fazer, nem por isso os communards deixaram de entrar no caminho de uma reorganização completa do ensino.
A Comuna realizou assim, na sua breve existência, uma obra de democratização e laicismo do ensino para pô-lo a serviço da “República do Trabalho”. Marx comentou que “dessa maneira, não somente a instrução tornou-se acessível a todos, mas também a própria ciência foi libertada dos grilhões que lhe tinham sido impostos pelos preconceitos de classe e a força governamental”:[ii] “A Delegação da Educação tinha por obrigação uma das mais belas páginas da Comuna. Após tantos anos de estudo e experiência, essa questão devia surgir inteiramente elaborada de um cérebro realmente revolucionário. A Delegação nada deixou como testemunho para o futuro. No entanto, o delegado era um homem dos mais instruídos. Contentou-se em eliminar os crucifixos das salas de aula e em fazer um apelo a todos os que haviam estudado as questões da educação. Uma comissão foi encarregada de organizar o ensino primário e a formação profissional; todo seu trabalho foi anunciar, em 6 de maio, a inauguração de uma escola. Outra comissão, para a educação das mulheres, foi nomeada no dia da entrada dos versalheses. O papel administrativo dessa delegação restringiu-se a decretos pouco viáveis e a algumas nomeações. Dois homens dedicados e talentosos, Elisée Reclus e Benjamin Gastineau, foram encarregados de reorganizar a Biblioteca Nacional. Proibiram o empréstimo de livros, pondo fim ao escândalo de privilegiados que constituíam bibliotecas à custa das coleções públicas. A Federação dos Artistas, cujo presidente era Courbet – nomeado membro da Comuna em 16 de abril – e que contava entre seus integrantes com o escultor Dalou, ocupou-se da reabertura e da fiscalização dos museus”.
Enfim, “nada se saberia dessa revolução em matéria de educação sem as circulares das municipalidades. Várias haviam reaberto as escolas abandonadas pelas congregações e pelos professores primários da cidade, ou tinham expulsado os padres que lá restavam. A do XX Distrito vestiu e alimentou as crianças, lançando assim as primeiras bases das Caixas Escolares, tão prósperas a partir de então. A delegação do IV Distrito dizia: ‘Ensinar a criança a amar e a respeitar seu semelhante, inspirar-lhe o amor à justiça, ensinar-lhe que deve se instruir tendo em vista o interesse de todos: eis os princípios morais em que doravante repousará a educação comunal’. ‘Os professores das escolas primárias e das creches’, prescrevia a delegação do XVII Distrito, ‘empregarão exclusivamente o método experimental e científico, que parte sempre da exposição dos fatos físicos, morais e intelectuais’. Ainda se estava longe de um programa completo”.[iii] Considerou-se instituir uma Escola Nacional de Serviço Público (uma ideia da qual, ironicamente, surgiria a ENA, École Nationale d’Administration, centro de formação por excelência da burocracia estatal francesa). Em apenas dois meses, era impossível levar à prática todos os planos. Mas ficou claro que a Comuna pretendia programar um sistema de ensino integral, a todos os níveis, que unisse trabalho manual e intelectual, através de um ensino simultaneamente científico e profissionalizante. A Comuna, por outro lado, combateu a opressão das mulheres baseada na ignorância. Um artigo de 9 de abril de 1871 do jornal revolucionário Père Duchêne advertia: “Se vocês soubessem, cidadãos, o quanto a Revolução depende das mulheres. Nesse caso, estariam atentos para a educação das meninas. E não as deixariam, como se fez até agora, na ignorância!”.[iv] A derrota da Comuna impôs um retrocesso social e cultural extraordinário. Mas a semente deixada pela Comuna – a escola pública, laica, gratuita e obrigatória; a libertação feminina – floresceu novamente nas lutas sociais, antes que o século XIX concluísse. A destruição do caráter de classe do ensino e da escola, da elitização da universidade, foram postas pela Comuna através do único meio possível: a destruição do Estado opressor e o fim do caráter classista da sociedade toda.
A Comuna de Paris foi uma primeira tentativa de governo operário. Iniciada ao término de uma guerra, espremida entre dois exércitos prontos a dar as mãos para esmagá-la, ela não se atreveu a enveredar plenamente pelo caminho da revolução econômica. Não iniciou um processo de expropriação do capital ou de organização do trabalho sobre bases socialistas. Não soube nem ao menos avaliar os recursos da cidade. No dia 29 de março, a Comuna se havia organizado em dez comissões, tendo como base de referência os ministérios até então existentes (menos o ministério dos cultos, que foi suprimido): Militar, Finanças, Justiça, Segurança, Trabalho, Subsistência, Indústria e Trocas, Serviços Públicos, Ensino — coroadas por uma Comissão Executiva. No meio tempo, o governo de Versalhes não ficou inativo. Trouxe para a região parisiense tropas oriundas do interior. O armistício autorizava a França a manter apenas quarenta mil soldados na região parisiense; o governo Thiers negociou com os alemães a autorização para concentrar mais tropas, com o fim de “restabelecer a ordem”. Bismarck foi muito compreensivo: o acordo de 28 de março autorizou a libertação de oitenta mil homens. Após outras negociações, Versalhes obteve a autorização de concentrar 170 mil homens, dos quais cerca de cem mil eram prisioneiros franceses libertados pelos alemães para o fim específico de destruir a Comuna. A Comuna preparou desastradamente sua defesa militar: “Muitos batalhões estavam sem chefes desde 18 de março; os guardas nacionais, sem quadros; os generais improvisados, que assumiam a responsabilidade de liderar quarenta mil homes, não tinham qualquer conhecimento militar, nem jamais haviam conduzido um batalhão ao combate. Não tomaram as providências mais elementares, não reuniram nem artilharia, nem carregamento de munição, nem ambulâncias, esqueceram-se de fazer uma ordem do dia, deixaram os homens sem víveres por várias horas numa bruma que lhes penetrava os ossos. Cada federado seguiu o chefe que quis. Muitos não tinham cartuchos, pois acreditavam, como diziam os jornais, que se tratava de um simples passeio militar”.[v] No dia 30 de março, o governo de Versalhes começou a investir contra Paris, apoderando-se inicialmente do município fronteiriço de La Courbevoie. Em 2 de abril, ocorreu o primeiro confronto entre as tropas de Paris e as de Versalhes, ainda furiosas pela derrota da França na guerra franco-prussiana e pelo acordo punitivo de janeiro de 1871. O confronto concluiu com o revés dos parisienses; os prisioneiros communards foram fuzilados pelos versalheses. A notícia agitou Paris.
Cedendo à pressão popular, a Comuna decidiu enviar tropas contra Versalhes. Mal organizada, com ilusões de que os soldados de Versalhes não ousariam atirar contra a Guarda Nacional, a iniciativa resultou em uma séria derrota. Em 5 de abril, a Comuna tomou a decisão de executar três reféns por cada federado executado por Versalhes (o decreto só seria aplicado, no entanto, nos últimos dias da Comuna). A luta militar entrou numa fase de guerra de bombardeios à distância, com escaramuças corpo a corpo só de vez em quando. Versalhes afirmou várias vezes que não aceitava qualquer pacificação ou conciliação, apenas a rendição pura e simples de Paris. O fim dramático da Comuna se precipitou: em 19 de abril a Comuna votou, quase por unanimidade, uma Declaração ao Povo Francês, que apresentava seu programa e sua proposta de Constituição Comunalista que, segundo Marx, teria “começado a regeneração da França”. Em 21 de abril, houve uma reestruturação das Comissões, que passaram a ser encabeçadas por um delegado, os nove delegados constituindo a Comissão Executiva. Como isto não bastasse para fortalecer e agilizar a ação da Comuna, foi criado um Comitê de Salvação Pública, de cinco membros, “responsável apenas diante da Comuna” (proposta que encontrou a oposição de uma importante minoria, entre os quais os membros da AIT). O novo comitê, que pretendia reproduzir o método e, sobretudo, o fantasma do Comité de Salut Public da “Grande Revolução” do século XVIII, não teve o efeito mágico esperado por seus proponentes. A decisão de instalar barricadas era pouco mais que uma ameaça, pois elas haviam sido tornadas inúteis depois que o Barão Haussmann reformara Paris nos anos 1860, dotando-a de largas avenidas para permitir a passagem das tropas. A partir de 26 de abril, os federados começaram a perder posições: Les Moulineaux naquele dia; as fortificações de Moulin-Saquet em 4 de maio; perda de Clamart no dia seguinte; revés de Vanves, em 6 de maio; perda das fortificações de Issy no dia 8, dia em que Thiers lançou um ultimato aos parisienses. Em 9 de maio, o Comitê de Salvação Pública sofreu uma renovação, na esperança de melhorar sua ação efetiva. No dia 10, o governo de Thiers assinou o tratado de paz definitivo entre França e Alemanha em Frankfurt am Main. Alemanha libertou prisioneiros de guerra para compor as forças que o exército francês usaria contra a Comuna, que possuía menos de 15.000 milicianos defendendo a cidade contra o exército sob o comando de Versalhes. No dia 20 de maio, finalmente, os versalheses entraram em Paris: um traidor lhes abriu uma porta; 130 mil homens começaram a penetrar na cidade. O alerta foi dado; iniciativas de resistência foram tomadas. No dia 22 de maio, o Comitê de Salvação Pública lançou um apelo geral às armas. Os bairros populares encheram-se de barricadas. Praticava-se a guerra de ruas; para dificultar o avanço do adversário, incendiaram os edifícios na hora de abandoná-los. As tropas dos versalheses foram obrigados a conquistar a cidade quarteirão por quarteirão, casa por casa.
Em sua queda os revolucionários destruíram os símbolos do Segundo Império Francês – prédios administrativos e palácios – e executaram reféns, em sua maioria clérigos, militares e juízes. Ao todo, a Comuna de Paris executou cem pessoas. Em 24 de maio, a Comuna abandonou o Hôtel-de-Ville, sede do governo, para instalar-se na Prefeitura da 11ª região administrativa. No dia 25 de maio, aconteceu sua última reunião. No dia seguinte, resistia apenas um bolsão no bairro Saint-Antoine e arredores. A última barricada, na rua Oberkampf, foi tomada pelos versalheses às 13 horas do dia 28 de maio. Um total de 877 homens das forças militares de Thiers morreram durante os enfrentamentos. Quatro mil communards, em troca, morreram na batalha; e mais vinte mil foram executados sumariamente nos dias que se seguiram; dez mil conseguiram fugir para o exílio; mais de 40 mil foram presos, muitas deles torturadas e executadas sem qualquer processo, 91 foram condenados à morte após processo, quatro mil à deportação e cinco mil a penas diversas.As execuções sumárias só pararam por medo de que a quantidade imensa de cadáveres pudesse causar uma epidemia. Um total, somados presos, exilados e mortos, de cerca de 100 mil pessoas, mais de 5% da população da cidade. Desde uma plataforma de observação elevada nos arredores da cidade, o jovem e nobre tenente prussiano Paul Ludwig Hans Anton Von Beneckendorff und Von Hindenburg, comandante de uma unidade militar alemã em situação de prontidão para auxiliar eventualmente às tropas francesas (que ele combatera até poucos dias antes), contemplou impressionado o sangrento desfecho da maior batalha de classes da era moderna. Quarenta e cinco anos depois, como membro do Estado Maior alemão, ele seria condecorado como herói de guerra na Primeira Guerra Mundial. E pouco mais de sessenta anos depois, como presidente da República de Weimar e já ancião, mas provavelmente com as imagens da Comuna de 1871 ainda na memória, ele nomeou para chefiar o governo do país um líder político chamado Adolf Hitler.
Dos 38.578 presos da Comuna julgados em janeiro de 1872, 36.909 eram homens, 1.054 mulheres, e 615 crianças com menos de 16 anos. Só 1.090 foram liberados depois dos interrogatórios. Os presos e exilados, por sua vez, só vieram a ser anistiados em julho de 1880. Um dos chefes militares da Comuna, um oficial francês que nada tinha de “internacionalista” ou de “comunista”, mas que entendeu ser seu dever combater junto à Comuna “francesa” contra as orquestrações dos “prussianos” e dos “traidores”, disse aos que o julgavam pelo seu “crime”: “Vocês estão vendo, legisladores imbecis, que é preciso abrir a sociedade para a horda que a sitia: sem isso, essa horda far-se-á uma sociedade fora da vossa. Se as nações não abrem suas portas à classe operária, a classe operária se precipitará em direção da Internacional”. E acrescentava: “Não tenho nenhum preconceito em favor dos communards: ainda assim, em que pesem todas as vergonhas da Comuna, reivindico ter combatido junto a esses vencidos do que junto aos vencedores… Se devesse recomeçar, talvez não servisse à Comuna, mas com certeza não iria servir a Versalhes”. O oficial, chamado Cluseret, foi fuzilado. Junto com Roussel, outro oficial condecorado do exército francês, ele tinha sido responsável pela defesa militar da Comuna.[vi] Coincidindo com a avaliação desses oficiais, o fim da guerra franco-prussiana aconteceu com a assinatura do Tratado de Frankfurt, que confirmou as negociações prévias de Versalhes, totalmente favoráveis à Alemanha. No documento, estabeleceu-se a entrega dos territórios da Alsácia (separada geograficamente da Prússia pelo Reno), e parte da Lorena (incluindo Metz) ao domínio do Império Alemão, ou seja, a cessão três departamentos povoados com um milhão e meio de pessoas. No prazo de um ano, os alsacianos poderiam optar entre a nacionalidade francesa ou alemã. 50 mil deles instalaram-se na França, ao passo que vários milhares emigraram para a Argélia, que tinha sido previamente declarada “perpetuamente francesa”. O restante adotou a cidadania alemã. Lênin, nas suas conclusões acerca da derrota da Comuna, assinalou que “para que uma revolução social possa ser vitoriosa, duas condições ao menos são necessárias: as forças produtivas altamente desenvolvidas e um proletariado bem preparado. Mas, em 1871, estas duas condições faziam falta. O capitalismo francês era ainda pouco desenvolvido, e a França era, sobretudo, um país de pequeno-burgueses (artesãos, camponeses, comerciantes, etc.). O que fez falta à Comuna foi o tempo e a possibilidade de se orientar e de abordar a realização de seu programa”. Guy Debord afirmou que “a Comuna de Paris foi vencida menos pela força das armas que pela força do hábito. O exemplo prático mais escandaloso foi a recusa em recorrer ao canhão para tomar o Banco de França, quando o dinheiro fazia tanta falta. Enquanto durou o poder da Comuna, a banca permaneceu como um enclave em Paris, defendida por algumas espingardas e pelo mito da propriedade e do roubo. Os restantes hábitos ideológicos foram desastrosos sob todos os pontos de vista (a ressurreição do jacobinismo, a estratégia derrotista das barricadas em memória de 1848)”.[vii]
A derrota da Comuna iniciou um período de declínio do movimento operário europeu e suas organizações. A AIT já era teatro de disputas internas desde antes de 1870, opondo fundamentalmente Bakunin e Marx. As divergências redobraram de intensidade após a derrota da Comuna, com manobras de bastidores envolvendo todas as partes. A AIT, que protagonizara episódios grandiosos em 1870 e 1871, não sobreviveu à derrota dos proletários de Paris. A influência da Internacional Operária na Comuna foi mais potencial que real, e por isso mais temida. O fantasma da Internacional pairava sobre toda a Europa, e ainda além; até na longínqua Buenos Aires os comuneiros foram dados (falsamente) como responsáveis pelo incêndio da catedral da cidade.
O massacre da Comuna teve importância para sua projeção ulterior. No relato do Dr. José Falcão, em Portugal, “a luta em Paris durou oito dias, encarniçada, sanguinolenta, terrível, nos fortes, nas muralhas, nas barricadas, nas praças, nas ruas, nas casas, nas adegas, nos subterrâneos. As tropas de Versalhes tiveram de tomar Paris bairro por bairro, largo por largo, casa por casa, palmo a palmo”.[viii] Isto é típico de uma revolução; a Comuna teve, no entanto, para o desenvolvimento do movimento proletário europeu, efeitos contraditórios. Os blanquistas, a grande maioria presos ou exilados, acabaram aderindo à AIT nos seus derradeiros anos de existência, mas não superaram suas ideias conspirativas e desapareceram enquanto corrente do movimento operário nas décadas seguintes. Entre os anarquistas, a Comuna teve a consequência de enfraquecer as primitivas concepções proudhonistas e reforçar as tendências bakuninistas. A França pós-Comuna foi o berço das correntes que se tornaram predominantes no anarquismo europeu nas décadas seguintes: o anarco-sindicalismo e o terrorismo individual, em cujo corpo de ideias as lições da revolução parisiense tinham pouco espaço. Blanqui, por sua vez, nem anarquista nem marxista, mas sempre “blanquista”, escreveu depois da Comuna centenas de artigos e, em seu livro L’Eternité par les Astres (de 1872, escrito logo depois da Comuna) defendeu a teoria do “eterno retorno”, e também que os átomos de os homens estão compostos se reproduzem uma infinidade de vezes em infinitos lugares, de modo tal que todos teríamos uma infinidade de sósias…[ix] Até o final de sua vida, pouco mais de uma década depois, seria um agitador revolucionário e socialista. Em 1871, quando caíram os últimos communards atingidos pelas balas da reação francesa, encerrou-se um capítulo da história do movimento operário e socialista internacional. Uma cortina de violência desceu sobre o cenário político europeu. Liberais e conservadores, republicanos e monarquistas se uniram numa nova santa aliança contra o proletariado revolucionário e sua representante, a Internacional. Eleito deputado em Bordeaux em abril de 1879, Blanqui teve sua eleição invalidada, por se encontrar ainda detido; não pode assumir a cadeira, mas foi indultado e liberado em junho. Em 1880, lançou o jornal Ni Dieu ni Maître, que dirigiu até sua morte, vítima de derrame cerebral, depois de pronunciar um discurso em Paris, a 1º de janeiro de 1881. Foi enterrado no cemitério de Père Lachaise, em um túmulo criado pelo artista plástico Jules Dalou, combatente da Comuna. Seu principal livro, Crítica Social, de 1885, na verdade uma vasta coletânea de artigos, foi de publicação póstuma. Morto Blanqui, acabou o “blanquismo”?
Como epíteto pejorativo, ele sobreviveu em muito à pessoa que o inspirou. O blanquismo influenciou fortemente os populistas russos. Nos primórdios do socialismo russo, e ainda muito depois, não faltaram os que quiseram contrapor o “espontaneísmo democrático” do jovem Trotsky (ou de Rosa Luxemburgo) ao “blanquismo ditatorial” de Lênin, com sua teoria do partido centralizado e profissional, embora o próprio Lênin afirmasse que os blanquistas acreditavam que “a humanidade se libertaria da escravatura assalariada não por meio da luta de classe do proletariado, mas graças à conspiração de uma pequena minoria de intelectuais”. Em Il Popolo d’Italia, o jornal fascista fundado e editado por Benito Mussolini em 1915, o epígrafe era uma sentença de Blanqui: “Chi ha del ferro ha del pane” (“Quem tem ferro [armas] tem pão “). Walter Benjamin considerou Blanqui, nas suas “Teses sobre a História”, como o personagem mais intimamente ligado ao seu século (a seu tempo) do século XIX. Blanqui foi finalmente “recuperado” pela iconografia oficial. Blanqui não superou, doutrinal ou politicamente, as condições históricas, econômicas e políticas de seu meio. Sua política e sua teoria (no seu caso, praticamente uma coisa só) não resistiram à passagem do tempo (embora a corrente blanquista subsistisse até o final do século XIX, conseguindo eleger vários deputados durante o período da III República). Mas marcaram decisivamente seu tempo. Em 1871, Eugène Pottier (1816-1887), depois da derrota da Comuna, escreveu L’Internationale que, musicada, se transformou em hino internacional do trabalho e do socialismo. A intenção de Pottier era a de que o poema fosse cantado ao ritmo da Marselhesa, mas em 1888 Pierre de Geyter compôs uma música para o poema, usada até o presente. Do outro lado da barricada, metafórica e literalmente, o pensamento contrarrevolucionário e elitista elaborou os argumentos para uma formidável literatura reacionária “científica” que conheceu seu apogeu no final do século XIX. Coube ao sociólogo e psicólogo francês Gustave Le Bon, no seu ensaio La Psychologie des Foules (de 1895), demonizar as massas insurretas. Para ele, testemunha da Comuna de 1871, os imensos ajuntamentos humanos que se decidiam a marchar e a protestar nada mais eram que o irracionalismo posto em ação. Mesmo quando se mobilizavam por uma causa patriótica ou altruísta nada traziam de bom, a não ser a depredação e a desordem, quando não a subversão social. A Igreja, fazendo pendant ao coro majoritário na imprensa e nos círculos dirigentes, proclamou a infalibilidade do Papa exatamente em 1871. Os fiéis foram conclamados (e ameaçados) a nunca mais desobedecer.
A Comuna, suas realizações e sua derrota, assim como as divergentes e contraditórias conclusões tiradas a respeito, foram a base de desenvolvimento das correntes revolucionárias e reformistas no movimento operário francês e europeu até 1914. Na França, a organização operária progrediu lentamente durante a III República, marcada pela experiência recente da Comuna: “A III República tirava sua legitimidade de sua aptidão para limitar as divisões; depois, deveu-a simplesmente à sua capacidade de se manter em pé. Os republicanos e os monarquistas dos anos 1870 estavam igualmente interessados em reduzir ao mínimo toda referência a projetos sociais e históricos; os republicanos, em especial, queriam se demarcar dos fracassos passados e, mais recentemente, da experiência e objetivos do republicanismo social extremo manifestado e fracassado na Comuna de Paris”.[x] O fantasma da Comuna, no entanto, continuou a pairar. O republicanismo e o laicismo baseado na educação cívica (defendida por Jules Ferry e Gambetta), estavam marcados pela ideia de que os cidadãos faziam parte de um corpo (a Nação) “único e indivisível”, representado na Assembleia Nacional eleita por sufrágio universal (masculino), erguida sobre os escombros da Paris revolucionária. Nada deveria afetar a unidade desse corpo. Contra essa ideia, no prefácio à A Guerra Civil na França, reeditada em 1895, Engels escreveu: “O sufrágio universal é o índice que permite medir a maturidade da classe operária. No Estado atual, não pode, nem poderá jamais, ir além disso, mas é o suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão -tanto quanto os capitalistas- o que lhes resta a fazer”. A “capital laica do mundo” (contraposta a Roma, capital do mundo cristão) ficou dominada em seu ponto mais alto, a colina de Montmartre, por uma igreja monumental, a Sacré Coeur, construída em desagravo aos “excessos anticlericais” da Comuna de 1871.
A ousadia da Comuna em atacar a burocracia estatal foi respondida com um crescimento monstruoso da mesma: França contava com dois funcionários estatais para cada cem habitantes em 1870; em 1900, esse número tinha crescido para quatro (mais do que uma duplicação, havida conta do forte crescimento demográfico).[xi] É claro que as divisões e enfrentamentos de classe continuaram malgrado a repressão e a ideologia oficial. Eles tomaram sua forma mais aguda na greve dos mineiros de Carmaux, imortalizada no romance Germinal de Émile Zola, que projetou nacionalmente a figura de seu representante parlamentar, Jean Jaurès, que levou para o socialismo francês (e europeu), do qual se tornou principal representante, toda a carga de um republicanismo desgarrado em sua luta antimonárquica pelas experiências jacobina e communard. O fator decisivo da dissolução da Internacional Operária (AIT), consecutiva à derrota da Comuna, foram suas complicações políticas internas (que refletiam seu isolamento externo). Segundo Miklós Molnár, Engels padeceu de um otimismo que não havia previsto as consequências da predisposição dos operários em favor do anarquismo, em especial na Espanha e na Itália. O Conselho Geral da AIT estava composto por ingleses e emigrados residentes em Londres. Depois da Comuna, não possuía laços vivos com as seções nacionais. A correspondência não substituía o confronto permanente e pessoal de opiniões e informações. Os correspondentes do Conselho Geral na Alemanha eram Liebknecht, Bebel, Kuggelmann e Bracke, os “expertos” alemães no Conselho Geral eram Marx e Engels. Na verdade, a Internacional andava no vazio: “Nascida do movimento real, não lhe restava, em 1872, um ano depois da derrota da Comuna, nenhuma base sólida no continente europeu. O programa adotado na Conferência de Londres privou o Conselho Geral do apoio dos federalistas e dos coletivistas, bases do futuro anarquismo, sem lhe trazer o sustento ativo dos socialdemocratas. Estes aprovaram o programa do Conselho, mas não se interessavam pela Internacional; os primeiros, ao contrário, ficaram fiéis à Associação Internacional, mas reprovavam seu programa político. Durante oito anos (1864-1872), os interesses internacionais da classe operária triunfaram sobre a diversidade de tendências reunidas ao redor da bandeira da Internacional. Mas, mudadas as condições históricas e políticas, os elementos que garantiam a coesão se debilitaram. A diversidade venceu à unidade. A distância entre as tendências era demasiadamente grande para permitir que o Conselho Geral pudesse seguir uma política conforme as aspirações e o grau de desenvolvimento de cada uma delas. O Conselho teve que escolher entre elas, aceitando assim o perigo de provocar seu próprio fim”.[xii]
O equilíbrio europeu foi alterado com a proclamação da nação alemã e a derrota da França na guerra franco-prussiana: as peculiaridades da unificação alemã marcaram decisivamente o destino da Europa até o século XX e, em decorrência, a configuração do movimento operário no continente. No desenvolvimento político da classe operária consecutivo à derrota da Comuna, e dada a situação na França e também na Inglaterra, só Alemanha poderia servir de base e de centro para o movimento operário internacional: Marx foi o primeiro a admitir essa situação. A política do Conselho Geral da AIT se modelou, a partir de 1871, tendo como base o socialismo alemão: foi uma transformação radical, de acordo com o modo de organização e o programa da socialdemocracia alemã, reputada ser o centro de atração europeia e a força motriz da Internacional renovada. Em 1872 reuniu-se em Haia o último congresso da Primeira Internacional (AIT) em solo europeu. Por proposta de Marx, o Conselho Geral da AIT foi transferido para os Estados Unidos, para se proteger dos ataques da reação e também da ação dos bakuninistas, que ameaçavam tomar por assalto a direção da organização. Os “anarquistas” reagiram imediatamente, celebrando em Zurique uma reunião, e se deslocando imediatamente a Saint Imier, na Suíça, onde aconteceu, por iniciativa dos italianos, um congresso que criou a que seria conhecida como a “Internacional antiautoritária”. Havia quatro delegados espanhóis, seis italianos e dois franceses, dois pela Federação Jurassiana e um pelos Estados Unidos. Um total de quinze delegados decidiu por unanimidade não reconhecer o congresso de Haia, e deliberou resoluções sobre o “pacto de amizade, solidariedade e defesa mútua entre as federações livres”, “a natureza da ação política do proletariado”, a “organização da resistência do trabalho”.
Os anarquistas fixaram sua condição “antipolítica e antiautoritária” afirmando: “1°, Que a destruição de todo poder político é o primeiro dever do proletariado; 2°, Que toda organização de um poder político pretensamente provisório e revolucionário, para trazer essa destruição, não pode ser mais que um engano, e seria tão perigoso para o proletariado como todos os governos que existem hoje; 3°, Que, rejeitando todo compromisso para chegar à realização da Revolução Social, os proletários de todos os países devem estabelecer, fora de toda política burguesa, a solidariedade da ação revolucionária”. Os marxistas chamaram os bakuninistas de “divisionistas”. Estes finalmente celebraram seu Congresso em Genebra, em 1873, organizado pela Seção de Propaganda Socialista e Revolucionária de Genebra, com a presença de 26 delegados. Os estatutos da AIT foram modificados de acordo com os princípios defendidos pelos bakuninistas. A Internacional “de Haia” (“marxista”) ainda viveu debilmente por mais alguns anos. O processo foi assim explicado por Miklós Molnár: “Estava ainda profundamente enraizada na mentalidade dos operários a forma de pensar utopista própria da infância do movimento proletário que, segundo Marx, tinha sido superada pela Internacional, assim como a ciência tinha superado as antigas concepções dos astrólogos e dos alquimistas. A era do socialismo utópico não estava ainda tão ultrapassada quando os autores das resoluções de Londres tentaram transformar a Associação em uma organização política militante adaptada às necessidades do proletariado moderno. Muitos eram ainda os que tinham conhecido os habitantes do New Harmony de Owen, e entre os membros da Internacional ainda se encontravam velhos icarianos da colônia texana de Considérant… A Internacional continuava profundamente marcada pelo utopismo. Só era viável como organização ampla composta por elementos heterogêneos… Se tivesse continuado a ser o que era em 1864 (data de sua fundação) teria podido sobreviver algum tempo, embora de forma mais ou menos anacrônica. Ao sair de sua velha esfera condenou-se à distorção produzida pela força centrífuga de suas diversas tendências liberadas daquele contexto, assim como seria denunciado o compromisso de seu pacto fundamental”.
Em Filadélfia (EUA), em julho de 1876, se acordou “suspender por tempo indeterminado a Associação Internacional dos Trabalhadores”. Engels escreveu a Sorge com motivo da demissão deste do cargo de secretário da organização: “Com sua demissão, a velha Internacional fica definitivamente ferida de morte e chega ao seu fim. Isso é bom. Pertencia ao período do Segundo Império”. Os exilados da Comuna na Nova Caledônia constituíram uma “comunidade” que, notadamente, ficou do lado das autoridades francesas quando se produziu um levantamento anticolonial da população local.[xiii] Na França, a 30 de janeiro de 1875 foi proclamada a nova Constituição, sobre bases republicanas e baseada no sufrágio universal: “Todos os que, pela fortuna, pela educação, pela inteligência ou pela astúcia, são aptos para liderar uma comunidade humana e têm a oportunidade de o fazer – em outras palavras, todas as facções das classes dominantes – devem curvar-se perante o sufrágio universal, desde que instituído, e igualmente, se a ocasião o exigir, lisonjeá-lo e ludibriá-lo”, teorizou o conservador italiano Gaetano Mosca em Sulla Teorica dei Governi e sul Governo Parlamentare, de 1883. O sufrágio universal foi instaurado depois da derrota da Comuna, quando já tinha deixado de ser o terror das classes dominantes. Os condenados da Comuna foram finalmente anistiados; no início do século XX, um grupo cultural de anarquistas franceses realizou um modesto filme (mudo) sobre a Comuna, no qual alguns sobreviventes de 1871 tiveram participação. O último communard vivo, Adrien Lejeune, morreu em 1942 na União Soviética; foi enterrado no Kremlin durante a Segunda Guerra Mundial e descansa atualmente no cemitério do Père Lachaise de Paris, em face do “Muro dos Federados” (local de fuzilamento de combatentes da Comuna).
A “democracia representativa” exigiu o prévio esmagamento da classe operária; ela alterou o terreno da luta política. Com o parlamento posto no primeiro plano do palco político, a cisão entre reformistas e revolucionários no interior do movimento operário tornou-se inevitável e passou a dominar os debates. Na Inglaterra, as trade unions evoluíram para a forma dos sindicatos, que tiveram uma evolução lenta em suas reivindicações. As jornadas de trabalho tinham diminuído, o poder de compra do salário tinha crescido, mas ainda a situação nos bairros operários continuava muito precária. As trade unions inglesas foram reconhecidas como sindicatos da classe operária justamente em 1871. No plano dos direitos políticos dos trabalhadores, as conquistas foram mais lentas: foi só com a reforma eleitoral de Benjamin Disraeli (1867) e depois com a reforma parlamentar de William Gladstone (1884), que a maioria dos operários ingleses obteve o direito de sufrágio. Do outro lado do Canal da Mancha, a onda da Comuna ainda se fez sentir, mesmo de modo tácito ou implícito. Nas eleições francesas de 1876 saíram vitoriosos os republicanos, vencendo aos monarquistas. Em 1879 foi reeleito presidente o republicano Jules Grévy; os republicanos, dentre os quais muitos maçons, uniram-se no combate ao clero; não só pretendiam tirar das congregações o ensino, mas também fazer da escola laica, gratuita e obrigatória, a base do regime político. Os destrutores da Comuna precisaram adotar parte de seu programa para governar o país onde as contradições de classe tinham se manifestado de modo mais aberto e agudo: iniciado na França, a política de expropriação “democrática” do potencial revolucionário da classe operária foi um processo de alcance mundial.
- Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História e Revolução (Xamã).
Notas
[i] Pierre Luquet, André Dunois et al. A Comuna de Paris. Rio de Janeiro, Laemmert, 1968.
[ii] A “educação comunista”, superando as contradições da sociedade de classe, deveria ser “intelectual, física e politécnica”: esta última deveria ser ao mesmo tempo ser teórica (‘transmitir os princípios gerais de todos os processos de produção’) e prática (‘iniciação ao uso prático e ao manejo dos instrumentos básicos de todos os ramos do trabalho’). Essa dupla formação era julgada indispensável para que os trabalhadores dominassem as bases científicas da tecnologia, o que lhes permitiria organizar e controlar a produção uma vez conquistado o poder político (sob o domínio da burguesia, eles possuíam apenas “a sombra do ensino profissional”).
[iii] Prosper-Olivier Lissagaray. Histoire de la Commune de 1871. Paris, François Maspéro, 1983.
[iv] In: Raoul Dubois. À l’Assaut du Ciel. La Commune racontée. Paris, Les Éditions Ouvrières, 1991.
[v] Prosper-Olivier Lissagaray. Op.Cit.
[vi] Cluseret-Roussel. La Commune et la Question Militaire. Paris, UGE, 1975.
[vii] Guy Debord. 14 thèses sur la Commune de Paris. Internationale Situationiste nº 7, Paris, abril de 1962.
[viii] Apud Alexandre Cabral. Notas Oitocentistas. Lousã, Platano Edtora, 1973.
[ix] Jorge Luis Borges foi assíduo leitor de Blanqui, em quem reconheceu uma fonte de inspiração.
[x] Tony Judt. Un Passé Imparfait. Paris, Fayard, 1992.
[xi] Guy Thuillier. Bureaucratie et Bureaucrates em France au XIXè Siècle. Ginebra, Droz, 1980. Em 1930, a “jiboia” tinha crescido até perfazer sete funcionários estatais para cada cem habitantes, crianças incluídas. Alfred Sauvy. La Burocracia. Buenos Aires, Eudeba, 1976.
[xii] Miklós Molnár. El Declive de la I Internacional. Madri, Edicusa, 1974.
[xiii] Umberto Calamita. Il tempo delle ciliegie. La Contraddizione n° 135, Roma, abril-junho 2011.
25/03/2021
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