Teletrabalho: da promessa da autonomia à realidade da exploração

Sabe-se muito pouco sobre as patologias associadas ao teletrabalho para que se olhe para este como uma opção sem riscos.

24/07/2020
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Teletrabalho
Foto: Pxhere / CC0 1.0
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Ao largo dos últimos meses temos assistido ao aparecimento e intensificação do debate em torno do futuro do Trabalho, essencialmente ligada à questão do teletrabalho. A discussão em si não é nova e está condenada a manter-se por cá, porque, acompanhando a permanente mudança das sociedades, também o Trabalho mudará sempre para se adequar às necessidades e possibilidades tecnológicas de cada momento.

 

Até aqui nada de muito novo. Na realidade, a novidade deste momento que agora vivemos decorre não da natureza da discussão, mas antes do pretexto em que se alicerça para ser projectada. Enquanto que até hoje a inovação tecnológica (existente ou prevista) foi o motor deste debate, neste momento é a pandemia COVID-19 a oferecer o pretexto não apenas para a discussão, mas para efectivas transformações na forma como o Trabalho se desenvolve.

 

Sejamos claros: a pandemia existe e tem consequências muito visíveis na saúde das pessoas (podendo levar até à morte), pelo que a adopção de medidas sanitárias de prevenção do seu alastramento se justifica – inclusive no mundo do Trabalho.

 

Não obstante, a clareza de espírito não deve redundar em ingenuidade: ainda ninguém sequer falava de COVID-19 e já o actual Governo português dedicava várias linhas do seu Programa (p. 165) à transição para o teletrabalho na Administração Pública, em particular, e aceleração da digitalização da economia, em geral - que não sendo o mesmo que teletrabalho, encontra neste uma componente importante. E, por isso, sim, a pandemia é um pretexto que legitima uma opção; não uma contingência que obriga a que se desenhem imprevistas opções. De resto, a pandemia oferece um contexto em que a transição para o teletrabalho surge em pezinhos de lã, algures entre o desejável e o inevitável, retirando espaço para debater uma transformação que, noutro quadro, poderia e deveria merecer bem mais discussão e reflexão.

 

Ora, dado que essas alterações se apresentam como para ficar, muito mais que como uma resposta circunstancial, vale a pena reflectir sobre elas e, antes disso até, sobre os (falaciosos) argumentos a partir dos quais se justificam. Por questões de síntese, abaixo exploro os cinco que me parecem mais relevantes:

 

1) Um admirável mundo novo. Embora seja o primeiro da lista, este é, na verdade, uma espécie de «argumento zero», que fala por si mesmo, mesmo quando não é explicitamente invocado, porque se dirige à experiência individual de cada um. Ele justifica o teletrabalho como um recém-descoberto paraíso: livre dos intermináveis engarrafamentos, dos transportes sobrelotados, dos locais de trabalhos húmidos, demasiado frios no Inverno ou quentes no Verão e sem luz natural, dos superiores hierárquicos abelhudos, dos colegas chatos, das casas de banho partilhadas e mal limpas, etc. Valendo-se de realidades que existem e têm fortes implicações reais na vida de milhões de trabalhadores, a falácia consiste na ideia de que é possível uma transformação radical (a passagem para o teletrabalho), mas que todos os elementos indesejáveis do quadro actual são inultrapassáveis por qualquer outra via.

 

2) A entidade empregadora assume os custos. Correspondendo a uma determinação legal já existente, qualquer entidade empregadora tem de assumir os custos com o teletrabalho (equipamentos, comunicações, etc.). Tenho poucas dúvidas que, regra geral, as entidades empregadoras assumam essa obrigação – de resto, algumas até fizeram questão de comprar mobiliário ergonómico para os trabalhadores que mandaram para casa. Tudo muito bem, mas três questões se levantam: a) gastos não directamente mensuráveis: água do autoclismo, electricidade do aquecimento, etc., quem assume?; b) se, como a maioria das famílias, o/a trabalhador(a) viver numa casa em que não tem uma divisão que possa dedicar de forma exclusiva ao seu trabalho, ele/a deve trabalhar na sala, na cozinha, no quarto?... e se for mais do que uma pessoa lá em casa em teletrabalho? Dificilmente veremos entidades empregadoras a financiar a transição para casas com dimensões mais adequadas, no entanto, os trabalhadores terão que reger a sua escolha de casa (também) por esse critério; c) mesmo que não seja no imediato, o que acontecerá com complementos salariais/subsídios que tantas vezes (erradamente) são decisivos nos rendimentos dos trabalhadores, como sejam o subsídio de alimentação ou de transporte? As empresas estarão disponíveis para aumentar os salários dos trabalhadores?

 

3) Estamos a salvar o ambiente. É evidente que se nos mantivermos mais por casa podemos emitir menos gases poluentes, mas este é outro argumento de perna curta... vejamos: a) quantas questões que podiam ser resolvidas presencialmente passarão a exigir um elevadíssimo consumos de dados, o que por si conduzirá a um consumo energético exponencial? É verdade que há opiniões diferentes sobre se esta é ou não uma questão para alarme, dado que no futuro, talvez seja possível resolvê-la, mas enquanto ainda assim não é (e mesmo que assim seja um dia), não seria mais eco-friendly criar condições aos trabalhadores para recorrerem a mecanismos de mobilidade suave para se deslocarem para o seu local de trabalho (preferencialmente situado num local não muito distante da sua residência); b) ainda no plano do consumo energético, locais de trabalho partilhados têm tudo para ser mais eficientes, desde logo porque são partilhados, mas também porque poderão corresponder a entidades que têm os meios para garantir essa eficiência de forma mais concentrada e não a sua proliferação pela casa de todos e cada um dos seus trabalhadores (sem proliferação de graduais e justas melhorias nas casas dos trabalhadores que vão nesta direcção).

 

4) A autonomia total. Livre de qualquer supervisão física, o/a trabalhador(a) poderá, segundo os apologistas do teletrabalho, gozar de uma autonomia sem limites, organizando os seus horários a seu bel-prazer. Pode soar bem, mas a realidade está longe de ser tão maravilhosa quanto se pinta... desde logo, como já aqui se disse (ver caixa), o controlo dos trabalhadores está hoje altamente sofisticado, não sendo necessário um controlo fisicamente presente para que este ocorra; além disso, duma forma mais geral, a ausência de um local de trabalho definido e de um horário estipulado podem rapidamente converter-se numa invasão do espaço e do tempo privado/social/de lazer pelas tarefas do trabalho, seja por imposição explícita das entidades empregadoras, seja por necessidade de corresponder a objectivos que, na maioria das vezes, vão para além dos limites da saúde física e psicológica dos trabalhadores. Por um lado, sabe-se muito pouco sobre as patologias associadas ao teletrabalho para que se olhe para este como uma opção sem riscos; por outro, nas relações de trabalho do sistema capitalista (orientado pela maximização do lucro) as ocasiões em que o aumento da produtividade é acompanhada pelo aumento dos rendimentos e direitos dos trabalhadores costumam ser efémeras, pois esse não é o seu objectivo - mas sim aumentar os lucros das entidades patronais.

 

5) A relação trabalhador-entidade patronal não se altera. Esta é uma questão complexa, porque se for reduzida à escala individual, pode até ser que o argumento não seja tão distante da verdade assim. Porém, se pensarmos à escala da acção colectiva (única verdadeira arma de defesa dos seus direitos e interesses por parte dos trabalhadores) veremos que a prática pode trazer consequências profundamente nefastas. Um «local de trabalho» onde ninguém se conhece, cada um tem o seu horário, onde não há quaisquer laços sociais que permitam a criação de confiança e solidariedade entre colegas não será jamais igual a um local de trabalho onde vínculos de camaradagem se forjam no quotidiano. Aos trabalhadores até pode ser «dada» a possibilidade de organização sindical, de contacto entre si pelos meios que entendam, mas não é difícil perceber que - sobretudo num contexto em que se introduza precariedade e competitividade - cada trabalhador se encontrará isolado no campo paradoxalmente por si próprio delimitado, desprovido (ou pelo menos muito limitado) na sua capacidade de intervenção.

 

Por último, uma espécie de pós-argumento é a ideia de que cada trabalhador deve ser livre de escolher se quer ou não transitar para um regime de teletrabalho. Mais uma vez, na maioria dos casos, trata-se de uma falácia: as relações de trabalho não são relações de igualdade, elas são profundamente desequilibradas em desfavor dos trabalhadores. Achar que, num contexto de alastramento da precariedade e desemprego, os trabalhadores (particularmente os mais jovens) terão outra liberdade que não a de procurarem adequar-se àquilo que ditam a suas entidades empregadoras, constitui uma profunda ingenuidade, só justificada por um olhar desatento para o panorama presente e passado do mundo do Trabalho.

 

Dito tudo isto é oportuno dizer que nem o teletrabalho tem de significar o agravamento da exploração, nem a tecnologia está necessariamente contra o direito dos trabalhadores. No entanto, como sempre, a questão determinante é saber ao serviço de quem ambos são utilizados.

 

De pouco serve correr velozmente rumo ao horizonte se formos a olhar para o infinito e pensar no que as coisas podiam ser: fazê-lo serve apenas para, mais tarde ou mais cedo, chocar de cabeça contra a parede da realidade!

 

- Tiago Vieira é Licenciado em Sociologia

 

23 de Julho de 2020

https://www.abrilabril.pt/trabalho/teletrabalho-da-promessa-da-autonomia-realidade-da-exploracao

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/208077
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