Os EUA e a imposição de regimes militares na América Latina
- Análisis
Tenho insistido em sucessivos espaços que devemos observar a realidade tal como ela se põe aos nossos olhos como pré-requisito para que possamos intervir nela de forma eficaz, e nesta quadra da história estamos perante um dos maiores desafios que é o de enfrentar o regime militar que ascendeu pela via democrática mas cujo procedimento no poder é fugidio às regras que até ali o elevaram, com sobradas mostras de sua insubordinação às regras constitucionais a que qualquer governo eleito deve submeter-se. O regime vem sucessivamente apresentando sensibilidade ao perfeito enquadramento ao regime constitucional, como se as barreiras dos direitos e garantias individuais e coletivas resultassem uma grande moléstia para o exercício do poder segundo a forma como o regime o concebe, ao que parece, liberto de travas de qualquer sorte.
O presente controle militar do Brasil não é uma novidade histórica, senão que representa a retomada de modelo de domínio norte-americano na América do Sul que remonta à doutrina de segurança nacional largamente aplicada no continente, por exemplo, na década de 1970. Foi após a Guerra do Vietnã que ocorreu a elaboração da doutrina Nixon-Kissinger, cujos termos haviam sido inspirados pela percepção de quão imperioso era evitar os severos danos políticos impostos à política interna norte-americana, tal como ocorrera nos EUA em face das sucessivas perdas de vida naquele embate bélico, que ao final contaram-se às dezenas de milhares.
Sob esta premissa foi desenvolvida a doutrina Nixon-Kissinger cujo teor era o de evitar intervenções militares diretas nas suas áreas de interesse geopolítico mundo afora. A síntese da doutrina é que os EUA passariam a instrumentalizar as forças armadas de seus países-satélite, realizando assim a defesa de seus interesses através destas forças armadas locais na qualidade de prepostos. Para fins de legitimação seriam mobilizados recursos midiáticos e neles veiculados valores justificadores tais como a defesa da democracia, dos valores da sociedade ocidental, do cristianismo mas, de nenhum modo secundariamente, contra a anunciada grave ameaça do comunismo, identificado como grande inimigo universal ao qual dar combate sem tréguas em todas as latitudes, mas muito especialmente na zona de proteção máxima do império, a América Latina, cujas riquezas potencialmente sustentam o estilo de vida norte-americano.
Para a implementação da doutrina Nixon-Kissinger foram concebidas diversas estratégias como a implementação de convênios militares com os países-satélite, levando oficiais para treinamento em escolas militares do império, e também acordos comerciais para a venda de armamento com determinadas contrapartidas de interesse político do império, assim como acordos econômicos que carregavam fortemente os países contratantes da dívida, e que redundava tão somente em instrumento de imposição de dependência econômica que logo permitiria poder de barganha aos EUA para impor decisões geopolíticas e também em matéria de política interna de sua conveniência. Sob este contexto de estratégias de domínio o Brasil era considerado naquela quadra da década de 1970 como um país estratégico na América do Sul para que a geopolítica na região e os interesses do império pudessem ser mais facilmente assegurados, percepção que bem é possível perceber que o Departamento de Estado reitera nos dias que correm.
Em suas profundezas a administração dos EUA está composta de longa data pelos interesses das grandes corporações transnacionais, que ali tem seus operadores e influencia fortemente no processo de tomadas de decisões de Estado. A orientação da política externa dos EUA sempre esteve concatenada com os interesses destas grandes corporações transnacionais e a sua forma de efetivar-se na América do Sul ocorreu através da mobilização das Forças Armadas, cooptadas e adestradas como forma de torná-las operativas e eficientes o suficiente para o cumprimento da finalidade de realizar atividades repressivas. Objetivamente foram tomados como alvos diretos os inimigos do Estado, assim classificados todos os indivíduos que adotassem posições contrárias aos interesses do império, vale dizer, o das grandes corporações transnacionais.
A oposição aos interesses do império poderia ser expressa através da adoção de diversas ações como foi observável no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Chile e tantos outros países latino-americanos onde as Forças Armadas agiram com brutal intuito repressivo e ultrapassando com sobras o mural da dignidade adentraram celeremente o território da criminalidade vitimadora da população civil, cujo único e grande ilícito sempre foi o de apresentar qualquer tipo de resistência, até mesmo quando exclusivamente o fizesse no plano intelectual, contra a alienação da soberania dos Estados latino-americanos. Também como inimigos seriam considerados todos aqueles que nutrissem ideologia comunista, ou que professassem o desenvolvimentismo em matéria econômica, assim como se dedicassem a enfatizar a cultura autóctone, constitutiva de importante foco de unificação e resistência aos processos de colonização cultural, logo extensível ao domínio político com maior facilidade para obter a legitimação popular e aglutinação em torno a elementos comunitários e nacionais.
As Forças Armadas adestradas nas escolas militares do império foram sendo cooptadas ao longo do tempo por diversas formas, inclusive pela concessão de honrarias, com o objetivo de obter a sua adesão a ideologia e prestar os melhores serviços à política externa norte-americana, absoluta e exclusivamente voltada a proteção dos interesses de suas grandes corporações transnacionais, fenômeno claramente observado no Chile na década de 1970 com o golpe de Pinochet quanto o tinha sido em 1964 no golpe contra João Goulart no Brasil assim como também entre nós mais recentemente em 2016. Os esforços para manter coesas estas forças equipadas com armas ademais de bem dispostas para as ações de repressão de sua própria gente podem reclamar sucessivas recompensas metálicas, especialmente em favor dos mais altos comandos. É notável, contudo, que podemos divisar em horizonte impreciso e momento incerto, o esgotamento e cizânia interna, assim como conflito externo, quando aos olhos do público resulte de todo perceptível o tamanho descomunal dos privilégios atribuídos às Forças Armadas comparativamente a miséria a que seja relegada a população.
O mesmo raciocínio quanto a dissonância é possível aplicar a outra ordem de altos servidores do Estado, que foram também foram tomados como alvo de cooptação pelo poder imperial para realizar os seus propósitos. Estes atores não utilizam a farda mas mantém igual disciplina interna, e sob o uniforme preto compõem pretensamente a elite intelectual de servidores do Estado detendo alto poder de intervir nos rumos das políticas públicas. Estes indivíduos formam eixo alimentado por atividades de inteligência sob o qual assenta a nova estrutura de apoio para os golpes de Estado bem como a posterior garantia de sua operatividade política e das alterações impostas à nova organização plutocrática do sistema econômico ainda sob a vigência de uma ordem constitucional que reclama alteração jurisprudencial para que não seja necessário substituí-la, portanto, realizando uma substituição de regime sem alterar as normas fundadoras do próprio regime.
O processo de captura do Estado e do objetivo final de expropriação de riquezas implica estratégias de entorpecimento de percepção da realidade. Assim aos povos vão sendo suprimidas as circunstâncias de contato e fortalecimento de suas respectivas culturas, restando eles eventualmente mais próximos e mais facilmente acessando a cultura de Miami do que a de seus antepassados imediatos. Este processo de colonização atingiu fortemente ao longo do tempo também as mais altas instâncias das Forças Armadas e aos poderes togados, restando prejudicadas as suas atividades em prol da defesa de políticas nacionalistas, quando não mesmo animados o suficiente para impedir a sua consecução, ainda quando tal seja a opção política inequivocamente expressa pelas urnas. Aqui emerge a situação para a qual os principais atores das instituições foram oportunamente adestrados a reconhecer. Apresentados a escolha de projetos políticos alheios a lógica pró-imperialista, percebem tratar-se da senha identificadora da presença do inimigo, e que a contradição política aos interesses econômicos das grandes corporações do império justificará plenamente a tomada de quaisquer medidas para a eliminação deste inimigo.
Estes altos postos do Estado foram sendo treinados para aspirar a implementação de modelo político alienígena em seus países de origem, desprezando as peculiaridades de sua gente, de suas experiências, de sua cultura e da íntegra dos valores que lhes caracteriza como povo. A desarticulação substancial dos canais de conexão do povo com o poder no âmago de modelo político que deseja preservar as formas democráticas utiliza a estratégia da criminalização da esfera da política e de seus atores políticos. Ao fazê-lo o sistema interdita aos legítimos representantes da vontade soberana da população, tomados como objetivos a desconectar dos meios de acesso ao poder decisório para assim distanciar a população do exercício da soberania. O desprezo pela população facilita a tomada de decisões por parte de elite que aspira substituir qualquer representação popular por elite composta por burocratas treinados segundo parâmetros técnicos estrangeiros para implementar projeto político e econômico de matriz imperial em seus países, alegando refletir o superior estado da arte em todas as matérias quando nada mais representam do que douradas bombas de sucção.
O que resta evidente por trás destes movimentos é a intervenção de quadros nacionais no processo devido a interesses econômicos particulares que buscam a sua maximização aliando-se à elite internacional, prestando-se a orientar a política econômica interna dos países de que são nacionais para a mera extração de recursos em detrimento da implementação de processos desenvolvimentistas e criadores de melhores condições de vida para as suas populações. No momento de aplicação deste modelo de política que engendra o real estrangulamento das populações nacionais, ipso facto, torna-se indispensável ter realizado a adequada preparação, treinamento e equipamento dos quadros repressivos do Estado para intervir e garantir a ordem pública sob o peso da machete, sombra das armas e apoio em gente capacitada para aplicar toda a sorte de violências, tortura incluída, tal como ocorreu tantas e repetidas vezes na história da América Latina também contando com o beneplácito dos tribunais e seu simbólico poder legitimador.
Todas estas e outras tantas alternativas de uso da força repressiva são concebidas no plano da factibilidade pela elite nacional e seus sócios internacionais, pois sob nenhum pretexto será admitida a retirada sequer de parcas fatias do bolo que os atores pretendem consumir a sós no pérfido conúbio de assaltantes vis. Nada será percebido como estranho ou indesejável no que concerne a elevação do nível de violência pelo Estado quando esteja em causa a manutenção ou elevação dos benefícios derivados da expropriação de riquezas, sobretudo em tempos de guerra tais como o império praticamente nunca deixa de experimentar, embora aqueles em que enfrenta tão grave desafio como o atual que o contrapõe à China seja inusual. Por este motivo toda sorte de políticos que apresentem como opção políticas nacionalistas e desenvolvimentistas ou que incluam o povo no orçamento devem sofrer severa persecução pelo aparato repressivo. Neste sentido as forças do império devem manter mobilizadas as suas forças cooptadas em seus países-satélite governados por títeres para que não hesitem em dar curso ao massacre de sua gente de todas as formas possíveis para garantir o envio do máximo de riquezas para o império.
- Roberto Bueno – Professor Associado da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Mestre em Filosofia do Direito (UNIVEM). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).
01/07/2020
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