O capitalismo tem seus limites
O vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazem, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo.
- Análisis
O imperativo de isolamento coincide com um novo reconhecimento de nossa interdependência global no novo tempo e espaço da pandemia. Por um lado, somos solicitados a nos recolhermos em unidades familiares, espaços compartilhados de moradia, ou domicílios individuais, privados de contato social e relegados a esferas de relativo isolamento. Por outro lado, estamos diante de um vírus que transpõe tranquilamente as fronteiras, completamente alheio à própria ideia de território nacional.
Quais são as consequências dessa pandemia no que diz respeito à reflexão sobre igualdade, interdependência global e nossas obrigações uns com os outros? O vírus não discrimina. Poderíamos dizer que ele nos trata com igualdade, nos colocando igualmente diante do risco de adoecer, perder alguém próximo e de viver em um mundo marcado por uma ameaça iminente. Por conta da forma pela qual ele se move e ataca, o vírus demonstra que a comunidade humana é igualmente precária. Ao mesmo tempo, contudo, o fracasso por parte de certos Estados ou regiões em se prepararem adequadamente de antemão (os EUA talvez sejam agora o membro mais notório desse clube), o fortalecimento de políticas nacionais e o fechamento de fronteiras (atitude muitas vezes acompanhada de xenofobia panicada), e a chegada de empreendedores ávidos para capitalizar em cima do sofrimento global, tudo isso atesta a velocidade com a qual a desigualdade radical – o que inclui nacionalismo, supremacia branca, violência contra as mulheres e contra as populações queer e trans – e a exploração capitalista encontram formas de reproduzir e fortalecer seus poderes no interior das zonas de pandemia. Isso não deve ser surpresa nenhuma.
A política do atendimento de saúde nos EUA traz isso à tona de maneira particular. Um cenário que já podemos imaginar é a produção e comercialização de uma vacina eficaz contra o COVID-19. Claramente ávido para marcar pontos políticos que poderão garantir sua reeleição, Trump já tentou comprar (com dinheiro) direitos exclusivos para os EUA a uma vacina de uma empresa alemã, a CureVac, financiada pelo governo alemão. O Ministro Alemão de Saúde, que certamente não deve ter ficado nada contente, confirmou à imprensa alemã que a oferta foi de fato feita. Um político alemão, Karl Lauterbach, comentou: “A venda exclusiva aos EUA de uma possível vacina precisa ser evitada a todo custo. Capitalismo tem limites.” Suponho que ele estava questionando o “uso exclusivo” e não ficaria nem um pouco mais satisfeito com a mesma provisão caso ela se aplicasse exclusivamente aos alemães. Assim esperemos, porque podemos imaginar um mundo no qual vidas europeias são valorizadas acima de todas as outras – vemos esse tipo de valoração se desenrolando violentamente nas fronteiras da União Europeia.
Não faz sentido recolocar novamente a questão, o que Trump estava pensando? A questão foi levantada tantas vezes em um estado de completa exasperação que não podemos nem ficar surpresos. Isso não significa que nossa raiva diminui com cada nova instância de auto-engrandecimento antiético ou criminoso. Se ele tivesse êxito no seu esforço de comprar uma potencial vacina e restringir seu uso apenas aos cidadãos estadunidenses, será que ele acredita que esses cidadãos aplaudiriam seus esforços, extasiados com a ideia de estarem livres de uma ameaça mortal quando outros povos não estão? Será que eles realmente adorariam esse grau de desigualdade social radical, de excepcionalíssimo americano, e validariam sua forma “brilhante” (a palavra é dele) de fechar um negócio? Será que ele imagina que boa parte das pessoas pensa que é o mercado que deve decidir como a vacina será desenvolvida e distribuída? Seria sequer concebível no interior do mundo dele insistir em uma preocupação mundial de saúde que deveria transcender a racionalidade de mercado numa hora destas? Ele está certo em supor que nós também vivemos no interior dos parâmetros de um mundo imaginado desses?
Mesmo se tais restrições com base em cidadania nacional não se aplicarem, nós certamente veremos os ricos e os plenamente assegurados correrem para garantir acesso a qualquer vacina dessas quando ela se tornar disponível, mesmo que o modo de distribuição só garanta que apenas alguns terão esse acesso e outros serão abandonados a uma precariedade continuada e intensificada. A desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazem, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo. Parece provável que passaremos a ver no próximo ano um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito de viver ao custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis e não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas são consideradas não valerem o bastante para serem salvaguardadas contra a doença e a morte.
Tudo isso ocorre sob o pano de fundo da disputa presidencial estadunidense na qual as chances de Bernie Sanders emplacar a nomeação do Partido Democrata parecem agora ser muito remotas, embora não sejam estatisticamente impossíveis. As novas projeções que colocam Joe Biden claramente como o candidato favorito são devastadoras nestes tempos precisamente porque tanto Sanders quanto Elizabeth Warren defendiam a pauta do “Medicare for All”, um programa abrangente de saúde pública que garantiria atendimento básico de saúde para todas as pessoas no país. Tal programa acabaria com as empresas de plano de saúde organizadas em função do mercado que regularmente abandonam os doentes, exigem deles despesas médicas adicionais literalmente impagáveis, e perpetuam uma hierarquia brutal entre os assegurados, os não-assegurados e os inasseguráveis.
A abordagem socialista de Sanders diante da saúde pública pode ser descrita mais apropriadamente como uma perspectiva social democrata, não substancialmente diferente daquela que Elizabeth Warren apresentou nas fases iniciais de sua campanha. No entender dele, a cobertura médica constitui um “direito humano”, e com isso ele quer dizer que todo ser humano tem direito ao tipo de atendimento de saúde que ele precisar. Mas por que não compreendê-la como uma obrigação social, que decorre de viver em sociedade com os outros? Para mobilizar o consenso popular em torno de uma noção dessas, tanto Sanders quanto Warren teriam que convencer o povo americano de que queremos viver em um mundo no qual nenhum de nós recusa atendimento de saúde a nenhum dos outros. Em outras palavras, teríamos que estar de acordo quanto a um mundo social e econômico no qual é radicalmente inaceitável que alguns tenham acesso a uma vacina que pode salvar suas vidas enquanto a outros é negado esse acesso com base no fato de não terem condições de pagar ou de garantir o plano de saúde capaz de bancar isso.
Um dos motivos pelos qual votei em Sanders na primária de Califórnia, junto com a maioria dos Democratas lá registrados é que ele, junto com Warren, abriram uma forma de reimaginar nosso mundo como se ele fosse organizado por um desejo coletivo por igualdade radical, um mundo no qual nós nos unimos a fim de insistir que os materiais exigidos para a vida, incluindo o cuidado médico, seriam igualmente disponíveis independentemente de quem somos ou se dispomos dos meios financeiros pra tanto. Essa política teria estabelecido solidariedade com outros países comprometidos com a saúde pública universal, e teria assim estabelecido uma política transnacional de atendimento médico comprometido com a realização dos ideais da igualdade. As novas pesquisas eleitorais que agora restringem a escolha nacional entre Trump e Biden surgem precisamente no momento em que a pandemia paralisa a vida cotidiana, intensificando a precariedade dos sem-teto, dos não-assegurados e dos pobres. A ideia de que talvez pudéssemos nos tornar um povo que deseja ver um mundo no qual a política de saúde seja igualmente comprometida com todas as vidas, com o desmantelamento do domínio do mercado sobre o atendimento médico, que distingue entre quem é digno e quem pode ser facilmente abandonado à doença e à morte – por um breve momento essa ideia esteva viva. Passamos a entender a nós mesmos de maneira diferente à medida que Sanders e Warren apresentavam essa outra possibilidade. Compreendemos que talvez seria possível começarmos a pensar e atribuir valor para além dos termos que o capitalismo nos apresenta.
Mesmo que Warren não seja mais candidata, e que Sanders dificilmente recuperará seu embalo eleitoral, devemos ainda nos perguntar, especialmente agora, por que nós como um povo ainda nos opomos à ideia de tratar todas as vidas como se elas tivessem o mesmo valor? Por que alguns ainda se entusiasmam com a ideia de que Trump buscaria garantir uma vacina que resguardaria as vidas americanas (como ele as define) antes de todas as demais? A proposta de uma saúde pública e universal revigorou um imaginário socialista nos EUA – um imaginário que agora precisa esperar para poder se realizar como uma política social e como compromisso público neste país. Infelizmente, na era da pandemia, nenhum de nós pode esperar. É preciso agora que se mantenha vivo esse ideal nos movimentos sociais ancorados menos na campanha presidencial do que na luta de longo prazo que temos pela frente. Essas visões corajosas e apaixonadas, ridicularizadas e rejeitadas por “realistas” capitalistas, já tiveram destaque suficiente na mídia, já mobilizaram atenção o bastante, para deixar cada vez mais pessoas – algumas pela primeira vez – desejando um mundo transformado.
Com sorte, conseguiremos manter vivo esse desejo.
Judith Butler é professora Maxine Elliot dos Departamentos de Retórica e de Literatura Comparada, além de codiretora do Programa de Teoria Crítica, da University of California, em Berkeley. É também professora da cátedra Hannah Arendt e do Departamento de Filosofia da European Graduate School, em Saas-Fee, na Suíça. Em 2008 foi laureada com o prêmio Andrew Mellon por seu destaque acadêmico na área de humanidades e em 2012 recebeu o prêmio Theodor W. Adorno. Para 2020, a Boitempo prepara a publicação de seu livro mais recente, A força da não violência.
* Tradução de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
20/03/2020
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