Os impulsores genéticos e as violações de direitos humanos no Brasil
- Análisis
Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 543: Tecnologías: manipulando la vida, el clima y el planeta 06/09/2019 |
Não é acaso que o Brasil seja um dos primeiros países a abrir brechas para a implementação de novas biotecnologias de alto risco, como os impulsores genéticos (ou gene drives). O Brasil liberou comercialmente a soja transgênica roundup ready da Monsanto em 1998 e hoje é o segundo maior produtor de plantas transgênicas no mundo. O país se consolida com um verdadeiro campo de testes agrícolas. Já temos aprovadas 90 variedades transgênicas vegetais (soja, milho, algodão, feijão, eucalipto e cana-de-açúcar), das quais 70 são modificadas para tolerar herbicidas. O Brasil também é o maior mercado consumidor de agrotóxicos no mundo desde 2008.
No Brasil, os resultados do Censo Agropecuário Brasileiro de 2016 demonstram a elevação da concentração da propriedade rural, o aumento da produção de grãos para exportação (especialmente milho, soja e café), o avanço sobre a biodiversidade e a presença de menos trabalhadores no campo. O número de pessoas ocupadas em atividades agropecuárias diminuiu 9,2%, a área plantada cresceu 5%. Cresceu também o número de tratores, grandes máquinas e o consumo de agrotóxicos e o plantio de sementes transgênicas.
Esse cenário só piora com a eleição do conservador de extrema-direita Jair Bolsonaro para a presidência da República. Somente neste ano, 290 agrotóxicos foram liberados em 200 dias de governo, o que proporcionalmente indica que é governo que mais liberou pesticidas na história brasileira. O país que já era dominado por setores do agronegócio nacional associado às empresas transnacionais, teve cenário agravado nos últimos três anos, com o avanço do neoliberalismo conservador no país. O impeachment ilegítimo da Presidente Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro, reposicionam o Brasil na consolidação da agenda política e econômica que favorece a produção de comodities agrícolas.
Assim, no início de 2018, sem divulgação e sem a participação da sociedade civil, a comissão responsável por autorizar as pesquisas, usos e comercialização de organismos geneticamente modificados (OGMs) do Brasil, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), aprovou a Resolução Normativa nº 16/2018. O documento estabelece critérios para a definição de novas biotecnologias que usam engenharia genética diversas das técnicas utilizadas em transgênicos. Uma das formas de biotecnologia mencionadas na resolução aprovada pela CTNBio é a condução genética ou redirecionamento genético (gene drives).
A normativa aprovada abre brechas jurídicas para que os organismos produzidos por essa nova tecnologia de alteração genética não sejam considerados transgênicos ou Organismos Geneticamente Modificados (OGM). Assim, sementes, insetos e outros organismos geneticamente modificados a partir de novas técnicas que não a “transgenia” podem ser excluídos das implicações da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005), como a avaliação de riscos para a segurança da biodiversidade brasileira ou de rotulagem.
A resolução, estabelecida por uma comissão do Poder Executivo brasileiro, e que tem status infra legal, viola a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e o Protocolo de Cartagena, especialmente os princípios da prevenção e precaução. Mas não só. A resolução e as suas liberações violam em especial os direitos humanos dos camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais, a partir da manipulação genética que pode exterminar com a agrobiodiversidade que estes povos constroem e ampliam. Assim, o Brasil ignora os alertas internacionais dos riscos das novas tecnologias e abre possibilidades de estudos e liberações desses organismos.
Desde a edição da normativa, a CTNBio já aprovou o registro de uma levedura para produção de bioetanol da empresa Globalyeast e também já foi solicitada quanto a aprovação de organismos das empresas Ourofino Saúde Animal Ltda, Lallemand Brasil Ltda e Du Pont do Brasil S.A. Os resumos das deliberações disponibilizadas são sintéticos1, com poucas informações disponibilizadas, o que limita o direito à informação para a população.
Quais os riscos que as tecnologias previstas na resolução brasileira apresentam?
Segundo a Resolução 16/2018, as Técnicas Inovadoras de Melhoramento de Precisão (TIMP), do inglês Precision Breeding Innovation (PBI), compreendem um “conjunto de novas metodologias e abordagens que diferem da estratégia de engenharia genética por transgenia, por resultar na ausência de ADN/ARN recombinante no produto final”. Uma das formas dessas novas tecnologias citadas são “alelos com herança autônoma e potencial de recombinação com possibilidade de alterar toda uma população (direcionamento gênico, do inglês: gene drive)”, chamados condutores ou impulsores genéticos.
Como afirmam pesquisadores de diversas organizações da sociedade civil nos arquivos sobre tais tecnologias, os impulsores genéticos são organismos manipulados geneticamente com características genéticas implantadas artificialmente e que as transferem para todos os seus descendentes em caráter dominante2. Assim, poderiam ser usados para extinguir toda uma espécie, vegetal ou animal. Ao serem liberadas no meio ambiente, esses organismos podem causar impactos irreversíveis e incontroláveis.
Segundo a Resolução 16/2018 da CTNBio no Brasil, para determinar se um produto oriundo das Técnicas Inovadoras de Melhoramento de Precisão (TIMPs) será ou não considerado como Organismo Geneticamente Modificado (OGM) a empresa ou pesquisador deve apresentar consulta à própria comissão – a CTNBio. A consulta é distribuída a somente um dos membros para relatoria e elaboração de parecer final sobre o enquadramento como OGM. O parecer é submetido a uma das Subcomissões Setoriais Permanente, de acordo com o organismo parental e o uso proposto da técnica submetida à consulta e, após a sua aprovação, deverá ser encaminhado ao plenário da CTNBio para deliberação.
Isto é, apenas um dos membros fará a análise e parecer sobre tecnologias de alta complexidade e novidade e depois poderá encaminhar a ao menos uma comissão temática, o que pode excluir todas os múltiplos impactos que as novas tecnologias podem acarretar à saúde, meio ambiente, produção agrícola, soberania e segurança nacional.
A Resolução também estabelece o prazo de 90 dias para análise e elaboração de pareceres pela subcomissão, podendo ser prorrogado por mais 90 dias caso haja requerimento. O prazo máximo de 180 dias é exíguo para avaliar pesquisas científicas sobre tecnologias avançadas e novas, com pouco desenvolvimento científico no país. Deste modo, os curtos prazos impedem qualquer acesso e desenvolvimento de pesquisa e análise que confrontem os dados e documentos apresentados pelas empresas requerentes.
Assim, a Resolução Normativa 16/2018 da CTNBio se apresenta como uma decisão tecnocrática que avança sobre questões de altíssimo risco que envolvem a soberania nacional brasileira e pode impactar os países fronteiriços, por meio de um instrumento jurídico frágil que está hierarquicamente abaixo das leis nacionais, da Constituição Federal de 1988, da Convenção da Diversidade Biológica e do Protocolo de Cartagena. Assim, os critérios econômicos acabam por prevalecer em relação aos critérios de impactos socioambientais e aos direitos humanos em sua integralidade.
A publicação da Resolução Normativa 16/2018 pela CTNBio é um arranjo jurídico-político que confere amplo poder decisório à comissão de experts, já que permite que a comissão decida se as novas tecnologias se enquadram ou não nas previsões legais de biossegurança, ao princípio da precaução e análise de riscos previstas na Lei de Biossegurança Brasileira (Lei 11.105/2005).
Se a comissão decidir pelo não enquadramento, as Técnicas Inovadoras de Melhoramento de Precisão (TIMP) podem ficar à margem da regulação jurídica, podendo ser aprovadas para pesquisa, utilização e comércio sem qualquer segurança. É comum que tais decisões valorizem a análise econômica da aprovação da pesquisa ou liberação destes organismos modificados em detrimento das análises de impactos e riscos.
Isto é, em tese, se não há previsão legal no Brasil da permissividade dessas novas tecnologias, deveria imperar os princípios constitucionais de proteção à saúde, ao meio ambiente, à precaução e prevenção, além da aplicação da Lei de Biossegurança em sua integralidade, mesmo àquelas novas tecnologias não cobertas pela literalidade da lei, a qual foi editada há treze anos e não acompanhou os riscos dos avanços em pesquisas tecnológicas dominadas por cadeias empresariais agroalimentares e biológicas.
Outro golpe na soberania brasileira
A aprovação de tal Resolução posiciona o Brasil como pioneiro no cenário mundial no estabelecimento de canais legais para a liberação desse tipo de alteração genética, a qual não tem estudos científicos aprofundados e não há qualquer comprovação que possa contribuir na resolução de problemas sociais, alimentares ou nutricionais. Frisa-se, ainda, que tal tecnologia pode ser considerada como arma biológica ou como uma atualização ainda pior das variedades “terminator”.
O domínio do mercado tecnológico agrícola reforça a divisão internacional do trabalho entre os países que pesquisam e desenvolvem tecnologias (se apropriando dos recursos naturais e conhecimentos tradicionais dos camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais) e aqueles países responsáveis pela produção agrícola concentrada, como é o Brasil. Um modelo edificado em trocas desiguais.
A alta tecnificação agrícola impulsiona a concentração e o investimento em pesquisas de tecnologia de ponta, alocada nos países de capitalismo central, mas que fomenta uma agricultura altamente industrial, dependente, digital, concentrada e com poucos trabalhadores nos países do sul. Tudo às custas da saúde, da soberania, da biodiversidade e até da vida da população. É fato, portanto, que se a concentração produtiva e o domínio do mercado pelas grandes empresas impactam o “velho continente”, nos países do Sul o desastre é brutal.
A Resolução 16/2018 deveria obedecer à metodologia de análise de riscos e de proteção à saúde humana e ao ambiente garantidos pela Constituição Federal Brasileira de 1988, pela Convenção da Diversidade Biológica e pelo Protocolo de Cartagena. Deve-se reforçar o pedido de moratória dos movimentos e organizações para o Encontro das Partes da Convenção da Diversidade Biológica e a posição dos movimentos sociais brasileiros que alertam aos perigos das liberações destas novas tecnologias. Ainda que aprovadas fossem, as biotecnologias deveriam ser enquadradas como Organismos Geneticamente Modificados, e não ficarem à margem jurídica com ausência de regulação e com possibilidade de circulação livre no ambiente.
Naiara Andreoli Bittencourt, advogada popular da Terra de Direitos. Mestra e Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná; integrante do GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
1 Podem ser acessadas no seguinte endereço da CTNBio: http://ctnbio.mcti.gov.br/deliberacoes.
2 Disponível em: http://genedrivefiles.synbiowatch.org/
Del mismo autor
Clasificado en
Ciencia y tecnología
- Alfredo Moreno 22/12/2021
- William I. Robinson 20/12/2021
- William Robinson 16/12/2021
- Evgeny Morozov 16/08/2021
- Joseline García, OBELA 11/08/2021