Onde estamos e para onde vamos? Uma “potência acorrentada”
- Opinión
“Em qualquer momento da história é possível acovardar-se e submeter-se, mas, atenção, porque o preço das humilhações será cada vez maior e insuportável para a sociedade brasileira”
J.L.F. “História, estratégia e desenvolvimento”, Editora Boitempo, São Paulo, 2014, p: 277
Fatos são fatos: na segunda década do século XXI, o Brasil ainda é o país mais industrializado da América Latina e é a oitava maior economia do mundo; possui um estado centralizado e uma sociedade altamente urbanizada e é o principal player internacional do continente sul-americano. E apesar de sua situação atual, absolutamente desastrosa, segue sendo um dos países do mundo com maior potencial pela frente, se tomarmos em conta seu território, sua população e sua dotação de recursos estratégicos.
Mais do que isto: goste-se ou não, entre 2003 e 2014, o Brasil teve uma política externa que procurou aumentar os “graus de soberania” do país, frente às “grandes potências” e dentro do sistema internacional como um todo, através de alianças estabelecidas fora do continente americano, sobretudo no caso da criação do grupo econômico do BRICS, obedecendo uma estratégia internacional de longo prazo, definida e exposta em documentos oficiais que foram aprovados pelo Congresso Nacional. Seu objetivo explícito era aumentar e projetar a influência diplomática e o poder político e econômico do Brasil dentro do seu “entorno estratégico”, incluindo América do Sul, África Subsaariana Ocidental, Antártida e a própria Bacia do Atlântico Sul. O Brasil já havia ingressado no pequeno grupo dos estados e economias nacionais que exercem liderança dentro de suas próprias regiões e era necessário começar a atuar como uma potência em ascensão, porque dentro deste grupo de países existe uma lei de ferro: “quem não sobe, cai”. Por isso mesmo, já naquele momento, o Brasil começou a experimentar as consequências de sua nova postura, ingressando num novo patamar de competição, cada vez mais feroz, com países que lutam entre si permanentemente para galgar novas posições na hierarquia do poder e da riqueza mundial.
Este foi um momento crucial da história recente do Brasil: para seguir em frente e aproveitar aquela oportunidade estratégica, era indispensável a consolidação de uma coalizão de poder interna, sólida, homogênea e decidida, com capacidade efetiva de aproveitar as brechas e avançar com decisão nos momentos oportunos. Havia que olhar para a frente e pensar grande, para não se amedrontar nem ser atropelado pelos concorrentes e pela própria história. Mas em todo momento as portas sempre estiveram abertas, e sempre foi possível acovardar-se e recuar, apesar de que o preço do recuo fosse cada vez maior. E foi exatamente isto que aconteceu: uma parte da elite civil e militar do país, e da própria sociedade brasileira, decidiu recuar e pagar o preço de sua decisão. Optaram pelo caminho do Golpe de Estado, e depois redobraram sua aposta, numa coalizão formada às pressas que culminou com a instalação no Brasil de um governo ‘paramilitar’ e de extrema-direita, que nesse momento está se propondo mudar radicalmente o rumo da política externa do país, com o abandono de algumas posições tradicionais do Itamaraty e com a denúncia raivosa da política externa seguida pelo Brasil entre 2003 e 2014.
Tudo em nome de uma cruzada contra uma espécie de ectoplasma que eles chamam de “marxismo cultural” e que foi inventado pela ultradireita norte-americana e da “salvação da civilização judaico-cristã”, segundo o novo chanceler brasileiro que acumula asnices diárias que são objeto da risota mundial. Foi assim que, logo de partida, o novo governo apoiou a intervenção militar na Venezuela, que havia sido anunciada pelos Estados Unidos, e que acabou se transformando numa “invasão humanitária” que foi um gigantesco fracasso e representou uma humilhação para o Itamaraty, que acabou sendo alijado – pela primeira vez na história da América do Sul – de uma negociação fundamental para o continente e que foi realizada na Noruega, entre o governo e a oposição venezuelana.
Simultaneamente, o novo governo se propõe levar à frente, de forma rápida e atabalhoada, uma desmontagem “selvagem” – do tipo que foi feita na Rússia dos anos 90 – de todos os principais instrumentos estatais de proteção e defesa da população, do território, e dos recursos naturais, industriais e tecnológicos brasileiros.
Mas existe uma coisa que chama a atenção no meio da balbúrdia: o fato de que não exista ninguém dentro deste novo governo que consiga dizer minimamente qual é o seu projeto para o Brasil! Qual é afinal o seu objetivo para o país, no médio e longo prazo? O núcleo central do governo simplesmente não fala, nem pensa, só agride e repete frases de efeito. Os militares aposentados que estão no governo – da chamada “geração Haiti” – dão murros, esbravejam, ficam apopléticos, e quando falam, os que falam, costumam dizer coisas desconexas e inoportunas. Os religiosos fundamentalistas recitam versículos bíblicos, e parece que vivem cegados por suas obsessões sexuais. Os juízes e procuradores que participaram do golpe de estado e da “operação Bolsonaro”, parece que só falam entre si e com seus tutores norte-americanos, não conseguindo enxergar um palmo além do seu nariz provinciano. E por fim, os financistas e tecnocratas de Chicago, amigos do ministro da economia, não conhecem o Brasil nem os brasileiros e parecem robôs de uma ideia só. Mesmo assim, é possível deduzir o que está na cabeça daqueles que efetivamente financiaram e seguem tutelando este verdadeiro bando de indigentes mentais, a partir dos artigos e manifestações que aparecem nos seus jornais e revistas periódicas.
Durante a República Velha, as oligarquias agrárias e as elites financeiras brasileiras sempre admiraram e invejaram o sucesso do modelo “primário-exportador” argentino de integração com a economia inglesa, bem sucedido durante a segunda metade do século XIX. E mesmo depois da crise de 30 e da Segunda Guerra Mundial, muitas lideranças políticas e empresariais, e muitos economistas, como Eugenio Gudin, seguiram defendendo este modelo para o Brasil, mesmo quando a Argentina já tivesse entrado em crise e iniciado o seu longo declínio que chega até os nossos dias. Basta dizer que em pleno período desenvolvimentista, Roberto Campos, que foi presidente do BNDE e ministro do governo militar de 1964, chegou a dizer em algum momento que o seu sonho seria fazer do Brasil um grande Canadá.
O mesmo sonho que ainda embala a cabeça dos empresários e banqueiros que financiaram e que ainda sustentam o Sr. Guedes dentro do governo do capitão Bolsonaro. Sua proposta e sua agenda foi sempre a mesma, e segue sendo repetida como uma ladainha religiosa: é necessário abrir, desregular, privatizar e desindustrializar a economia brasileira, para radicalizar o velho modelo argentino e alcançar um novo estatuto nas relações do Brasil com os Estados Unidos e com a União Europeia. Um estatuto parecido com o dos velhos domínios da Grã Bretanha, como foi o caso exatamente do Canadá, mas também da Austrália e da Nova Zelândia, até avançado século XX. Territórios que gozavam de uma condição diferente das demais colônias britânicas, porque mantinham seus governos e sua vida política interna autônomas, mas tinham sua economia, sua defesa e sua política externa controladas pela Inglaterra. E este é hoje, sem dúvida, o projeto e a utopia dos segmentos da elite econômica brasileira que decidiram apostar o seu futuro neste governo, que já se transformou numa verdadeira excrescência histórica.
Um projeto que não é “teoricamente” impossível, mas que enfrentaria grandes obstáculos reais, situados dentro e fora do Brasil. O Brasil é um país continental, com uma população desigual e muitas vezes superior a dos velhos domínios britânicos, com uma economia muito mais desenvolvida e heterogênea, e com grupos de interesse poderosos e que serão literalmente destruídos, caso avance este projeto ultraliberal. Por outro lado, os Estados Unidos, hoje sob um governo que pratica uma política econômica de tipo nacionalista e protecionista, não se submete e não aceita nenhum tipo de negociação ou acordo que entre em conflito com os seus “interesses nacionais”, econômicos e estratégicos. Muito menos ainda, assumiria a responsabilidade da tutela econômica de um país com as dimensões do Brasil, sob um governo absolutamente caótico, e com uma economia agro-exportadora que compete com a economia americana e, em particular, com os grupos do meio-oeste que foram essenciais para a vitória eleitoral de Donald Trump.
Mas existe uma outra dimensão deste “Projeto Dominium”: a troca da condição de aliado militar regional, que o Brasil sempre ocupou durante o século XX, pela condição de “protetorado militar” dos Estados Unidos: um território autônomo que abre mão de ter sua própria política de defesa, e de segurança nacional em troca da proteção militar de um estado mais forte, neste caso, dos Estados Unidos. Aceitando obrigações que podem variar muito, dependendo da natureza do seu relacionamento com seu protetor, e também, da sua localização geográfica e geopolítica dentro do sistema internacional.
Isto já aconteceu, de certa forma, no caso da participação brasileira, ao lado dos Estados Unidos, na invasão de Santo Domingo, em 1964. Mas em nenhum momento do século passado, soldados brasileiros ocuparam posições dentro da hierarquia interna de um comando militar regional dos Estados Unidos, como estão se propondo fazer neste momento. Nem tampouco jamais no século passado foi sequer cogitado a abertura de bases militares estrangeiras dentro do território brasileiro. Nesse sentido, existe uma grande diferença que precisa ser sublinhada, porque o projeto econômico do Dominium tropeça com obstáculos materiais e com interesses de grupos que são reais e muito pesados. Mas o projeto do “protetorado militar” é perfeitamente viável do ponto de vista material, e conta com a simpatia das Forças Armadas norte-americanas, mas ele depende de uma decisão soberana da sociedade e do estado brasileiro, e não apenas das Forças Armadas. E esta decisão tem limites jurídicos e morais, políticos e constitucionais, até porque quem financia a existência das Forças Armadas é o povo brasileiro, com o objetivo de que cuide de sua soberania, nos termos da sua Constituição. E não cabe moralmente a um governo, por mais direitista que seja, exigir que suas Forças Armadas se submetam ao comando de outro estado que não seja o brasileiro.
Em síntese, do ponto de vista econômico, já não é factível – em pleno Século XXI – transformar o Brasil numa Nova Zelândia, mas é perfeitamente possível, do ponto de vista militar, acorrentar a nação e submeter os brasileiros à humilhação de bater continência para a bandeira de outro povo. Uma traição que deixará uma mancha na história do Brasil causando-lhe um dano irreparável, a menos que a nação brasileira levante-se e volte a caminhar com suas próprias pernas. Quando esta hora chegar, entretanto, será necessário tomar decisões radicais em linha com um novo projeto de longo prazo que se sustente com seus próprios apoios internos, sem recuar nem esmorecer. Lembrando sempre que todos os povos que conseguiram superar grandes catástrofes, para chegar a ser grandes nações tiveram primeiro que desacorrentar suas próprias mãos, e assumir o controle de sua soberania, para poder definir seus próprios objetivos e construir o seu próprio futuro.
- José Luís Fiori é Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI, coordenador do GP da UFRJ/CNPQ, “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”;, coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou, “O Poder global e a nova geopolítica das nações”, Editora Boitempo, 2007 ; “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 201 ; e, “Sobre a Guerra”, Editora Vozes Petrópolis, 2018.
julho 7, 2019
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