A fórmula Alberto Fernández e Cristina Kirchner abre um novo horizonte para o povo argentino
- Opinión
O povo argentino e o mundo foram surpreendidos na manhã deste último sábado, 18 de maio, com o video da ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner anunciando a sua candidatura como vice-presidenta de Alberto Fernández, a quem propõe como presidente da Argentina, numa ampla Frente Patriótica para as PASO, eleições primárias em junho, prévias às de outubro.
Alberto Fernández, advogado e atualmente professor de direito na Universidade de Buenos Aires, é dirigente político peronista, foi chefe de Gabinete no governo de Néstor Kirchner, e em parte dos governos de Cristina Kirchner com quem teve coincidências e objetivas divergências políticas, sem que isso significasse uma ruptura de laços de amizade e militância que já duram mais de 20 anos. Conhecido pela sua capacidade de diálogo com as diversas forças políticas progressistas, desde o peronismo, à chamada Frente Renovadora (apoiada pelos pequenos e médios empresários), aos movimentos sociais, Alberto Fernández conquistou a confiança de Cristina, já manifesta no lançamento do seu livro “Sinceramente”, ao elogiá-lo como o estimulador desta obra, útil à sua defesa contra os ataques do “lawfare”, promotores da era Macri.
Aos que ainda não ouviram as palavras de Cristina, cito algumas centrais que fundamentam a razões da sua decisão: “Os tempos que estamos vivendo hoje na Argentina são realmente dramáticos. Nunca tantos e tantas dormindo nas ruas. Nunca tantos problemas de comida e de trabalho. Nunca tantos e tantas chorando frente aos boletos impagáveis de luz e de gás. E se olharmos ao Estado, meu deus! A dívida externa contraída em dólares, em apenas 3 anos é maior à que recebeu Néstor Kirchner em “default”; e com um agravante: a dívida com o FMI é 40% da total. E o absurdo, é que isso é desnecessário! O endividamento do país começa a mostrar, nos seus primeiros sintomas, que será muito difícil reverter esta situação. Isso, sobretudo se colocamos nomes e interesses pessoais acima do desafio de construir uma coalizão eleitoral, não somente capaz de triunfar nas próximas eleições, mas de assegurar que o que ser propõe à sociedade possa ser cumprido. Isso é fundamental, não é insignificante. É um princípio fundamental evitar que se some à frustração atual, produto da fraude eleitoral que facilitou a chegada de Maurício Macri ao poder, uma nova frustração, que, não tenho dúvidas, mergulharia a Argentina no pior dos infernos. Sim, não tenho dúvidas, pois a situação do povo e do país é dramática! E estou convencida de que esta fórmula que propomos (Alberto Fernández, presidente, e Cristina Fernández de Kirchner, vice-presidenta) é a que melhor expressa o que neste momento a Argentina necessita para convocar os mais amplos setores sociais, políticos e econômicos, não somente para ganhar uma eleição, mas para governar. Porque é preciso que fique claro a todos e a todas: trata-se de governar uma Argentina novamente em ruínas, com o povo outra vez empobrecido. Portanto, está claro que será necessário governar com uma coalizão muito mais ampla que aquela que vencer as eleições. Estou convencida de que esta é a melhor contribuição que posso dar ao meu país.”
Após o primeiro impacto de tristeza, que durou minutos, sensibilizando militantes juvenis, mulheres ou extratos pobres que alimentavam a expectativa de revê-la presidenta, as palavras de Cristina foram rapidamente metabolizadas e a fórmula popularizada Fernández-Fernández, passou a ser recebida como uma estratégia genial de Cristina, enchendo de ar e esperança à maioria dos argentinos, desde a base kirchnerista a independentes e setores da classe media e da burguesia industrial e comercial. É significativo que numa recente estatística de intenção de voto nacional chega a 35,7% a favor desta fórmula, e Macri decai a 24,8%, desiquilibrado sobre um “Cambiemos” desconcertado e dividido. A aprovação à fórmula proposta por Cristina recebeu imediato apoio de 8 governadores de Província e vários prefeitos, dirigentes políticos e sindicalistas.
O eleitorado de Cristina não interpreta sua decisão como um recuo, mas uma garantia à sua liderança por outros meios, deslocando-a do alvo central do massacre judicial-midiático, que uma eventual contenda direta Macri versus Cristina exacerbaria; garantia à governabilidade após uma possível vitória em outubro, que requererá uma ampla unidade opositora. Reafirma-se a confiança na ex-presidenta pelo seu ato de responsabilidade e inteligência tática; a militância prova uma lição de objetividade para enfrentar de forma unificada a realidade nua e crua, de um país arrasado pelo endividamento e um empobrecimento pior que 2001; para sair do sufoco da blindagem de um estado judicial de exceção na Argentina, como no Brasil, onde Cristina e Lula com chance segura que tinham de elegerem-se presidentes, são ameaçados e supridos do seu estado de direito. Não obstante, a fórmula Fernández-Fernández já é o início do fracasso de Cambiemos e Macri.
A centralidade da política – pisoteada pelo neofascismo – retorna como um instrumento construtivo e necessário. Há uma espécie de alívio no ar, de ruptura da pressão, do clima de ódio, de guerra e desespero social gerado pelos agentes neoliberais de “Cambiemos”. Abre-se a esperança de unir os excluídos de todo tipo em torno de um projeto nacional de reconstrução. Há também os que avaliam as vantagens na função da vice-presidência da República: Cristina adquiriria o direito constitucional de ser presidenta do Senado e reforçar a contenda progressista no Parlamento; outorga-se a oportunidade de ser substituta de grande impacto na ausência do presidente em reuniões internacionais; e isso, sem dizer que será figura central para as mobilizações sociais e avalista das causas populares.
Fica claro, o já dito: Só a Cristina, não é suficiente, mas sem Cristina, é impossível. Nas primeiras entrevistas, Alberto Fernández deixou claro: “Se alguém pensa que não vou ouvir Cristina, está enganado. Vocês não sabem a tranquilidade de receber o apoio de Cristina”. Reitera que “Cristina tem que estar no centro do governo”. “Vamos voltar, sim, mas para ser melhores”. “Não melhores que Macri, pois isso é mais fácil; mas melhores que antes”. A própria Cristina diz, de forma autocrítica: “Não se trata de voltar ao passado, nem de repetir o que fizemos de 2003 a 2015; … além dos acertos, críticas e erros, nos sentimos orgulhosos, mas o mundo é outro, e nós também”. Os Fernández-Fernández falam em colocar acima de tudo o interesse nacional e dar resposta aos interesses mais urgentes dos povos. Torna-se evidente que está em marcha o que Cristina Kirchner anunciou na Feira de Livro: um “Contrato social de cidadania responsável”.
Alberto Fernández falou, no programa “Minuto Uno” da TV C5N, em recriar os Ministérios eliminados por Macri: o Ministério da Saúde, o Ministério do Trabalho e o Ministério da Ciência e da Tecnologia. A sua primeira viagem, como candidato presidencial foi a Rio Gallegos em Santa Cruz, sua Província, em visita à governadora Alicia Kirchner, irmã de Néstor, que se recandidata. Visitou o Centro de Medicina Nuclear, a que se referiu como uma exemplar criação do Estado, a ser seguida nacionalmente. Completou visitando a tumba de Néstor Kirchner, expressando emoção e fidelidade aos seus ideais compartidos.
Em entrevista, ao jornal Página12, Alberto Fernández recordou que participou com Néstor Kirchner em 2003 na reunião de Cúpula em Mar del Plata, onde uns 6 países de governos progressistas estavam contra a ALCA, através de Lula, Néstor, Chávez,Tabaré e outros; e que Lula precisava ir-se um dia antes, para receber Bush de visita ao Brasil; mas deixou explícito seu voto contra a ALCA. Disse que Lula é grande!; que “Mercosul e Unasul existem graças a Lula”.
Alberto Fernández reiterou que Lula é vítima do sistema e que vai pedir a sua libertação; comunicou-se com Celso Amorim: “comecemos a construir uma nova história para a América Latina”. Sempre fui peronista e defendi que a América Latina deve se integrar”. A fórmula Fernández-Fernández teve repercussão mundial; saudada por Rafael Correia, Evo Morales e tantos outros.
Três dias após o anúncio da fórmula, reiniciou-se a farsa judicial, o show midiático no tribunal Comodoro Py, em torno a um processo acionado pelo TOF2 (Tribunal Federal 2) na causa chamada “Viabilidad” contra Cristina Kirchner por suposta corrupção, sem provas, na licitação de obras públicas, na província de Santa Cruz, de governo kirchnerista. A Corte Suprema havia ordenado a prorrogação de tal processo por absoluta falta de provas, reclamadas pelos advogados da ex-presidenta. De 52 obras sob investigação, somente 5 foram auditadas, as que são de responsabilidade de empresários vinculados ao governo anterior, nenhuma da sociedade Macri. Por pressões políticas do Executivo de Macri, a Corte Suprema recuou e o processo se reabriu a mando do Tribunal Federal. Um mecanismo já conhecido no Brasil, onde vemos um STF acuado diante de causas inventadas contra o ex-presidente Lula, numa clara transgressão das leis e do direito penal. Um evidente lawfare de manipulação política da “justiça” em campanha eleitoral. Uma cortina de fumaça para encobrir os problemas econômicos e sociais do país.
Alberto Fernández considera que uma Reforma Constitucional não é necessária; e que nem todos os juízes descumprem o dever constitucional. De fato, há juízes como Alejo Ramos Padilla, com forte apoio popular, que recebeu a aprovação da Câmara Federal de La Plata à qual pertence, para continuar dirigindo a causa do D’Alessiogate, enfrentando as ameaças do governo nacional; e seguir as investigações sobre a rede de espionagem que envolve agentes de inteligência e funcionários dos três poderes de Estado do governo “Cambiemos”. Por outro lado, há promotores rebeldes, como Carlos Stornelli, intimado várias vezes a depor por envolvimento na mesma causa, mas recusando-se a cumprir a ordem judicial. Por isso uma das principais metas de Alberto Fernández é a promover a Reforma do Judiciário, e mudanças em aspectos do Conselho da Magistratura. Esclareceu que o fundo do Conselho da Magistratura era público no governo anterior. No governo de Macri, passou a ser secreto. Fernández reivindica a transparência; a revisão dos critérios para a eleição dos juízes; a revisão das sentenças. Um caminho importante para combater a politização da Justiça, e a judicialização da política.
Abre-se a galope o debate para o projeto de campanha e de governo. O que é certo é que o pagamento ao FMI é ponto crucial do debate econômico. Os Fernández-Fernández vivenciaram a experiência de 2003, quando a dívida ao FMI era 10% do total; agora é de 35 a 40%. A negociação torna-se complicada. Esclarecem que o FMI, “põe o dinheiro, pede menos juros, mas condicionam muito mais que os outros credores”. As imposições do FMI implicam em redução do gasto público, privatização de Bancos públicos e aumento de tarifas. Aí está a herança maldita que deixará “Cambiemos”: 332 bilhões de dólares de dívida externa (86% do PIB), dos quais 57 bilhões de dólares ao FMI. Alberto Fernández reitera que os dólares que a Argentina não emite, não podem depender do refinanciamento do FMI, mas da ativação do aparato produtivo: produzir, exportar e reduzir as importações. Fernández-Fernández terão pela frente uma árdua tarefa de renegociação do pagamento da dívida contraída por Macri com o FMI. Mas, deixam claro que a única dívida inadiável é com as crianças, os anciãos e os trabalhadores; e recordam o dito por Néstor Kirchner: “os mortos não pagam dívida”. Assim, abre-se o debate para definir a fórmula econômica-social da fórmula eleitoral Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner.
- Helena Iono Jornalista e produtora de TV, correspondente em Buenos Aires
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