Como sacrificar política e socialmente o solo urbano
- Opinión
A ampliação das vias de acesso do povo às instituições que se encontram a seu serviço, constitui-se numa das mais caras conquistas verificadas na história das reivindicações populares junto aos Estados democráticos de direito. Além dos referendos, dos plebiscitos e da iniciativa popular, que a Constituição Federal brasileira previu como direitos políticos no seu artigo 14, audiências públicas são convocadas a miúde, ora por órgãos públicos, ora por pedido da própria sociedade civil, para se debater e decidir questões que mereçam ser enquadradas no que a Constituição bem qualificou como soberania direta no parágrafo único do seu primeiro artigo.
O próprio Poder Judiciário, com a Justiça Alternativa e seus Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, além de outras formas de mediação, vem abrindo novas possibilidades de – mesmo no âmbito de processos onde se buscam sentenças capazes de colocar um fim até em conflitos onde estão presentes direitos multitudinários – encontrar-se solução negociada e justa para as partes.
No âmbito da administração municipal de Porto Alegre, nada disso está se verificando, pelo menos no que concerne à sua política urbana. De acordo com o artigo 39 da Lei Complementar 434/99, do Plano Diretor da cidade, que regula o CMDUA (Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental) se reconhece, dentre outras, como competências deste Conselho, as de “zelar pela aplicação da legislação municipal relativa ao planejamento e desenvolvimento urbano ambiental, propor e opinar sobre a atualização, complementação, ajustes e alterações do PDDUA (Plano diretor de desenvolvimento urbano e ambiental); promover, através de seus representantes, debates sobre os planos e projetos que incidam nas Regiões de Gestão do Planejamento; propor, discutir e deliberar sobre os planos e projetos relativos ao desenvolvimento urbano ambiental; receber e encaminhar para discussão matérias oriundas de setores da sociedade que sejam de interesse coletivo; zelar pela integração de políticas setoriais que tenham relação com o desenvolvimento urbano ambiental do Município; propor a programação de investimentos com vistas a assessorar a implantação de políticas de desenvolvimento urbano ambiental para o Município; aprovar Projetos Especiais de Impacto Urbano de 2º e 3º Graus, bem como indicar as alterações que entender necessárias;
Os poderes atribuídos por lei ao CMDUA, enumerados neste artigo, que dizem respeito diretamente ao solo urbano de Porto Alegre, às garantias devidas a um ambiente saudável, de modo a refletir os objetivos de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”, como prevê a parte final do caput do artigo 182 da Constituição Federal, estão sendo literalmente desrespeitados pela atual Presidência do Conselho, exercida pelo titular da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (Smams), senhor Maurício Fernandes.
Não há sessão do CMDUA que matéria da mais alta relevância para a conservação daquilo que interessa permanecer intocado no solo urbano ou do que precisa modificação, seja essa emergencial ou de longo prazo, que a legislação municipal, a do Estado, a do Estatuto da Cidade e até da Constituição Federal não sofram infringência.
Isso fica provado até pelas atas das sessões realizadas pelo CMDUA, surpreendentemente não mais degravadas de uns tempos para cá. A sua presidência e a da representação do município junto ao Conselho, atropelam, conforme o caso, decisões que exigem notoriamente mais detido exame, transformando o Conselho num Conselho proibido de aconselhar.
O regimento interno atualmente vigente, que não foi sequer objeto de votação sobre a sua redação final, pelo CMDUA, está sendo imposto pela presidência com um artigo que deixa o plenário totalmente nas suas mãos. No artigo 5, inciso X, a ele foi atribuído o poder de: “fixar o tempo das manifestações em Plenário, garantida a participação dos Conselheiros”. Essa garantia virou letra morta, pois, dependendo do que a presidência já antecipou como relevante ou não, segundo o seu exclusivo juízo, cesse qualquer discussão sobre o que ele previamente já decidiu. Um/a conselheiro/a que seja relator/a de algum processo que esteja sob exame não pode mais sequer pedir diligência a não ser com o consentimento do plenário. O tal novo regimento prevê a possibilidade, agora, até de as votações do CMDUA serem feitas virtualmente sem a presença das/os votantes…
Cada pedido de licenciamento relacionado com qualquer empreendimento que impacte o meio urbano, por exemplo, pode e deve passar pela apreciação do CMDUA. Em certos casos, isso envolve matéria relativa a licenças de profundo efeito sobre toda uma região da cidade. Não é pouca coisa, para ser tratada de um modo tão desorganizado como está acontecendo até aqui, desde que o Plenário deste Conselho foi eleito.
O pior de tudo é que todo esse empenho de se tratar qualquer licença como um caso isolado, indiferente ao impacto urbanístico que o empreendimento respectivo comporta, é uma grave violação daquilo que própria Constituição consagrou como direito à cidade, uma novidade afinada com o que de mais moderno existe em matéria de planejamento submetido legalmente, em cada cidade, à competência de Conselhos como o CDMUA, hipótese que o seu presidente ignora ou substitui pelo seu arbítrio. Ele trata uma possibilidade de atuação importante como essa na base do sim ou não e do como ele quer. Cada vez que um/a Conselheiro/a oponha alguma resistência ou modificação do pedido em causa, é considerada antecipadamente como improcedente ou inoportuna “contrária ao desenvolvimento da cidade”, seja uma generalidade aleatória desse tipo aceita sem qualquer exame ou contrariedade. Com esse voto antecipado, justifica-se o veto a qualquer outra decisão. Que poder deliberativo, previsto em lei para o Conselho, resta a este diante de um reducionismo desta espécie?
Como já aconteceu anteriormente, o presidente do CMDUA vai obrigar a representação popular e sociedade civil a denunciar ao Ministério Público as violações de direito que ele está praticando, não sendo impedidas sequer por manobras escapistas do tipo requentar, a cada sessão do Conselho, discussão sobre questões regimentais, meramente formais, notoriamente tendentes a neutralizar toda e qualquer oposição ao seu modelo ditatorial de agir.
Lamentável. É tal a distância que a Administração Pública do Município mantém atualmente com o seu corpo técnico e com a sociedade porto alegrense que uma notícia recente publicada no Jornal Comércio revelou a intenção do prefeito de contratar uma auditoria externa que auxilie o Poder Executivo a formular alguma proposta de modificação do plano diretor ou toda uma nova lei a respeito. Ora, foi justamente este Conselho, em suas composições passadas, que coordenou o primeiro plano diretor da cidade e as modificações subsequentes. Essa onda avessa ao debate, portanto, impulsionada pelo Poder Executivo do Município, denunciam existir um arraigado preconceito e má vontade contra os espaços de democratização da administração pública onde as organizações da sociedade civil alcançaram representação. Ela comporta hipóteses piores para o prefeito e para o presidente do CMDUA: despreparo, ignorância, autoritarismo, ausência de espírito público, ou até a má intenção de desrespeitar esse Colegiado.
Diante de um flagrante desrespeito às competências legais do CMDUA que o último preside, era de se esperar alguma demonstração de brio, coragem, por mínimas que fossem, frente a intenção manifestada pelo prefeito. Até agora, nada. Sua renúncia, assim, a um encargo para o qual tem revelado tanta inaptidão, tão grande aversão ao debate democrático, ao direito à cidade e ao seu povo, fariam muito bem a Porto Alegre.
fevereiro 25, 2019
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