A forma mentis
- Opinión
Abraço o velho amigo estrangeiro, acaba de chegar. Viveu no Brasil por longo tempo a partir dos anos 90 do século passado e volta de vez em quando para rever companheiros de outras jornadas. “Creio que esta seja a minha derradeira visita”, logo diz, sombrio. O subtexto é claro, mas ele explica: “O ar ficou irrespirável”.
O velho amigo não figura na categoria dos “vermelhos” apontada à execração pública pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, é, isto sim, um elegante e civilizado cavalheiro acostumado a frequentar a razão, e está desolado ao reencontrar o País na espantosa situação em que precipitamos. “Como é possível – diz, com insólita veemência – que este pessoal acredite que Lula seja o responsável por tudo quanto acontece?”
Quando alude ao “pessoal” refere-se a muitos e muitas abastados(as) com os quais conviveu no passado até recente, gente da chamada classe média que de média não tem coisa alguma. E ele recorda o Brasil do presidente Lula, por quem mantém admiração e respeito, transformado em um recanto esperançoso e sem complexo de vira-lata, o exato contrário do que será logo mais, o vira-lata de Trump.
E nos sobrou falar do destino do ex-presidente entregue ao tribunal do Santo Ofício, como Giordano Bruno ao cardeal Belarmino. Aliás, não deixamos de considerar a possibilidade de que fogueiras comecem a arder em todo o território nacional.
O futuro governo representa a continuidade de um projeto feroz sob medida para impor a lei do mais forte, nutrido pelo ódio de classe. Excluo que o plano estivesse definido nos detalhes na cabeça dos conspiradores iniciais, os golpistas primevos.
Tudo se encaixou, porém, com total naturalidade por ser o fenômeno tipicamente brasileiro. O que coloco em questão é a forma mentis do nativo, incapaz de entender o seu próprio país, enquanto, mesmo quem consegue construir um raciocínio, se prontifica a afirmar que o mundo todo vai de mal a pior.
Sim, as políticas neoliberais provocaram desastres globais e até o avanço tecnológico contribui para a imbecilização do ser humano. Se quisermos, entretanto, considerar o Brasil um país habilitado potencialmente a figurar entre os civilizados, então procuremos na história e na realidade contemporânea as razões do fracasso, com destaque para os pretensos esquerdistas eternamente impotentes diante da prepotência da casa-grande.
Além da verdade factual, há muitas outras nações onde a sociedade civil resiste, a Justiça funciona em perfeita independência em relação aos demais poderes, a mídia exprime posições diferenciadas, centros de cultura de alto nível subsistem, grandes intelectuais agem, os sindicatos convocam greves gerais. Etc. etc.
Há quem queira comparar o Brasil com os EUA de Donald Trump e são evidentes as semelhanças entre as eleições do presidente estadunidense e de Bolsonaro. Os EUA nem por isso deixam de ser grande potência dotada de instituições de excelência científica e cultural e de uma mídia poderosa e para os mais variados gostos e tendências.
Não, não somos os EUA, e pretender imitar a atual política exterior de Washington é simplesmente ridículo. Mas, vale acentuar, não somos sequer a Argentina ou o Uruguai. Os brasileiros vivem uma ficção como intérpretes de uma novela da Globo, e mesmo muitos que reputamos letrados carecem de cultura humanística e espírito crítico.
O país da casa-grande e da senzala, da minoria rica e larga maioria pobre, quando não miserável, acentua a sua divisão entre Norte e Sul, e este, tolamente jactancioso, recebe lições de política e civilidade daquele.
Houve sobretudo no Nordeste lideranças que souberam chegar ao povo, bem ao contrário do que se deu de Minas para baixo, e aqui está a chamada esquerda que haveria de fazer o exame de consciência, o que a obriga a incapacidade de mobilização e a sequência inexorável de erros cometidos desde a reeleição de Dilma Rousseff.
Atravessamos a desgraça de um país de tristes tradições, sem guerra de independência e sem revoluções. Sofremos “movimentos”, como diria um certo Toffoli, juntamente com Sérgio Moro impecável exemplo da injustiça verde-amarela.
O mea-culpa é necessário, até para impedir a dolorosa impressão de que a violência da prisão sem crime e a grosseria dos inquisidores a vexar o maior líder político brasileiro para vários espécimes da pseudoesquerda já é página virada.
26/11/2018
https://www.cartacapital.com.br/revista/1031/a-forma-mentis
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