A agricultura na encruzilhada, e isso é positivo
Neste momento, é possível evitar o abismo e tomar um rumo condizente com os desejos da sociedade brasileira e as necessidades do planeta
- Opinión
A caríssima fatura que o modelo predominante na agricultura impõe à sociedade brasileira é, há décadas, alvo de questionamento e crítica. Mas é a primeira vez que, concretamente, se configura uma encruzilhada na qual podemos adotar um rumo de construção de um outro paradigma para a agricultura, afinado com os desafios deste século.
A tensão não poderia ser maior, já que as forças mais reacionárias, de base rural e escravagista, operam agilmente nos bastidores e na cena pública no sentido de aumentar a concentração de terras, erodir de forma bárbara e irresponsável a biodiversidade e os direitos da classe trabalhadora no campo e engordar, ainda mais, o poder das gigantes mundiais das sementes e dos agrotóxicos.
A ofensiva da bancada ruralista pela liberação indulgente de agrotóxicos no Brasil, ao passo que suscita indignação geral da população, avança na Câmara dos Deputados e está pronta para ser votada em plenário, com chance de vencer, dado que a composição entre ruralistas e fisiológicos garante maioria na Casa.
A ameaça, portanto, é grave e premente. Em sua essência, significa a supressão de critérios restritivos e rapidez na aprovação de novas substâncias venenosas, sob escrutínio apenas do Ministério da Agricultura, que hoje funciona como sucursal da bancada ruralista e de meia dúzia de corporações internacionais, onde o interesse público não entra.
O PL do veneno motivou dezenas de dossiês, notas técnicas e manifestações contrárias por parte de instituições públicas e organizações sociais. A campanha em favor da proposta, que precisou contratar publicitário de renome para vender o inaceitável, procura passar a imagem de segurança, modernização e desburocratização. O apelo a ideias tão consensuais não poderia ser mais falacioso.
Na realidade, ao suprimir a proibição de que agrotóxicos com características teratogênicas, mutagênicas e carcinogênicas sejam registrados no Brasil, desdenha da segurança alimentar e nutricional da população, da saúde pública e dos cuidados com o meio ambiente.
O discurso da modernização em defesa do PL dos venenos é, igualmente, um engodo. Se quisesse alinhar a legislação brasileira às regulamentações dos países centrais, o sentido da proposta deveria ser inverso. A evolução desse tema nos Estados Unidos e na União Europeia levou à preponderância de instituições de meio ambiente e saúde no processo decisório; a restrições cada vez mais duras conforme as evidências científicas indicam perigo à saúde; a custos muito mais elevados para as empresas no pleito de novos registros; e ao incremento dos sistemas de fiscalização, monitoramento e reavaliação destes produtos. O PL 6299/2002 propõe exatamente o contrário.
A desastrosa aprovação dessa proposta aprofundaria o abismo social e econômico que marca a agricultura no Brasil, permitindo exorbitantes e acelerados ganhos para meia dúzia de corporações gigantes e transferindo para o Estado, para a sociedade e para as futuras gerações o ônus das doenças e da perda de solos, de biodiversidade e de serviços ecossistêmicos. Além disso, coloca em risco as exportações do setor, já que parte importante do mercado internacional adota parâmetros mais restritivos que os nossos e sinaliza que as exigências tendem a crescer.
É hora de reconhecermos que o século 20 acabou e que este modelo não oferece respostas à altura dos desafios do nosso tempo.
O que nos coloca em uma encruzilhada, e não em uma ladeira em direção ao abismo, é a possibilidade de fazermos avançar no Congresso o projeto de lei que prevê a criação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA). A proposta, em tramitação, daria respaldo legal à vasta e diversa experiência agropecuária de base agroecológica existente, que precisa de incentivos para ganhar a escala continental de que o país é capaz.
Plano Nacional de Redução de Agrotóxicos
Trata-se de uma proposta discutida entre movimentos sociais e ambientais, consumidores e órgãos de governo, que fornece as bases para uma transição factível, responsável e gradual para sistemas produtivos menos poluentes e menos dependentes de insumos externos, visando modelos sustentáveis, justos e eficientes do ponto de vista agronômico e econômico. Esse processo é viável se conduzido por políticas públicas que reúnam medidas econômicas, ambientais, sociais e produtivas.
A ideia de que a agroecologia só seria viável em pequenos nichos não passa de um mito. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o modelo convencional se tornou predominante porque nele foram injetados vultosos recursos públicos sob a forma de financiamento, conhecimento científico e apoio técnico. As experiências orgânicas e agroecológicas existentes raramente obtiveram tais estímulos. Ao contrário, vingaram enfrentando as regras do jogo, articuladas, a partir dos anos 1970, para favorecer a monocultura em grandes áreas, com uso de quantidades crescentes de insumos derivados do petróleo e do parque industrial que produzia armas químicas usadas a partir da Primeira Guerra Mundial.
Em segundo lugar, é necessário reconhecer o amplo conhecimento científico e empírico acumulado, envolvendo enorme variedade de técnicas e processos, que atestam que os sistemas agroecológicos são mais baratos e mais produtivos dos que os convencionais. A própria ONU já recomenda esse caminho para a produção de alimentos em quantidade e qualidade satisfatórias para a humanidade.
É necessário, agora, o enfrentamento consequente das questões que restringem o desenvolvimento da agroecologia no Brasil.
A PNaRA, nesse sentido, prevê um conjunto de mecanismos econômicos e financeiros para estimular a pesquisa, o desenvolvimento, a produção e comercialização de produtos de base limpa, agroecológica, orgânica ou de controle biológico, bem como incentivar a estruturação de micro e pequenas empresas que atendam a esse mercado. Os incentivos devem incidir também, diretamente, na produção, diferenciando taxas de juros do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) para estimular a produção agroecológica e orgânica. Ao mesmo tempo, prevê a eliminação de subsídios, isenções e outros estímulos que hoje beneficiam a importação e comercialização de agrotóxicos e oneram pesadamente os cofres públicos (mais de R$ 1 bilhão por ano, somente no estado de São Paulo).
A proposta envolve também uma mudança na orientação que chega ao produtor, através da qualificação dos agentes de assistência e extensão rural para que sejam capazes de fornecer o suporte técnico para redução de agrotóxicos, com a simultânea diversificação produtiva e crescente substituição por manejos e produtos de base agroecológica.
Há previsão de mecanismos para que as áreas de saúde e vigilância sanitária sejam equipadas e orientadas tecnicamente para atuação em casos que envolvam intoxicação (potencial ou efetiva), bem como para aprimorar o monitoramento de contaminação e agravos à saúde.
A PNaRA prevê o aprimoramento de mecanismos de informação e conscientização de consumidores, populações expostas e trabalhadores agrícolas quanto aos riscos dos agrotóxicos; a garantia do direito à informação sobre a presença de transgênicos nos alimentos, e participação social e transparência nos processos deliberativos da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
Também são objetos da PNaRA o registro de novos agrotóxicos; a reavaliação de agrotóxicos já registrados; a integração das ações de fiscalização; o monitoramento abrangente e transparente sobre a eficiência agronômica, efeitos adversos e resíduos; normas de pulverização e criação de zonas livres de agrotóxicos.
Esses e outros mecanismos previstos no PL 6670/2016 estão em debate público e é benéfico que a participação seja a mais ampla possível.
Neste momento, é possível evitar o abismo e tomar um rumo condizente com os desejos da sociedade brasileira e as necessidades do planeta, mas será necessária uma ampla mobilização cidadã que erga sua voz acima dos interesses comerciais das indústrias de agrotóxicos no Brasil, representadas por um número expressivo de parlamentares.
- Nilto Tatto é deputado federal (PT-SP), relator do PL 6670/2016 e secretário Nacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento do PT
EDIÇÃO 175 - 14/08/2018
https://teoriaedebate.org.br/2018/08/14/a-agricultura-na-encruzilhada-e-isso-e-positivo/
Del mismo autor
- Os impactos da pandemia sobre o meio ambiente 04/06/2020
- Bolsonaro e sua (anti)política de destruição ambiental e caos 12/09/2019
- A agenda socioambiental sob ameaça no governo Bolsonaro 21/01/2019
- A agricultura na encruzilhada, e isso é positivo 14/08/2018
- Devastação da Amazônia para preservar o golpe 14/09/2017
Clasificado en
Clasificado en:
Agroecología
- Isabelle Bourboulon 17/12/2020
- Sérgio Antônio Görgen 16/10/2020
- Javier Souza Casadinho 25/08/2020
- Pedro Stropasolas 05/06/2020
- Darío Aranda, et al 20/05/2020