O juiz-celebridade
- Opinión
Nas democracias modernas, se é que temos alguma coisa parecida, deveriam figurar entre as cláusulas pétreas, ademais da representação legitimada pelo voto, a impessoalidade na administração da coisa pública, a constituição de um sistema de poderes e garantias fundados na lei.
Parece banal, mas é necessário repetir: é a consciência do dever legal que garante legitimidade à ação dos agentes do Estado, nunca a invocação narcisista e autorreferida às próprias virtudes. Esse sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado moderno. É isto que o obriga a punir no exercício do monopólio da violência as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo sobre o Outro.
As trapalhadas do prende-solta, solta-prende, exibidas no TRF4 revelam um estágio avançado de deterioração do sistema judiciário brasileiro. Fascinados pelas cintilações midiáticas e capturados pela instantaneidade estúpida das redes sociais, os agentes do Estado descuidam da devoção à lei. (A lei, ora a lei.)
Não foram de outra estirpe as manifestações dos juízes, procuradores e policiais da Lava Jato no episódio grotesco da libertação de Lula. Quando os sentimentos e pertinências particularistas dos agentes do Estado se sobrepõem ao dever funcional, a degradação do poder público chega a seu derradeiro estágio.
Nada mais trágico para a sociedade brasileira que a perda de legitimidade e de reputação do Poder Judiciário. Não escapa aos olhos dos cidadãos mais atentos que a regra da separação e equilíbrio harmônico dos poderes vem sendo substituída pela autonomização dos estamentos burocráticos, que se apresentam uns diante dos outros como poderes autônomos e rivais preocupados em assegurar as próprias prerrogativas, usurpando a soberania do povo a quem devem a legitimidade de suas ações.
Esta lógica fatal contamina as instâncias decisivas do poder estatal. Não se trata apenas de que as distintas burocracias de Estado buscam abocanhar frações crescentes do orçamento público, sem prejuízo de palestras remuneradas, causando notórios desequilíbrios entre os mais fortes e os mais fracos.
Pior que o pior: comportam-se, diante do cidadão, como forças estranhas e hostis, usurpando os poderes que deveriam ser exercidos em nome do interesse público. As burocracias judiciárias afundam sua reputação no lodaçal do narcisismo bem remunerado.
Entregam-se com os olhos revirados ao brilhareco de 15 minutos de fama. As recentes exibições de narcisismo de autoridades na mídia-empresa e nas redes sociais são um exemplo impecável de como os deveres republicanos se dissolvem diante dos esgares incontroláveis da subserviência aos valores do mundo das celebridades, coadjuvada pelo corporativismo mais escancarado das associações de juízes. Os cidadãos ainda vão ficar à mercê de um juiz youtuber.
Para juntar ofensa à injúria, o noticiário que acompanhou as marchas e contramarchas do julgamento do recurso de Lula abrigou frequentes advertências dos comentaristas aos magistrados: deveriam estar atentos ao clamor das ruas. As arengas recheadas de certezas dos jornalistas encaminham o discurso midiático para o beco escuro da prestação jurisdicional do nacional-socialismo.
O Estado alemão foi apropriado pelo “movimento” racial e totalitário nascido nas entranhas da sociedade civil. Os tribunais passam a decidir como supremos censores e sentinelas do “saudável sentimento popular”. A primeira vítima do populismo judiciário do nazismo foi o princípio da legalidade e o esmaecimento das fronteiras entre o que é lícito e o que não é.
Os processos sociais e econômicos que assolam o mundo contemporâneo são cruéis em suas contradições: adulam o sucesso individual e, no mesmo movimento, exercem o controle dos cidadãos no propósito de aniquilar os resíduos de sua capacidade crítica. Na era do cyber-espaço, o domínio dos corações e das mentes é exercido com os métodos desenvolvidos nos laboratórios midiático-repetitivos encarregados de remover as sobras de razão que os indivíduos imaginam preservar.
Os bacanas da Justiça pretendem-se “livres, excelentes e diferentes”, mas são massa de manobra das engrenagens midiáticas, empenhadas em aprisionar as arrogâncias das Excelências nas masmorras da mesmice.
Adaptados, conformados, até mesmo confortados e felizes, são incapazes de compreender que sua individualidade é uma maçaroca sufocada nas aluviões de ignorâncias, vagalhões coletivos que promovem o aniquilamento pessoal. Na sociedade das diferenças que igualam, os diferentes não sentem o que pensam, nem pensam o que sentem.
A banalidade do mal transmuta-se no mal da banalidade.
- Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.
17/07/2018
https://www.cartacapital.com.br/revista/1012/o-juiz-celebridade
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