O irmão grande
O colapso da farsa democrática no país, já evidente durante o golpe, vai ganhando contornos cada vez mais gritantes com a tentativa de impedimento da candidatura do ex-presidente Lula.
- Opinión
No livro “1984”, George Orwell descreveu um pesadelo em que um governo totalitário odioso controla a vida dos cidadãos.
Vivemos hoje sob um controle muito maior do que Orwell conseguiu sonhar, mas ao contrário da severa rigidez temida por ele, nosso mundo se apresenta a nós com uma face benevolente e doce, desde que aceitemos o jugo do poder.
Virtualmente, todos no ocidente defendemos a democracia, mas atentemos, uma democracia orwelliana, como temos visto no Brasil, redefinida em uma novilíngua que permite que consideremos democrática a destituição da presidente eleita; ação insuflada por meios de comunicação de propriedade de uns poucos que, por tal intermédio, controlam o judiciário utilizando-o tanto destituir presidentes, como condenar, ou absolver, a seu bel-prazer qualquer um que queiram. O roteiro agora em voga vai sendo reencenado em outros países, sob a batuta dos mesmos patrocinadores.
Desse modo, se interessa aos donos dos meios de comunicação, por exemplo, excluir das eleições o candidato amplamente preferido pela população, simplesmente atiçam juízes embriagados de vaidade para, junto a eles, achincalhá-lo, preparando a cama para em seguida forjar uma usurpação “democrática” de seu direito de concorrer.
Inebriados com a fama, juízes podem extorquir acusações através de chantagens para, com elas, forjar acusações, ou podem “vazar” conversas telefônicas obtidas através de meios escusos; se o interesse é prender o candidato, o farão: qualquer meio é válido para impedir que seja empossado.
Como prêmio, alardeiam na TV as patifarias dos galhardos juízes contrastando-os com as tristes figuras de suas vítimas enlameadas. Antevejo desfiles carnavalescos nos quais blocos de juízes sambarão voluptuosamente na avenida, como demônios sôfregos a escarnecer de suas vítimas. Aos manipuladores velhacos, basta encantar as cândidas criaturas prometendo apresentá-las na TV para que façam qualquer papel. Encantados, os vaidosos comprometem-se a protagonizar os mais sórdidos espetáculos, sob a promessa de terem a própria imagem mostrada na TV. Quão inebriante pode ser a vaidade!
“Nossos” meios de comunicação têm transformado o país do carnaval na mais absurda tragicomédia conduzida por bufões sisudos fantasiados com capas negras. Sob sua batuta, vamos construindo a mais ridícula e farsante “democracia” carnavalesca de toda a história do mundo.
O colapso da farsa democrática no país, já evidente durante o golpe, vai ganhando contornos cada vez mais gritantes com a tentativa de impedimento da candidatura do ex-presidente Lula.
Podemos supor que fatos assim ocorram apenas em países dependentes, sujeitos a normas impostas por outros; um equívoco. Se a forma grotesca da burla, de fato, é característica bem nossa, o conteúdo é geral. A farsa democrática é encenada apenas enquanto conveniente às grandes empresas, controladoras dos meios de comunicação. Quando e onde lhes é conveniente defender governos impostos à força, as grandes empresas o fazem, mudando o discurso patrocinado por elas com a mais absoluta hipocrisia, com a mesma falta de compromisso com que trocariam o mote publicitário de uma marca de margarina.
Nas últimas décadas, tem sido conveniente às grandes empresas patrocinar o discurso democrático. A democracia patrocinada por elas, aliás, é exatamente isto: uma democracia patrocinada, paga para defender os direitos de seus patrocinadores. Candidatos a deputados, senadores, governadores, presidentes e demais políticos angariam grandes somas em dinheiro, com as quais financiam suas campanhas eleitorais. Vendem-se a si mesmos, desse modo, às grandes empresas financiadoras, através de “lobistas”, como são chamados os agentes intermediadores deste comércio. Tendo sido eleitos, põem seus votos à venda em leilão, conforme prometido durante a campanha eleitoral, quando já acertavam o patrocínio. Resulta disso o chamado governo democrático, sob o patrocínio do grande capital.
O desenvolvimento econômico alcançado pelo Brasil no início deste século, possibilitou a consolidação de grandes empresas nacionais, aliadas do governo popular estabelecido nesse período e financiado por elas, iniciando uma competição incipiente com o grande capital internacional que revidou, promovendo o golpe, a falcatrua que destituiu o governo democrático para desbaratar o empresariado nacional e abocanhar, sozinho, o patrimônio estatal e do povo brasileiro, restabelecendo a normalidade parva e pérfida vigente no século anterior.
Por aqui, satisfazemo-nos com a encenação do circo judiciário armado para promover da aura de legalidade necessária para simular a licitude da falcatrua, para compactuarmos com a farsa, fingindo, todos, estarmos sob um estado democrático. Regidos por “nossos” meios de comunicação, porta-vozes do grande capital internacional, seguimos fingindo imersos na mais impoluta democracia – impossível que os psiquiatras não tenham um nome para este tipo de demência.
A farsa
Bastou ao grande capital, criar o roteiro de um ritual legal de impedimento da presidente da república e forjar um processo de corrupção contra a única protagonista íntegra na história, para destituí-la, abocanhando, em seguida, a estupenda recompensa. O butim subsequente, a rapina descarada, constituiu pagamento assombrosamente vultoso por tão sutil velhacaria.
Em substituição à presidente eleita, destituída com base em falsa acusação, empossou-se o estrupício que lá se encontra, o traíra, que desagrada a todos exceto ao grande capital, que o utiliza como instrumento para a execução da rapina (suspeito que o velhote tenha estado sujeito a chantagem, deve ter caído na rede em poses inconfessáveis, ninguém seria capaz de fazer tanta bobagem sem um empurrãozinho).
Mas somos brasileiros e nunca desistimos, de modo que, apesar das indecorosas atribulações políticas, e do buraco econômico em que vamos nos atolando cada vez mais, seguimos, estimulados por “nossos” meios de comunicação, confiantes em nossa inviolável democracia, já imersos na expectativa vibrante de eleições vindouras, convictos, pia e indiscutivelmente, na lisura do pleito a ser promovido brevemente pelos pilantras. Ou talvez sejamos apenas uns amarelos.
O grande capital descobriu, há mais de um século, que ações de força perpetradas pelo estado geram ódios desgastantes, tendo inventado, também, os meios capazes de substituí-los por instrumentos de controle muito mais eficientes. Tendo fabricado um consenso relativo à magnanimidade de nosso sistema de dominação, ensinaram-nos não só a vestir sozinhos nossas próprias cangas, mas a louvar os maravilhosos modos de autoencilhamento.
Abramos alas, galhardamente, como robustos animais de tiro confiantes na pujante democracia que nos abarca e zelemos pelo grande irmão. Oh, admirável mundo novo!
(Convém lembrar que a farsa democrática tem a vantagem de manter a brandura. O fingimento perpassa, obrigatoriamente, todas as instâncias. Caso os farsantes prendessem, torturassem e assassinassem, obviamente, seriam desmascarados. Creio que o assassinato de Marielle tenha correspondido, originalmente, a um arroubo no sentido de retirar as máscaras. Ventos gelados têm soprado do norte).
Nota explicativa: George Orwell escreveu o romance “1984” onde descreve um pesadelo totalitário no qual um governo ditatorial controla a vida dos cidadãos através da imposição de vigilância implacável sobre todos os indivíduos. O sistema constrói uma “novilíngua”, redefinindo palavras, reconfigurando, assim, crenças e diretrizes; o ideal do sistema é controlar o pensamento de todos. “Grande irmão”, é como é chamado o sistema de dominação e vigilância: “ele está te vendo”, é seu mote.
06/07/2018
https://jornalggn.com.br/fora-pauta/o-irmao-grande-por-gustavo-gollo
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