Olhar o passado para orientar o futuro: diálogo com duas propostas (Parte 2)

30/11/2017
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Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini
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Na primeira parte deste artigo foram discutidas algumas concepções de desenvolvimento e os limites das políticas econômicas na transformação da sociedade sem rupturas com o regime de propriedade existente. Foram apresentadas várias teorias sobre o desenvolvimentismo e seus limites, assim como as escolhas de ferramentas e escolhas no que se refere às questões nacionais, democráticas e sociais que caracterizam cada conjuntura. O principal diálogo na primeira parte foi com a contribuição de Bresser-Pereira1.

 

Nesta segunda parte, a prática da política econômica é a escolha da análise. O diálogo principal aqui é com o livro Cinco Mil Dias: O Brasil na Era do Lulismo, editado pela Fundação Lauro Campos, do PSOL2. Diferentemente das propostas de Bresser-Pereira que enfatizam a importância da taxa de câmbio como instrumento chave da política econômica e a predominância da questão nacional sobre as outras questões relativas às diversas conjunturas, o livro organizado por Gilberto Maringoni destaca a questão social, ainda que não analise a correlação de forças que possibilitaria a ruptura do sistema.

 

A próxima seção desta segunda parte aborda a questão de qual fração de classe hegemonizou a política econômica dos governos Lula e Dilma buscando responder a indagação sobre o caráter liberal ou desenvolvimentista desses governos. A seção seguinte escolhe alguns momentos das diversas conjunturas desses dois governos, para avaliar se o caráter oscilante das políticas econômicas, associadas à expansão das políticas sociais, poderia levar a uma caracterização mais precisa dos grupos sociais dominantes nos dois mandatos.

 

Caráter dos governos Lula e Dilma

 

Uma questão chave para o entendimento da experiência histórica e para a construção de novas propostas para o futuro é a caracterização das forças sociais que hegemonizaram os governos do passado recente.

 

Um dos artigos do livro Cinco Mil Dias3, por exemplo, destaca que, apesar de diferentes, os quatro mandatos dirigidos pelo PT se caracterizam pela hegemonia da burguesia interna4, deslocando do centro do bloco de poder o capital internacional e as frações da burguesia nacional a ele associado, que eram hegemônicas no período FHC. Nesses governos, os trabalhadores foram fundamentais para essa redefinição de correlação de forças dentro do bloco de poder.

 

Os grandes empresários do agronegócio, da construção pesada, da construção, civil, da indústria naval, do capital bancário e do setor comercial formaram uma frente com os trabalhadores, sob um programa neodesenvolvimentista ou social desenvolvimentista, combinando políticas sociais de alguma distribuição de renda, com a retomada do crescimento, sem as reformas estruturais que modificariam a correlação de forças no país.

 

Essa ideia contrapõe-se à ideia de que os governos do PT foram predominantemente populares e as elites deram o golpe que os tirou do poder. Essa interpretação, segundo o autor, superestima a distribuição de renda conseguida, subestima os ganhos da elite e utiliza um conceito vago, com poucas características de classe que é o conceito de elite.

 

A transformação do PT de um partido popular para um partido líder da burguesia interna brasileira teria ocorrido nos anos 1990, fruto da conjuntura e da disposição dos dirigentes partidários, argumenta o autor.

 

A ofensiva neoliberal dos anos 1990 e a defensiva do movimento popular teria levado, segundo os autores, a estimular uma política rebaixada de conciliação e reduzindo os ímpetos para o enfrentamento entre as classes sociais. Propostas desenvolvimentistas passaram a assumir a pauta e a aliança de classes se consolidou. O ideário de transformação socialista foi retirado da pauta, com a entrada de políticas econômicas de curto prazo, combinadas com medidas de redução das desigualdades.

 

O próprio autor5, no entanto, reconhece que depois de uma década de refluxo do movimento popular com os programas neoliberais dos governos de FHC, a partir de 2003, os ganhos dos trabalhadores e movimentos populares foram significativos.

 

A continuidade do regime chamado de liberal durante os períodos Lula/Dilma é a questão a ser encarada. É claro que várias mudanças estruturais não foram realizadas como o enfrentamento da questão do rentismo, a realização de uma profunda reforma tributária para reduzir o caráter concentrador da arrecadação de impostos e contribuições, a adoção das mudanças necessárias na regulação das mídias, a democratização e controle social do Judiciário. Isso é fato.

 

No entanto, a ausência dessas reformas leva a caracterizar os governos Lula e Dilma como liberais, é uma outra questão. Os governos Lula e Dilma podem ser caracterizados por várias oscilações de política econômica, ora mais liberais, ora mais desenvolvimentistas, sem um programa global que objetivasse a quebra das relações de poder da sociedade, no sentido de quebra estrutural das relações de propriedade e predomínio do capital privado na acumulação. Muitas vezes as mudanças de políticas eram reativas a mudanças de conjuntura externa, mais do que estruturantes de um projeto nacional com distribuição de renda. Todas as vezes em que houve mudanças de orientação, a correlação de forças entre as classes sociais foi determinante para as escolhas. As poucas mudanças na questão democrática não permitiram avançar na pauta de redução de desigualdades, com crescimento.

 

Longe de um modelo liberal de governo, os governos de Lula e Dilma optaram por viabilizar programas e políticas que buscassem enfrentar a dimensão social das conjunturas como principal, numa aliança com o capital financeiro e produtivo, que só teria viabilidade de curto prazo, mas que foi erroneamente tomada como permanente.

 

Vários mecanismos de intervenção de Estado, possíveis em um momento de crescimento e sem as limitações de divisas internacionais, foram adotados, deixando de lado as reformas estruturais que modificassem a correlação de forças na gestão do Estado e apropriação das rendas e riquezas do país. Diferentemente de um modelo liberal, o papel do Estado era central nessas políticas.

 

Lula destoou da agenda liberal também no papel dos bancos públicos, fortalecendo o BNDES, a Caixa Econômica Federal (CEF) e o Banco do Brasil (BB). O BNDES deixou de apoiar os programas de privatização para financiar investimentos produtivos em setores específicos. Se isso resultou em apropriação inadequada de recursos pelos “campeões nacionais”, é outra questão a ser resolvida pela Polícia e Justiça. BB e CEF expandiram o crédito para a agricultura familiar, programas habitacionais e de saneamento, ao mesmo tempo que financiaram a expansão do agribusiness, a internacionalização dos empreiteiros e a tentativa do fortalecimento de alguns grupos do grande capital no Brasil. O crédito direto ao consumidor também aumentou6.

 

No que se refere ao petróleo e gás, os governos Lula e Dilma também fizeram mudanças profundas do papel do Estado, fortalecendo o sistema Petrobras como centro de uma política industrial que implicava em uma aliança com a engenharia pesada brasileira para a consolidação de uma cadeia de fornecedores instalada no Brasil. Novamente, se os empreiteiros, mancomunados com alguns réus confessos da empresa, se locupletaram desse enorme aumento do investimento público eles devem pagar nas barras dos tribunais, com todos os direitos a um julgamento justo e à presunção da inocência, como assegurado pela Constituição brasileira. Os crimes destes não podem condenar a política de conteúdo nacional, o controle nacional sobre as riquezas do pré-sal, nem a importância do abastecimento nacional de derivados de petróleo, principalmente depois das enormes descobertas do pré-sal7.

 

As políticas para o mercado de trabalho também não podem ser classificadas como liberais. Elevação real do salário mínimo, fortalecimentos dos sindicatos, ampliação dos programas de transferência direta de renda como os programas de Benefício de Prestação Continuada, o Bolsa Família8 e as aposentadorias rurais e Loas, com a universalidade buscada, também não podem ser considerados na agenda liberal, que privilegia os programas focados e não universais de transferência de renda.

 

Ao mesmo tempo em que as condições do mercado de trabalho melhoravam com redução do desemprego e aumento da formalização dos postos de trabalho, essas políticas levaram a um aumento do consumo das famílias que, com uma ligeira defasagem, veio a impactar o crescimento da Formação Bruta de Capital Fixo, principalmente a partir de 2006-2007. De 2004 a 2010, com leve queda em 2008-2009, os investimentos cresceram 74,3%, enquanto o consumo cresceu 48,2%9, desmentindo a versão que tenta atribuir aos governos Lula um processo de crescimento puxado pelo consumo.

 

Os dados da Tabela 1 mostram que o período 2007-2010, no segundo mandato do presidente Lula os investimentos tiveram a maior taxa de crescimento médio anual, alcançando 26,04% nos investimentos do governo central e 23,52% nas estatais federais, destoando de todas os outros períodos nos 20 anos de 1995 a 2015.

 

Tabela 1- Taxas de Crescimento Médio Anuais dos Investimentos Públicos: Governo Central e Estatais Federais

 

Fonte: Orair (2016) citado por Sicsú (2017, p.28)

 

No que se refere à dimensão estritamente democrática das conjunturas, mecanismos de participação direta da população na gestão do Estado e implantação de mecanismos de viabilização dos direitos conquistados na Constituição de 1988 foram adotados, mesmo que sua eficácia e eficiência possam ser questionados. Centenas de conselhos, conferências e mecanismos de escuta foram implementados.

 

A derrota principal ocorre na democracia representativa, pela qual os parlamentares mais conservadores cresceram sua representação no Congresso Nacional, pragmáticos, apoiando os governos Dilma e Lula, quando desejado, numa frágil e amorfa base de sustentação ao governo, que rapidamente se esvaiu e passou a apoiar o governo golpista, assim que o impeachment se efetiva.

 

Mesmo que caracterizado como um oportunismo conjuntural, a utilização dos ganhos provenientes do boom das commodities para financiar programas sociais foi bastante distinto da apropriação pelos exportadores desses ganhos, que caracterizava os fluxos de renda em outros momentos históricos de melhora dos termos de troca dos produtos exportados pelos latino-americanos. Uma das consequências desse processo foi a re-primeirização da pauta de exportações brasileiras, agora muito mais diversificada em termos de mercados de destino e com forte ênfase em produtos primários com maior grau de incorporação tecnológica, como o petróleo, o ferro e a soja. Paralelamente a essa concentração decorrente da expansão das exportações de produtos primários, o Estado adotou políticas de redistribuir para os segmentos sociais mais necessitados parte da renda apropriada.

 

No livro Cinco Mil Dias há um capítulo emblemático sobre essas questões, tratadas como uma Utopia Tropical10, lembrando que em 1516 Thomas More escreveu sobre a Utopia, um lugar ideal, harmonioso onde todos eram felizes e a igualdade imperava. A etimologia do grego "óu" (não") e "tópos" ("lugar") dá ao termo a tradução literal de “lugar nenhum” e Thomas More, mesmo descrevendo em detalhes seu mundo, não dá indicações de onde está situado, de mapas para encontrá-lo ou de como chegar a este paraíso. Segundo o autor, foi a Utopia que Lula prometeu ao povo brasileiro.

 

Mas, Maringoni, o autor do capítulo, reconhece que, apesar de irrealizável, de ser um lugar nenhum, a Utopia de Lula aconteceu. Prometendo a redenção do crescimento com distribuição de renda, não apresenta os mapas de como isso seria obtido com respeito aos contratos e superávits primários elevados. Como fazer a omelete, sem quebrar os ovos? Como chegar à Utopia, sem saber o caminho?

 

Ainda que por um período, os de cima ganharam, mas os de baixo também ganharam e melhoraram de vida. As circunstâncias mundiais, especialmente a expansão da China e a grande demanda das commodities que permitiu o aumento de seus preços e o temporário relaxamento das restrições da Balança de Pagamentos possibilitaram o milagre.

 

A conjuntura externa e as políticas internas de aumento da renda do trabalho e transferências aos mais pobres estimularam o consumo, ao mesmo tempo que os investimentos públicos aumentavam, levando a um crescimento econômico que possibilitou a simultânea obtenção de altos superávits primários e aumento dos gastos públicos. As elevadas taxas de juros estimularam a entrada de capitais internacionais, apreciando o real em relação ao dólar, pressionando para baixo a inflação, mesmo que às custas de reduzir a competitividade das exportações industriais do país. Esse parece ter sido o mapa da Utopia.

 

A troca da dívida externa pública pela dívida interna reduziu a limitação cambial, abrindo espaço para o pagamento da dívida ao FMI, dando mais liberdade para a política externa independente, busca de soluções heterodoxas para a politica setorial e universalização de políticas sociais.

 

É claro que o aumento da dívida pública em reais como proporção do PIB aumentou a rigidez da política de juros e penalizou fortemente o Orçamento Público, diminuindo o espaço para aumento do custeio e investimento, espremidos pelas metas crescentes de superavit primário. Sem enfrentar a questão tributária e as transferências de renda para os detentores de dívida pública, a expansão dos programas sociais, simultaneamente a aceleração do crescimento com expansão dos investimentos públicos encontraria limitações no médio prazo, que vieram a se explicitar a partir de 2012.

 

A dívida pública é importante como mecanismo de controle da oferta monetária, mas também é um importante financiador do desenvolvimento nacional. Apesar do acúmulo sucessivo de superávits primários, ela vem crescendo mais do que o PIB, principalmente porque as taxas de juros são muito elevadas, provocando uma intensa transferência de renda dos fundos públicos para os poucos detentores dos títulos da dívida pública. Além disso, ao se colocar como piso da estrutura de taxas de juros, tem um grande impacto sobre o custo do crédito das pessoas físicas e jurídicas, dificultando o investimento e também o consumo.

 

Para Bresser-Pereira, nos períodos de Lula e Dilma não foram tomadas medidas sustentáveis para garantir o crescimento, com Lula aproveitando-se da conjuntura internacional para viabilizar algumas políticas distributivas, sem enfrentar a questão cambial, nem o rentismo derivado das elevadas taxas de juros.

 

Lula deixou o real apreciar-se, a partir de 2004, saindo de R$ 3,18 para R$ 1,57 no final do primeiro semestre de 2008, como se pode ver na figura 1. Há uma pequena depreciação no auge da crise de 2008, mas a partir de 2009 até 2011 a taxa de câmbio se aprecia de novo, atingindo R$1,55 em julho de 2011. A partir daí, no governo Dilma, há uma depreciação contínua do real, que atinge R$2,74 em dezembro de 2014, explodindo para R$4,19 no início do segundo semestre de 2015. Depois do impeachment, em agosto de 2016, a taxa de câmbio flutua em torno de R$3,20 por dólar americano.

 

Figura 1 - Taxa de cambio Real/Dólar americano.

 

Fonte: Taxa de câmbio - R$ / US$ - comercial - compra - média - R$ - Banco Central do Brasil, Sistema Gerenciador de Séries Temporais (Bacen Outras/SGS) - GM366_ERC366 - http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx

 

Lula conteve as despesas públicas, só as fazendo crescer depois da crise de 2008 numa política fiscal anticíclica que, prolongada a partir de 2011, já com a presidenta Dilma, deslocou-se para a desoneração tributária e para as tentativas de estimular o investimento privado a substituir o investimento público.

 

Os governos liberais, segundo Bresser-Pereira, predominantes depois de 1990, além da austeridade fiscal, são intrinsecamente favoráveis à apreciação do câmbio para influenciar a produtividade, utilizando as poupanças internacionais para financiar os eventuais déficits da balança de comércio. Os regimes liberais, do ponto de vista econômico, se caracterizam por políticas de redução do tamanho do Estado, privatizações aceleradas, desregulamentação dos mercados, promoção da abertura do país ao capital internacional e liberação do câmbio.

 

Podem até ser bem-sucedidos nos planos de estabilização de curto prazo, mas não conseguem estimular o desenvolvimento econômico por impedirem a competitividade da indústria nacional via apreciação cambial. A superapreciação do câmbio impõe as empresas nacionais a busca de ganhos de competitividade, muito além daquilo que seria resultante das mudanças de produtividade de outros produtores em outros países.

 

Dilma tentou enfrentar as limitações da política de conciliação com o capital financeiro, viável no momento de expansão internacional, baixando as taxas de juros, numa fase de estagnação mundial, sem uma política de ajuste fiscal que possibilitasse a redução do crescimento da dívida. A Selic real chegou a 1,33%, como se pode ver na Figura 2, em dezembro de 2012, provocando grande reação do capital financeiro, mas sem que o investimento privado produtivo ocupasse o lugar do investimento público reduzido.

 

Figura 2 - Evolução da Taxa de Juros Real 2003-2017. SELIC- Inflação.

 

Fonte: Relatório de Política Monetária e Fiscal. NEC/FCE UFBa.

 

A aliança do capital financeiro e produtivo com o governo com ênfase em políticas sociais se manteve enquanto as exportações viabilizavam o fluxo de entrada de capitais internacionais, permitindo a expansão dos gastos públicos, tanto de investimento como de custeio, estimulando o consumo e investimentos privados. Quando esse mecanismo de crescimento para, ou perde força, a aliança de classes se desfaz. O erro foi deixar consolidar uma série de mecanismos institucionais que impediam a mudança de rumo desse regime de acumulação.

 

Desenvolvimento é um processo de transformação estrutural da sociedade e não pode ser confundido pelas políticas macroeconômicas que visam ajustar a dinâmica econômica às flutuações de curto prazo. As políticas econômicas podem ajudar ou retardar processos que levam a transformações estruturais da economia, se caracterizando, portanto, como condições necessárias, mas não suficientes para o desenvolvimento. No entanto, as transformações de longo prazo dependem da correlação de forças entre as diversas frações das classes sociais, especialmente na condução de curto de prazo das políticas dos estados.

 

Política econômica oscilante

 

A política econômica nos quatro mandatos de Lula e Dilma foi muito oscilante. Aproveitando livremente da sugestão de Paulani (2017, p. 99.)11, elas podem ser agrupadas em cinco períodos com o último referindo-se ao período pós-impeachment:

 

1. Fidelidade a Carta aos Brasileiros: 2003-2006

2. Desenvolvimentismo dos anos PAC: 2006-2010

3. Reação heterodoxa com pitadas de ortodoxia: 2011-2013

4. Retorno da ortodoxia: 2014-2015

5. A política econômica pós-impeachment.

 

Para analisar cada um desses períodos é importante descrever a situação econômica prévia a chegada ao governo em 2003. A partir de 1999 a política econômica negociada com o FMI era de superávits crescentes e taxas de juros altas para atrair capitais especulativos e segurar as variações de taxas de câmbio. O tamanho do superávit viabilizava os custos fiscais das taxas de juros altas e a entrada de capitais estabilizava a taxa de câmbio. Nesse período as ideias-força da política econômica eram a ampliação da desregulamentação dos mercados, promoção da abertura comercial e financeira ao capital internacional e principalmente a redução do tamanho do Estado, com políticas para a contração dos gastos públicos, diminuição da universalidade e ampliação das políticas sociais focadas, privatizações generalizadas e diminuição do papel do planejamento e de políticas setoriais e regionais.

 

Como diz Paulani (2017, p. 93), a partir de 1995, esse programa foi agressivamente implantado, apesar das reações populares. A adoção de política de juros elevados, ao mesmo tempo em que a abertura comercial e, especialmente, financeira se expandia, acompanhada de medidas fiscais para reduzir a tributação sobre os ganhos financeiros, avançar na reforma previdenciária e garantir os contratos internacionais e flexibilizar as leis trabalhistas eram características dominantes das políticas econômicas prévias a 2002.

 

1. Fidelidade à Carta aos Brasileiros: 2003-2006

 

A dinâmica das exportações é fundamental para se entender este período. A expansão do mercado de commodities, principalmente como resultado do aumento da demanda da China e da Índia. O comércio mundial sai de uma situação de estagnação em 2003, para crescer perto de 15% ao ano nos cinco anos posteriores, ao mesmo tempo em que as exportações brasileiras para os EUA e União Europeia já tinham dobrado em 2003, relativamente a 2002 e decuplicaram em relação a 200112. De outro lado, também como resultado da política externa adotada, o comércio com outros países da América do Sul e África aumentou com taxas inéditas na história recente do Brasil. A dinâmica interna da China e da Índia foi importante, mas a diversificação do destino das exportações não pode ser desprezada para entender a superação das restrições externas históricas do país.

 

Os primeiros anos do governo Lula tiveram um forte ajuste fiscal, depois do ataque especulativo contra o real que ocorreu ao final de 2002 e de um empréstimo-ponte com o FMI, tomado nos últimos meses do governo de Fernando Henrique Cardoso. Na primeira reunião do Copom de 2003, a taxa Selic foi aumentada em meio por cento, atingindo 25,5%, enquanto o Ministério da Fazenda aumentava a meta de superávit primário de 3,75% do PIB em 2002 para 4,25% em 200313.

 

Várias medidas de ajuste fiscal de corte ortodoxo foram tomadas no início do governo Lula, principalmente no que se refere as despesas fiscais não obrigatórias, e uma proposta de reforma da previdência social do setor privado (EC 41/2003 e 47/2005) foi apresentada ao Congresso. Por meio de contingenciamentos foram controlados os aumentos dos servidores públicos e as receitas tributárias cresceram14.

 

O crescimento das receitas tributárias nesse período pode ser explicado pela melhoria da formalização dos postos de trabalho e aumento do nível de renda das famílias, o que possibilitou a elevação dos impostos sobre a folha de pagamento e sobre a renda pessoal, assim como a elevação do valor dos ativos imobiliários e financeiros, que provocou a expansão das rendas não-trabalho, que apesar de terem uma baixa incidência tributária, elevam o fluxo financeiro da economia, estimulando o consumo e o investimento, gerando novos impostos indiretos15.

 

A Carta aos Brasileiros, divulgada antes das eleições, era uma clara sinalização de que o governo Lula respeitaria os contratos e dessa forma não adotaria políticas de ruptura com o sistema econômico vigente, apesar de reafirmar seus compromissos com as políticas de melhoria da distribuição de renda e redução das desigualdades.

 

Paulani (2017, p. 95) destaca que não se pode encontrar na Carta aos Brasileiros um projeto nacional claro e definido, sendo muito mais uma reiteração de princípios gerais a favor do crescimento com justiça social, sem vincular esses objetivos a mecanismos institucionais e estruturais que possibilitem definir como alcançar esses objetivos. Ainda que fale nos investimentos públicos e políticas industriais, reafirma o respeito aos contratos e a fidelidade às políticas que consolidavam os ganhos do capital financeiro.

 

Essa imprecisão programática da Carta aos Brasileiros talvez possa ser a origem das oscilações das orientações de política econômica, que foram muito mais reativas às modificações da conjuntura do que a construção de um caminho tático para atingir objetivos estratégicos.

 

Nesse sentido reforça-se a hipótese de que os governos Lula e Dilma não seriam estritamente desenvolvimentistas por não disporem de um projeto nacional estruturado, respondendo muito mais a situações conjunturais com vista a reduzir a desigualdade, sem quebrar as estruturas dominantes da dominação capitalista16.

 

Por exemplo, no primeiro governo Lula, as centrais sindicais conseguiram que o governo adotasse uma política de valorização do salário mínimo acima da inflação17e ampliação do crédito consignado para financiamento das famílias de trabalhadores18. Isso teve um gigantesco impacto sobre o consumo, um dos importantes fatores para a saída do período de baixo crescimento dos períodos anteriores a 2003.

 

Desde o início do primeiro governo Lula a busca de expansão do consumo interno de massas era um dos pilares da política econômica. Esse processo exigiria uma politica de redistribuição de renda, com aumento do salário mínimo, fortalecimento e universalização dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, aposentadorias rurais e outros mecanismos do orçamento de Seguridade Social. Essa política de inclusão também envolvia uma abertura na base da distribuição do crédito as famílias com o crédito consignado e ampliação de programas de microcrédito e financiamento as compras. Programas sociais como Luz para Todos, Minha Casa Minha Vida e outros também tiveram um impacto sobre o nível real da renda familiar, com a redução do custo de reprodução da força de trabalho.

 

O nível de consumo da base de distribuição de renda aumentou e a posse de bens de consumo durável e níveis absolutos de consumo levaram a grandes transformações tanto no tipo de bens demandados, como outros impactos, inclusive nos meios de cultura de massa, que se moldaram crescentemente a esses consumidores emergentes.

 

No entanto, não se pode caracterizar esse período como essencialmente uma fase cujo crescimento foi impulsionado pelo consumo. Ao contrário, essa fase se segue por uma enorme aceleração dos investimentos principalmente a partir de dos anos 2006 e 2007.

 

É claro que a politização dessas políticas de estímulo ao consumo e de acesso a bens públicos não ocorreu, levando a uma consciência de que esses benefícios não eram resultado de uma deliberada opção política do governo, mas resultavam de forças decorrentes do esforço individual e muitas vezes até refletiam pretensas intervenções divinas. Quando a crise se instala, especialmente depois do golpe de 2016, esses beneficiários das políticas de aumento do consumo não têm a menor fidelidade com os governos que viabilizavam a expansão de seu consumo.

 

O ajuste tático do período 2003-2005 com a confirmação do tripé macroeconômico, decorrente da Carta ao Povo Brasileiro, que caracterizou a aliança com o capital financeiro, foi seguido da consolidação de uma institucionalidade – Bacen com objetivo único de combate anual à inflação, meta de superávit primário crescente e manutenção dos mecanismos de gestão e rolagem da dívida, por exemplo –, que procurou impedir o rompimento com esta ortodoxia liberal, ainda que algumas tentativas tenham sido feitas. A correlação de forças, no entanto, se impôs e as mudanças foram pontuais.

 

Nesse período, a ortodoxia predomina. Inicialmente era visto como uma movimentação tática, mas houve uma consolidação de mecanismos institucionais que dificultavam qualquer alteração de rota em relação ao tripé macroeconômico. O mandato exclusivo do Bacen no combate à inflação coloca refém a política de crescimento e os investimentos públicos, toda vez que o superávit primário encolher. A inflação, mesmo que provocada por fatores exógenos, é a ditadora do tripé.

 

O predomínio da pauta estabilizadora de curto prazo e o desestímulo ao investimento decorrente da armadilha do tripé macroeconômico – que subordinando o combate à inflação a um Banco Central comprometido exclusivamente com a estabilidade monetária, com taxas de câmbio flutuantes que superapreciam, no longo prazo, a taxa de câmbio se as taxas de juros forem suficientemente atrativas para a entrada especulativa de capitais internacionais – inibem a expansão dos gastos sociais e os investimentos públicos demandados por uma agenda desenvolvimentista.

 

Nos primeiros anos do governo Lula (2003-2005) houve combinação de rigidez da política monetária buscando atingir metas inflacionárias mais baixas, com uma política flexível do câmbio, que visava obter um ajuste “automático” da balança de pagamentos e superávit primário para reduzir a dívida pública – o tripé ortodoxo.

 

A busca de metas cada vez menores da taxa de inflação foi flexibilizada, a partir de 2006, com a estabilização da meta sem alteração de seu teto, o que possibilitou uma progressiva redução da taxa de juros. Também no que se refere a taxa de câmbio, as intervenções do Bacen na busca de manutenção da taxa, a partir de 2006 sinalizaram mudanças na rigidez do tripé.

 

Com a flexibilização do tripé, a partir de 2006, houve a combinação de aumento dos salários reais, com a difusão dos efeitos do aumento do salário mínimo sobre a distribuição salarial, simultaneamente a apreciação do câmbio real, com taxas de juros altas. A política fiscal foi expansionista19, o que diminuiu a eficácia da política monetária no combate a inflação, reforçando os juros elevados, ampliando o spreadcom os juros internacionais e atraindo mais capitais internacionais, que forçavam a apreciação do câmbio, desindustrializando ainda mais a economia.

 

A questão central é a possibilidade de romper estruturalmente, em 2002, as regras do mercado. A correlação de forças se impunha, principalmente porque o processo de chegada ao governo era absolutamente institucional, através da disputa eleitoral.

 

Ainda do ponto de vista de reformas, a própria literatura internacional sugere algumas medidas de flexibilização do tripé, especialmente a ditadura da meta inflacionária anual, tanto no que se refere aos seus objetivos (inflação, estabilidade financeira e emprego), como em relação aos seus instrumentos (taxa de juros, comunicação, gerenciamento de risco etc.), assim como a integração com outras políticas como o controle dos fluxos de capitais e políticas financeiras20.

 

Uma das maneiras da flexibilização é a ampliação do horizonte temporal da meta de inflação, deixando estsa visão de curto prazo, com metas anuais para as variações de preço, como único objetivo da política monetária. As metas deveriam ser em horizontes temporais mais elásticos para absorver os choques de oferta e deveriam ser incluídos objetivos de crescimento e emprego na gestão da autoridade monetária21. Essas medidas não são revolucionárias, mas corresponderiam a reformas do sistema e não foram implementadas.

 

Em 2003 começava o boom das commodities. As exportações brasileiras explodem e oa balanço comercial passa a ser superavitária. Apesar das restrições de 2003, a economia começa a crescer a partir de 2004 e Lula promete, em finais de 2005, um “espetáculo de crescimento”, que efetivamente vai ocorrer nos anos seguintes.

 

2. Desenvolvimentismo dos anos PAC: 2006-2010

 

A crise do “mensalão” de 2006 atingiu fortemente o PT que se desarma ideologicamente e perde importantes quadros, além de ser obrigado a fazer alianças mais à direita para garantir a estabilidade do governo.

 

No entanto, do ponto de vista econômico, o aproveitamento dos excedentes externos, com preço das mercadorias exportadas elevado e grande liquidez no mercado internacional, permitiu a expansão dos gastos públicos, tanto de custeio como de investimentos, impulsionando a economia, possibilitando a manutenção dos elevados superávits primários exigidos pelo capital financeiro.

 

Em 2006, Guido Mantega22 substitui Palocci no Ministério da Fazenda e a política fiscal torna-se um pouco mais expansionista, aproveitando-se dos espaços criados pelo excelente desempenho das exportações.

 

A partir de 2009 nova flexibilização do tripé ocorre, com a retirada de alguns investimentos públicos (principalmente Petrobras e PAC) da meta de superávit primário23. Duas metas orientavam a política fiscal: redução da dívida e aumento dos investimentos.

 

3. Reação heterodoxa com pitadas de ortodoxia: 2011-2013

 

O governo Dilma tentou mudar a política de juros forçando os bancos públicos a substituírem os bancos privados na oferta de crédito, principalmente como instrumento para reduzir o spread bancário, na esperança de que o capital produtivo privado poderia vir a substituir o declinante investimento público, especialmente no sistema Petrobras e Eletrobras, que tiveram seus preços e tarifas controlados em uma política de curto prazo heterodoxa de controle da inflação. Não deu certo. O capital privado não se movimentou e os capitalistas do bloco de poder se descolaram do governo e passaram a apoiar a oposição da época, hoje governista, depois do golpe do impeachment.

 

Dilma tenta enfrentar o rentismo e é derrotada. Tenta questionar o poder do capital financeiro com sua política de redução da Selic e ao mesmo tempo estimulando a depreciação do real, para estimular as exportações. De forma especial no governo Dilma diversas agências do governo atuavam com diagnósticos distintos, formulando e executando políticas algumas vezes conflitantes, com o Bacen pressionando para o retorno a ortodoxia do tripé macroeconômico, enquanto o Ministério da Fazenda e BNDES buscando avançar em uma pauta mais heterodoxa24.

 

A chamada Nova Matriz Econômica (NME) foi precedida de um ajuste fiscal forte em 2010-2011, que resultou em perda de dinamismo da economia em 2012. O efeito contra cíclico da NME foi limitado porque o espaço criado com a redução dos juros foi ocupado principalmente por desonerações tributárias, na esperança de que o capital privado revertesse o vício rentista e investisse nos projetos produtivos e estruturantes da economia. Por De outro lado, as taxas de câmbio apreciadas tinham aumentado bastante as importações, mesmo que de bens de capital, e diminuído a competitividade dos setores exportadores fora do boom das commodities.

 

A grande virada do governo Dilma ocorre no segundo semestre de 2011 com o aumento do ativismo da política econômica multiplicando-se as decisões das autoridades econômicas, inclusive com quebra de tradições do Copom e Bacen, que alteram trajetória de juros entre duas reuniões do Copom25. Como citado na Ata do Copom de agosto de 2011, a mudança da posição das autoridades monetárias iniciando um processo de redução da Selic resultou de uma reavaliação da conjuntura internacional em termos de seu impacto sobre a atividade econômica interna, reduzindo a demanda doméstica, que por si só impactaria sobre o nível de preços da economia:

 

Reavaliando o cenário internacional, o Copom considera que houve substancial deterioração, consubstanciada, por exemplo, em reduções generalizadas e de grande magnitude nas projeções de crescimento para os principais blocos econômicos(...) O Comitê entende que a complexidade que cerca o ambiente internacional contribuirá para intensificar e acelerar o processo em curso de moderação da atividade doméstica, que já se manifesta, por exemplo, no recuo das projeções para o crescimento da economia brasileira (...) Nesse contexto, o Copom entende que, ao tempestivamente mitigar os efeitos vindos de um ambiente global mais restritivo, um ajuste moderado no nível da taxa básica é consistente com o cenário de convergência da inflação para a meta em 201226.

 

Todos os fatores de expansão da economia até 2010, mudam de trajetória a partir daí. A grande redução do crescimento do PIB depois de 2011, no primeiro governo da presidenta Dilma, tem a ver com a continuidade da crise internacional, de forma mais longa do que esperado, mas também refletiu as mudanças da política econômica interna.

 

As mudanças tentadas para a Nova Matriz Macroeconômica, a partir de 2011, como a elevação das taxas de juros, depois das quedas até 2010, de administração do câmbio para não onerar demasiadamente as exportações e a indústria, e a ampliação dos mecanismos de política monetária como a gestão dos depósitos compulsórios e o capital próprio dos bancos e a “flexibilização” da meta inflacionaria anual, com uma certa extensão do horizonte de convergência para a meta e a aceitação do teto da meta não conseguem efetivar a substituição do investimento público pelo privado.

 

Uma política fiscal incentivadora ao consumo e o investimento privado27se implanta em 2011-2012, com desonerações fiscais crescentes e manutenção dos aumentos de salário mínimo. O consumo respondeu, mas o investimento do setor privado se contraiu.

 

De outro lado, em direção contraria em termos de estímulo à demanda agregada, a política de elevação das taxas de juros veio acompanhada de medidas para controlar a expansão do crédito ao consumidor, como o aumento do depósito compulsório dos bancos, o aumento do seu capital mínimo, o aumento do IOF e do percentual mínimo de pagamento das faturas dos cartões de crédito28.

 

Com a ameaça do FED americano de abandonar a política de Quantitative Easing, o Bacen brasileiro começa a elevar as taxas de juros, reduzir os controles de fluxos de capitais e deixar a taxa de câmbio se depreciar a partir de 2013, ao mesmo tempo em que nas ruas as demandas por mais benefícios sociais se manifestavam. A redução dos investimentos da Petrobras completa o conjunto de impactos recessivos em 2013, juntamente com os efeitos da Operação Lava Jato sobre a engenharia nacional.

 

Em agosto de 2013, o governo lança um programa de redução dos riscos cambiais para os adquirentes de recursos denominados em dólar, com um programa crescente de vendas de dólar no mercado futuro, fixando a taxa de câmbio para o comprador da moeda estrangeira, assumindo no Bacen o risco de variação cambial no futuro.

 

O governo Dilma passa a adotar vários mecanismos de controle direto dos preços como a redução de impostos federais sobre produtos da cesta básica, incluindo as tarifas de transporte, redução do IPI nos automóveis, linha branca e móveis, desoneração da folha de pagamento de setores intensivos em mão de obra e redução dos encargos setoriais da eletricidade.

 

Os preços controlados (principalmente energia elétrica e combustíveis) são abruptamente liberados em 2014 e a inflação cresce, também impactada pela depreciação cambial. Comparadas com as políticas para enfrentar a crise de 2007/2008, quando os investimentos públicos, particularmente da Petrobras e da Eletrobras, cresceram e os mecanismos de estímulos à demanda se consolidaram, as políticas contra-cíclicas de 2012-2014 se basearam em desonerações tributárias e estímulos ao investimento privado com poucos efeitos sobre o PIB e sobre o emprego, porque os empreendedores privados não aumentam seus investimentos, se as perspectivas de crescimento se reduzem. São as expectativas de ganhos futuros, mais do que a redução dos custos do investimento de hoje, que estimulam a ação dos empresários.

 

4. Retorno da ortodoxia: 2014-2015

 

O ano 2003 foi muito diferente do ano de 2015. Em 2003, o comércio internacional iniciava uma fase de expansão, puxada pela demanda chinesa e expansão americana, com preço das commodities começando um longo ciclo de crescimento. A tradicional deterioração dos termos de intercâmbio se modificava, ainda que temporariamente. A América Latina, o mercado Europeu e a Ásia, com destaque para China e Índia, se destacam como destinos das exportações.

 

Neste contexto de 2003, a economia cresce, mesmo com ajuste fiscal e altas taxas de juros. Diferente é a situação de 2015. A busca da aliança com o capital financeiro e produtivo, que foi possível em 2003, não era mais possível, pois as circunstâncias internacionais e políticas domésticas eram completamente distintas. A política de ajuste fiscal adotada em 2015 foi um suicídio. Na verdade, um austericídio!

 

Combinado com a subestimação dos efeitos da Operação Lava Jato e a desconsideração efetiva dos interesses golpistas do Aécio Neves, candidato derrotado em 2014, a política econômica adotada posteriormente à vitória eleitoral foi um desastre. O ajuste fiscal como único objetivo da política econômica em um momento de retração da economia nacional e internacional não teria condições de reverter expectativas e recompor a aliança de classes do período do início do primeiro governo Lula. O impeachment se consolida, a economia desaba e as forças dominantes se recompõem em torno de um programa do PMDB, “Uma Ponte para o Futuro”, que poderia ser muito mais realista se se chamasse um “Fosso para o Passado”. Todos os princípios efetivamente liberais do início dos anos 1990 estavam presentes, mas o Brasil e o mundo já eram outros. Até por contraste, essa atual política econômica mostra que as políticas dos períodos Lula e Dilma não eram tão liberais, como passa a impressão da posição do Bresser.

 

A queda dos investimentos públicos vem aumentando desde 2013, especialmente com a contração dos investimentos da Petrobras, que representavam 85% dos investimentos públicos, mas também refletiu a redução das expectativas posteriores às manifestações de 2013 e dúvidas sobre o resultado eleitoral de 2014, principalmente no que se refere ao investimento privado. De outro lado, a retomada de crescimento das taxas de juros aumentou a atratividade dos investimentos financeiros, tornando relativamente mais raros os investimentos produtivos.

 

Além da queda dos investimentos, o governo adotou em 2014 várias medidas de austeridade com um choque fiscal, um choque dos preços administrados, um choque cambial e um choque monetário provocando um verdadeiro “austericídio” na economia que só poderia se contrair drasticamente.

 

Os dados da figura 3 mostram que, a partir do início de 2014, há uma brusca redução dos investimentos, que se aceleram em 2015, provocando a queda moderada do PIB, ainda sustentado pelo crescimento positivo do consumo das famílias. A partir de 2015 tanto a Formação Bruta de Capital Fixo como o consumo das famílias apresentam taxas de crescimento negativas aprofundando a recessão do PIB29.

 

Figura 3 - Variações do Investimento e do Consumo das Famílias. Brasil. 2011-2016.

 

Fonte: Rossi e Mello,2017

 

No que se refere à questão fiscal, o ano de 2015 interrompe uma trajetória de crescimento das despesas primárias, que voltam a crescer a partir de 2016.

 

O conjunto dos preços administrados teve um impacto de 18% no IPCA de 201530 com a liberação do represamento das tarifas, simultaneamente a uma aceleração da depreciação cambial com o anuncia do fim das garantias contra as variações cambiais nos mercados futuros de câmbio e uma atuação menos ativa do Bacen no mercado. O choque de preços administrados associado ao choque cambial aumenta a taxa de inflação imediatamente, reduzindo os salários reais e influenciando o consumo das famílias. Para completar as políticas recessivas, o Copom aumenta as taxas de juros para combater o aumento da inflação provocada pelas próprias medidas econômicas de antecipação de choques escolhidas pelo governo.

 

O mercado de trabalho entra em deterioração intensa, com as taxas de desemprego crescendo aceleradamente a partir de 2015, assim como a precarização dos postos de trabalho remanescentes, com expansão do trabalho informal.

 

5. A política econômica pós-impeachment

 

A conjuntura se caracteriza por um ataque frontal na dimensão social, ao mesmo tempo em que aprofunda a recessão, atingindo a mais profunda crise da história da economia brasileira.

 

Depois do impeachment da presidenta Dilma a política econômica se volta para reformas estruturantes de cunho neoliberal, abandonando os ajustes de curto prazo. A política econômica pós-impeachment foca na desmontagem dos mecanismos de intervenção do Estado com o enfraquecimento das estatais, modificação do papel dos bancos públicos, flexibilização das leis do trabalho, redução dos instrumentos de regulação dos mercados, abandono do caráter universal de muitas políticas públicas e busca desesperada de resgatar a confiança do capital de que o superávit primário voltará a crescer e a dívida será paga.

 

Conclusões

 

Em relação ao caráter de classe dos governos Lula e Dilma parece que a ausência de uma política estruturante de mudanças radicais da economia levou a ajustes a cada conjuntura, com vistas à ampliação de mecanismos de distribuição de renda e redução da pobreza absoluta. Dado o caráter do Estado, como um espaço em disputa entre as classes subordinadas e as classes dominantes, a correlação de forças na política e na sociedade possibilitou o aproveitamento de momentos de expansão das vendas de commodities no mercado internacional para financiar um programa de crescimento que também favorecia importantes frações dos empresários, incluindo o capital financeiro, os empreiteiros e o grande agribusiness.

 

Isso, no entanto, não justifica caracterizar esses governos como liberais, hegemonizados por grupos das classes dominantes. A convivência de políticas de concentração dos ganhos com as transferências de rendas para os mais pobres levou a oscilação das políticas macroeconômicas, especialmente entre a ortodoxia e flexibilização dos efeitos do tripé macroeconômico, sem caminhar em direção às mudanças estruturais das relações de poder e de propriedade. Em nenhum momento a pauta socialista de transformação da sociedade foi dominante nas conjunturas.

 

Ao longo dos governos Lula e Dilma, a política econômica foi oscilante, refletindo os conflitos internos ao governo, como questões sociais versus a questão nacional. Na primeira fase de aderência aos princípios da Carta aos Brasileiros predominou uma visão ortodoxa, apesar de que a situação internacional viabilizou a expansão de políticas sociais, sem exigir uma escolha entre os beneficiários dos excedentes gerados na atividade econômica. Todos podiam melhorar seus níveis de consumo e renda, sem que fosse necessário tirar dos de cima para distribuir para os de baixo da pirâmide de renda do país.

 

O primeiro governo Lula viveu o predomínio da ortodoxia com medidas distributivas que resultaram na retomada do crescimento, com alguma distribuição de renda, inicialmente puxado pela expansão do consumo. No fim do mandato e principalmente no segundo mandato, o crescimento passa a ser comandado por uma grande expansão do investimento público, flexibilização do tripé macroeconômico, intensa utilização dos bancos e empresas estatais para estimular a consolidação de campeões nacionais. A questão nacional começava a se orientar para um papel ativo das empresas brasileiras entre os Brics, América Latina e África. Nesse sentido, os grandes capitalistas ganharam muito, porém, também desse período, com o crescimento do PIB as rendas dos assalariados e dos mais pobres aumentaram, a geração de emprego foi recorde e a desigualdade regional do crescimento diminuiu. Juros altos conviveram com apreciação cambial dificultando o complexo industrial tradicional do país, especialmente a velha indústria que teve dificuldades para manter seus níveis de exportações, ainda que novos setores, especialmente o agribusiness exportador, as empresas de engenharia pesada e os grandes bancos tenham se expandido.

 

No início do primeiro mandato de Dilma, principalmente a partir do final de 2011, o governo tenta enfrentar o rentismo, baixando a taxa de juros reais e utilizando os bancos públicos para forçar a redução do spread bancário dos bancos privados brasileiros. A reação do grande capital foi imediata, com o governo virando inimigo e intensificando-se as pressões para a mudanças da política econômica. O governo é derrotado e a política ortodoxa volta a predominar.

 

Uma grande lição desse período, posterior à crise internacional de 2008, refere-se novamente à correlação de forças e as dificuldades das políticas econômicas avançarem em programas desenvolvimentistas com um Estado limitado por uma arquitetura institucional não mudada, constituída para assegurar a rigidez das políticas derivadas do tripé macroeconômico, ao mesmo tempo em que a estrutura tributária se mantinha extremamente regressiva.

 

Depois das manifestações de 2013 e com a continuidade das crises internacionais, ao mesmo tempo em que os investimentos privados se contraem no país, apesar das políticas de desonerações implementadas, o desemprego começa a crescer, a economia afunda e a crise se instala. A ortodoxia volta a predominar numa fase terminal do projeto de combinar o crescimento dentro dos marcos do capitalismo, com distribuição de renda.

 

O que se segue é quase a barbárie. A falta de base institucional do governo Dilma, mesmo depois da vitória eleitoral de 2014, associada a uma política extremamente recessiva adotada a partir do segundo semestre de 2014, leva a uma brutal recessão, agravando as contas fiscais. A queda dos investimentos, tanto os públicos como os privados, foi a principal causa da redução para níveis negativos das taxas de crescimento do PIB. O governo é derrubado em agosto de 2016.

 

As duas referências que inspiraram este artigo refletem dois lados do espectro político que resiste ao desmonte do Estado e das conquistas dos movimentos sociais brasileiros dos últimos 50 anos. Uma proposta subordina a questão social à questão nacional, enquanto a outra superestima a questão social, desconsiderando o estágio atual da luta de classes e correlação de forças propondo um programa de ruptura com o sistema capitalista.

 

Nos dias de hoje duas questões se colocam. Em primeiro lugar questiona-se o efetivo grau de autonomia que a intervenção do Estado tem na nova realidade da correlação de forças, tanto na sociedade como no plano institucional do Congresso Nacional, assim como os limites crescentes a mudanças decorrentes do cada mais maior ativismo político do judiciário. Em segundo lugar, há de se considerar o tempo necessário para remontar o aparato de políticas públicas que viabilizem retomar os programas de distribuição de renda e retomada do crescimento. O momento tático é de defensiva colocando-se, portanto, questionamentos sobre correlação de forças e o papel das transformações estruturais da sociedade, versus programas de reformas, como ocorreu já em vários momentos históricos.

 

A resposta a esses questionamentos sairá do próprio processo político com a constituição de alianças, frentes e grupamentos, além de candidaturas, que se consolidarão em torno de programas que enfatizarão ou a questão nacional, com a principalidade do ajuste cambial, ou a questão social, com destaque para as questões distributivas e importância do mercado interno.

 

- José Sergio Gabrielli é professor aposentado da UFBa

 

notas

  • 1. Vários, 2017

  • 2. Maringoni e Medeiros,2017

  • 3. Boito Jr.,2017

  • 4. “A grande burguesia interna brasileira, fração da classe capitalista que mantém uma base própria de acumulação de capital e disputa posições com o capital financeiro internacional, ascendeu politicamente em prejuízo dos interesses desse capital internacional e de seus aliados internos.” (Boito Jr. e Berringer, 2013, p. 31.)

  • 5. Boito Jr., 2017, p. 31

  • 6. Sicsú (2017, p. 14.) cita o Bacen informando que o crédito livre para pessoas físicas cresceu de 7,3% do PIB, em dezembro de 2004, para 14,9% em dezembro de 2010.

  • 7. Dois textos sobre o tema:Fuser(2017) e Schutte (2016)

  • 8. Sicsú (2017, p. 11-12.) cita dados do Ministério de Desenvolvimento Social dando conta de que o número de famílias no programa passa de 3,6 milhões em 2003, para 12,9 milhões em 2010, com valor total de benefícios anuais aumentando de R$ 3,2 bilhões para R$ 14,4 bilhões no mesmo período.

  • 9. Sicsú (2017, p. 17.)

  • 10. Maringoni, 2017

  • 11. Uma outra periodização encontra-se em Oreiro (2015): Tripé Macroeconômico 2003-2005, Tripé Flexibilizado 2006-2008, Novo Desenvolvimentismo 2008-2010, Nova Matriz Econômica 2010-2012, Tripé Revisitado 2013-2015. Nenhum dos dois refere-se ao período pós-impeachment.

  • 12. Bastos, 2017, p. 79.

  • 13. Maringoni, 2017, p. 3

  • 14. Gabrielli de Azevedo (2017, p. 100)

  • 15. Gabrielli de Azevedo (2017, p. 102)

  • 16. Fonseca (2016, p. 124.) destaca que, a partir de 2009, as políticas econômicas foram formuladas em resposta a mudanças do cenário internacional, que ameaçava o crescimento doméstico, sem enfatizar os investimentos e outras variáveis de demanda, mas utilizando instrumentos de redução de custos, numa versão heterodoxa de supply side, para estimular os investimentos privados.

  • 17. Ainda que só tenha sido efetivamente aprovada pelo Congresso em 2011, mas adotada pelo governo desde o seu início.

  • 18. Sicsú (2017)

  • 19. Despesas primárias passaram de 15,37% do PIB, no período 1999-2005, para 16,83% de 2006-2008, segundo Oreiro (2015).

  • 20. Paula e Saraiva (2015, p. 17.)

  • 21. Gabrielli de Azevedo (2017, p. 98.)

  • 22. A partir do final do 2011, a grande imprensa brasileira e a internacional intensificam uma campanha contra Guido Mantega, culminando com o pedido de sua demissão em dezembro de 2012 pela importante revista The Economist, de Londres.

  • 23. Oreiro (2015)

  • 24. Mesquita (2014, p.3.)

  • 25. Mesquita (2014, p. 4

  • 26. Ata do Copom de agosto de 2011 citada em Mesquita (2014, p. 5.)

  • 27. Oreiro (2015)

  • 28. Serrano e Summa, 2012, p. 174.

  • 29. A definição técnica de recessão, que envolve o crescimento negativo do PIB por dois trimestres consecutivos, ou mesmo seu conceito ampliado que inclui o comportamento do emprego, renda e consumo, não permite caracterizar recessão no Brasil antes do primeiro trimestre de 2015, conforme Rossi e Mello (2017, p. 2.)

  • 30. Rossi e Mello, 2017, p. 3

 

Edição 166, 29 novembro 2017

http://www.teoriaedebate.org.br/index.php?q=materias/nacional/olhar-o-passado-para-orientar-o-futuro-dialogo-com-duas-propostas-parte-2

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/189532
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