Nos tribunais, os Xikrin estão vencendo a Vale
- Opinión
Xikrin do Cateté paralisam a produção de níquel no Pará e aguardam indenização por danos causados pela operação da mina de Onça Puma; laudo aponta contaminação do rio que é o centro da vida nas aldeias
Os índios Xikrin, do sudeste do Pará, estão vencendo a poderosa mineradora Vale S.A. em uma batalha que se desenrola há anos na Justiça brasileira. Apenas nas instâncias superiores, em Brasília, a Vale já foi derrotada quatro vezes pelos Xikrin e os juízes também derrubaram um recurso do governo do Pará em favor da mineradora.
A Vale S.A. é acusada pelos Xikrin de contaminar com metais pesados o rio Cateté, que atravessa a terra indígena e é o centro da vida comunitária dessa população.
A terra dos Xikrin é uma ilha verde em meio à pastagem em que foi transformada a Floresta Amazônica na região e está cercada por todos os lados pela mineração: são 14 operações da Vale no entorno. Salobo, Sossego, S11D e a mina Ferro Carajás são algumas delas, mas a briga que os Xikrin estão ganhando é contra o empreendimento Onça Puma, que extrai níquel das serras de Onça e de Puma e beneficia o minério em uma usina que fica a apenas 6 quilômetros da Terra Indígena.
A decisão mais recente da Justiça, tomada na primeira quinzena de setembro, ordena o fechamento temporário da operação até que seja esclarecida a responsabilidade da Vale S.A. na contaminação do rio Cateté.
O processo foi aberto em 2011 pelo Ministério Público Federal (MPF), baseado nas queixas dos índios, que sentiam coceira na pele e ardência nos olhos ao mergulharem no rio – o único na terra indígena a manter vazão razoável mesmo durante o período de seca. Só em 2015, porém, a partir de um laudo elaborado pelo engenheiro Reginaldo Sabóia de Paiva, da Universidade Federal do Pará (UFPA), a ação avançou.
A análise da água do Cateté – feita a pedido do Ministério Público – apontou a presença de ferro, cobre, níquel e cromo em teores acima das quantidades admitidas para este tipo de curso d’água, representando “risco para a saúde humana, tanto no que tange sua utilização para assepsia ou banhos quanto para retirada de alimentos”. Também foram encontrados óxidos metálicos pesados nos sedimentos do rio: cobre, níquel, cromo e zircônio, “este último, metal raro de transição, indica que a poluição não é natural e sim causada por atividade de desencapsulamento desses metais, denotando que existe uma fonte poluidora potencializada”.
O professor Sabóia mediu os níveis de metais pesados em três pontos do rio Cateté: as amostras coletadas em locais anteriores à Onça Puma não estavam contaminadas. “A causa da degradação do rio é antrópica e, pela posição dos pontos analisados, a indicação é de que esta degradação está sendo causada pela mineradora”, concluiu o engenheiro. E acrescenta: “Por mais que a empreendedora esteja tratando seus efluentes residuários, não está sendo suficiente para manter o rio em condições ambientalmente saudáveis. As análises antes e depois do empreendimento mostram claramente que as atividades de extração da mineradora Onça Puma alteraram as qualidades naturais do Rio Cateté”, diz o laudo.
A contaminação do Cateté com metais pesados é admitida até pela Vale. Em sua defesa, a companhia alega que a presença das substâncias em níveis anormais na água que banha a terra dos Xikrin ou é oriunda de fazendas e de garimpos ilegais instalados na região ou é resultado de “causas naturais”.
Questionada pela Pública, a Vale manteve os argumentos utilizados nas ações judiciais. Em nota enviada como resposta a uma série de perguntas enviadas pela reportagem, a mineradora declarou: “A Vale cumpre a Lei. A empresa não utiliza quaisquer dos elementos identificados pelo MPF como causadores de poluição das águas do rio Cateté. Todos os laudos apresentados comprovam isso e a Vale mostrará na Justiça”.
A decisão de outubro de 2017 não foi a primeira a determinar a paralisação de Onça Puma. Já há uma pequena coleção delas, em uma sequência que começou em agosto de 2015 – alguns meses depois a Vale seria impactada pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, no que entrou para a história como o maior desastre ambiental brasileiro.
A partir do laudo da UFPA, juízes e desembargadores vem adotando o princípio da precaução como justificativa para paralisar as atividades da mina mesmo sem a conclusão definitiva do processo. Assim se pronunciou o então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot sobre o caso, em novembro de 2015: “Ainda que tais conclusões possam vir a ser desfeitas, não cabe, no estreito limite da contracautela, desprezar a existência de tais dados”.
A volta por cima de um povo quase extinto
O clima acirrado e tenso dos tribunais reverbera entre os Xikrin, que não escondem a desconfiança diante da chegada de desconhecidos. “Quem mandou vocês aqui?” perguntavam diariamente à equipe de reportagem da Pública, que permaneceu uma semana nas aldeias. As mulheres são ainda mais bravas e acusam qualquer “kuben” (branco) recém-chegado de ser espião da Vale.
A mineração da Vale não é a primeira ameaça que enfrentam; os Xicrin sempre sofreram com a invasão de madeireiros, gateiros (caçadores de pele de onça), castanheiros e fazendeiros. No passado, quando eram senhores de um amplo território entre os rios Araguaia e Tocantins, o contato com não-indígenas trouxe epidemias que por pouco não exterminam a tribo: sarampo, varicela e catapora reduziram a população a exatos 92 indivíduos. Atualmente, eles já ultrapassaram a marca de 1200 habitantes, divididos nas aldeias Djudje-kô, Kateté, as maiores, e a recentemente criada O-odjã, com pouco mais de 200 moradores.
Hoje os índios se empenham em preservar e resgatar suas raízes culturais; nas aldeias não se fala português – nem no culto evangélico. No meio dos professores “kuben” da escola, Bemoro, um indígena de 40 e poucos anos, tenta sistematizar uma gramática da língua nativa, do tronco macro-Jê. Um dos capítulos do livro, por enquanto rascunhado em um caderno, é “Mẽ kaben mari kadji ã piok” ou “O papel de aprendiz de língua”. Na linha seguinte, está a anotação “A-mebengôkre kaben na mex kumrex” (“Xikrin é uma língua muito bonita”) e uma série de expressões nativas. Também utilizam a tecnologia dos brancos em seu favor; os mesmos celulares usados pelos jovens para baixar os funk mais recentes gravam as vídeo-aulas com os anciãos das aldeias entoando cantos que estavam caindo no esquecimento. “Estamos batalhando para aprender, estamos gravando. Só tem três velhos que ainda sabem algumas danças como o tatucanaje”, explica o ex-cacique Onkray, que recebeu o cetro de seu pai e o repassou no início do ano ao filho.
Bemoro, Bep-ka e Otore, guerreiros Xicrin no acampamento montado por eles próximo a uma das cabeceiras do Rio Cateté (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)
O velho cacique apontou onde estava o minério
O velho cacique Botxiê não sabe a idade que tem; nasceu numa época em que os Xikrin não registravam os nascimentos. Ele é um dos três velhos conhecedores da cultura e tradição a que o filho Onkray se refere.
Mesmo já “aposentado” como liderança ativa, ele é respeitado como a autoridade máxima da tribo, sua palavra vale como lei. Por isso, mesmo à contragosto, os jovens obedecem à proibição de incluir nas festividades Xikrin números de “hina-hina”, uma dança importada de povos indígenas bolivianos que tem feito sucesso entre os índios do sul da Amazônia brasileira. Entre cantos tradicionais e passos ritmados, a memória do cacique guarda a história dos Xikrin e da retomada de seu território. Ele ainda morava com o pai, fora da área posteriormente demarcada como terra indígena, quando os Xikrin quase foram exterminados: “Pegaram doença, gripe, febre, morreram um bocado de índios, mais de 500”, ele contabiliza. “Aí o velho voltou para cá, não quis morar fora, foi para perto do rio Pukatingré, que depois o branco chamou Cateté”.
Num português precário e com a ajuda de um tradutor, ele rememora as andanças dos índios quando o território não tinha os limites da atual terra indígena, definidos pelo governo no final dos anos 70. Dessa época, Botxiê lembra das expedições com os técnicos da INCA Ltda, a empresa canadense que descobriu os depósitos de níquel hoje extraídos por Onça Puma. “Nós levamos eles lá onde tinha minério; esse minério está na nossa terra”, reivindica.
Botxiê não deixa de ter razão: no ato de demarcação, um canetaço do governo militar retirou uma área de 13 mil hectares no lado oeste da reserva indígena, justamente a parcela onde está a serra de Puma, hoje explorada pela Vale. A descoberta da jazida de níquel se dera poucos anos antes.
“Ficou uma linha seca, reta, de 32 quilômetros, que não corresponde à realidade em termos de ocupação tribal e tampouco aos limites que haviam sido aceitos em Brasília”, denuncia, em documentos, a antrópologa Lux Vidal, que participou do processo demarcatório e trabalha com os Xikrin desde o fim da década de 60.
Os índios também perderam uma importante área de caça e pesca, além das cabeceiras de dois rios que correm em direção ao Cateté e são a principal preocupação dos índios com as atividades da mineradora. O declive natural da serra facilita o escoamento de resíduos da atividade que são facilmente carregados para o Cateté. Para piorar a situação, é no encontro das duas serras que está a aldeia dos mortos dos Xikrin, o cemitério da etnia. Justamente onde a Vale extrai o níquel de Onça Puma.
Um licenciamento enviesado
A Vale tinha pleno conhecimento das implicações culturais da exploração de níquel em Onça Puma. Elas constavam de um extenso relatório elaborado por antropólogos a pedido da companhia para medir o impacto do empreendimento na comunidade vizinha. Lá também estava escrito que havia “grande preocupação e sensação de vulnerabilidade dos indígenas em relação aos impactos reais e potenciais do empreendimento sobre o rio Cateté”.
Nos dias de calor intenso, os Xikrin passam horas dentro do Rio Cateté (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)
Entre várias outras condições para autorizar o empreendimento, o Estado do Pará exigia um parecer da Funai (a Fundação Nacional do Índio) sobre a influência do empreendimento na população indígena da região e a aprovação de um plano de mitigação de impactos sobre o meio ambiente que deveria ser colocado em prática já na aprovação da licença prévia, em 2004. Foi nesse contexto que foi produzido relatório, enviado para Brasília, para ser analisado pela Funai, conforme combinado, mas o órgão só devolveu suas conclusões cinco anos depois, quando Onça Puma já estava em pleno funcionamento.
Desde então todas as licenças emitidas mantêm a condição de que a empresa apresente o plano de compensação ambiental, incluindo a questão indígena no rol de obrigações mitigatórias do empreendimento. A própria Secretaria de Meio Ambiente do Pará, responsável pelo licenciamento, admite a irregularidade: a renovação da licença de operação, em abril de 2010, traz a anotação de que a Vale teria 120 dias para apresentar as conclusões da Funai, que seguiam sem ter sido devidamente incluídas no processo administrativo.
Esse é o principal argumento do Ministério Público Federal para a tese de que o empreendimento está operando de forma ilegal, sem cumprir condicionantes ambientais e contando com a anuência do Governo do Estado.
“Ainda hoje o empreendedor opera normalmente sem atender as condicionantes previstas nas licenças ambientais, otimizando os lucros em detrimento dos interesses indígenas. Só a empresa Vale ganha!”, insurgiu-se o procurador da República André Casagrande Raupp, na peça inicial da ação, assinada em maio de 2011.
Onça Puma continua em operação
Foi com a intenção de corrigir o erro no processo administrativo de autorização de funcionamento de Onça Puma que a Justiça decretou seu fechamento temporário pela terceira vez em setembro passado. A ordem é que o empreendimento não pode funcionar “enquanto não cumprir as obrigações da licença ambiental relativas aos indígenas”.
No julgamento, a 5ª turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) considerou que “o bem vida sobrepõe-se aos eventuais prejuízos econômicos decorrentes da paralisação do empreendimento, devendo ser prestigiada a medida que implicar a mitigação dos riscos de perecimento e a subsistência física e cultural das comunidades indígenas”.
Vinte dias depois dessa decisão, já em outubro, constatando que a companhia seguia operando Onça Puma, o desembargador federal Souza Prudente determinou que as portas de acesso ao empreendimento fossem lacradas por oficiais de justiça “utilizando-se, inclusive, de força policial, se necessário for”.
A usina da Vale, porém, segue beneficiando o níquel extraído das serras Xikrin: a companhia argumenta que a operação de lavra do minério é independente do funcionamento da usina de beneficiamento e que a ordem do TRF1 se refere exclusivamente à mineração, não ao processamento do material que dela resulta. “É uma excrescência jurídica”, afirma o advogado dos Xikrin, José Diogo de Oliveira Lima.
A mineradora também está condenada a pagar uma indenização aos indígenas. Estipulada em 2015, hoje alcançaria os 50 milhões de reais, mas como a Vale recorreu inúmeras vezes, apenas uma parte do valor total foi efetivamente entregue aos indígenas. Uma parcela da indenização será empregada pelos Xikrin em estudos para a recuperação do rio Cateté e eles já firmaram um convênio com a Universidade Federal do Pará com este intuito.
23 de outubro de 2017
Naira Hofmeister, para a Agência Pública