Chegou a hora de reconstruir a política! mas como?

30/03/2017
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Foto: s/título
de Antônio Berni
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O título do artigo é intencionalmente contraditório ao colocar em discussão uma certeza e um dilema. Não restam dúvidas que atravessamos um dos piores momentos da história do país, com a retomada de uma agenda neoliberal voraz, com a destruição das bases democráticas, com a desmonte do sistema constitucional de direitos fundamentais e garantias, com a desnacionalização da economia, drástico aumento da taxa de desemprego, com ataques contínuos à política ambiental e à conservação da biodiversidade, aumento da malha tributária sem nenhum retorno social, mas corte nas políticas públicas, e com o fim do regime de proteção social e do trabalho.

 

A derrubada de Dilma Rousseff (PT) por meio de golpe de estado parlamentar e a ascensão de Michel Temer (PMDB) ao poder não trouxe nada diferente do esperado, apenas um turbilhão de retrocessos sociais, econômicos e democráticos. O fracasso do movimento puxado pela grande mídia, por grupos neo-fascistas como o MBL e pela elite conservadora nacional, no último 26 de março, já era esperado, pois o falso discurso de salvação nacional que sustentou essa articulação não tem mais sustentação.

 

O PMDB tem razão quando afirma que Michel Temer é o homem certo, entretanto, para a imposição de uma agenda ilegítima, pois ele mesmo é ilegítimo. Destruir as bases democráticas, desqualificar as lideranças políticas, desmoralizar a economia nacional foram medidas que serviram apenas para fomentar o desencanto social e ampliar o espaço para as raízes do proto-fascismo. Este é o resultado imediato das ações do atual comando do Planalto.

 

Desta forma, este seria um momento para lutar por mudanças, reconstruir o país, refundar a identidade nacional, reforçar os espaços de participação e as pautas de resistência surgem como um ponto de partida histórico para mobilização social. Então, por que logo depois da aprovação da “lei das terceirizações” pela Câmara, que simplesmente destrói com todo o marco normativo de proteção do trabalho, não foram observados protestos em todo o país? Por que apenas a dificuldade para a efetivação de mobilização mesmo com a possibilidade de aposentadorias apenas depois de 49 anos de contribuição? Qual o motivo de não observarmos uma comoção popular contra uma taxa de desemprego em níveis tão elevados, com a destruição da indústria nacional e com o retorno do país ao mapa da fome?

 

São perguntas importantes, cujas respostas não podem ser simplificadas. É evidente que sofremos com a fragmentação do movimento sindical e com uma mudança de perfil dos movimentos sociais. Também é normal uma certa desmobilização das organizações progressistas depois de 13 anos de políticas de inclusão social. Se no dia 15 de março observamos um grande volume de atos em todo o país para a defesa da previdência, embora as imagens tenham sido sonegadas pela grande mídia tal qual ocorria durante a ditadura, tal mobilização ainda foi pequena frente ao volume de perdas para a sociedade.

 

Mas qual é o motivo de tamanha desmobilização ao ponto de acompanharmos um gigantesco desmantelamento dos direitos sociais e trabalhistas sem respostas mais fortes da sociedade brasileira como um todo? Há realmente uma migração do corpo social para o conservadorismo logo depois derrubada da esquerda? Particularmente, entendo que esta interpretação é bastante equivocada. Há, de fato, um esvaziamento da participação eleitoral, mas isto não representa uma emergente hegemonia social do conservadorismo, e sim apatia política, como demonstraremos adiante.

 

De início, refuto a tese de que o Partido dos Trabalhadores, quando no poder, foi incapaz de interpretar as manifestações de julho de 2013. Uma parcela de intelectuais da esquerda observou naquele movimento uma virada da organização popular e um afastamento do Governo de suas bases sociais. Este afastamento vem ocorrendo, mas não tem relação com 2013, é derivado da própria burocratização interna do principal partido de esquerda da América Latina.

 

As manifestações do pré-Copa de fato apresentavam alguma mobilização de movimentos progressistas, especialmente a luta pelo “passe-livre”. Mas nesta época também nasceu a base do “neo-integralismo” reacionário que foi sustentar o MBL em 2015 e 2016. Aliás, nunca esqueçamos que o discurso predominante em muitas manifestações na Paulista em julho de 2013 foi a pregação dos “sem partido” que, na verdade, já eram os conservadores, a “nova direita“.

 

De fato existe uma mudança dos modelos de organização da sociedade civil no país com o decréscimo do poder sindical depois da desindustrialização dos anos 90, mas tal organização não nasceu em 2013, tem fruto no crescente processo de urbanização sem respostas efetivas da administração pública, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, ou possuem raízes na confrontação de formas de segregação mais antigas, como o MST.

 

Na época, em 2013, Dilma agiu rapidamente ao propor a ampliação das políticas de incentivo à mobilidade urbana e já colocou na agenda uma discussão sobre uma Reforma Política, a qual foi enterrada no Congresso. Entre as lideranças que engrossaram o coro contra a proposta de Reforma apresentada pelo Governo estava Michel Temer (PMDB), na época vice-presidente. O fim do financiamento empresarial de campanhas em 2015 foi uma dura derrota para o conservadorismo e o clientelismo, forçando a reação que redundou no golpe de estado de 2016.

 

Mas observem os números. Se no primeiro turno das eleições de 2014 Dilma teve 43,3 milhões de votos, o número de eleitores que não se manifestou em voto (brancos, nulos e abstenções) atingiu expressivos 38,8 milhões. Somente depois deste número de abstenções concretas e que observamos o segundo candidato, Aécio Neves (PSDB), com cerca de 34,9 milhões de votos. No segundo turno, como sempre acontece em razão do acirramento ideológico, o número de abstenções, brancos e nulos caiu um pouco, mas ainda apresentou o expressivo número de 37,2 milhões de votos. Tais dados já poderiam indicar uma elevada rejeição da política, mas os indicadores das eleições municipais são ainda mais expressivos.

 

Com o golpe, com o marketing do ódio e da corrupção, as eleições para Prefeito apresentaram números ainda mais fortes de esvaziamento eleitoral. Em São Paulo, por exemplo, maior colégio eleitoral do país, Dória Júnior (PSDB) foi eleito no primeiro turno com 3,085 milhões de votos. Contudo, votos brancos/nulos/abstenções, somaram 3,096 milhões de votos. Ou seja, quem ganhou a eleição foi a rejeição à política. No Rio de Janeiro, o número de votos brancos/nulos/abstenções no primeiro turno foi de 1,867 milhão, sendo ainda maior no segundo turno, 2,035 milhões, quase metade do eleitorado oficial da cidade. O cenário se manteve o mesmo em Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba, grandes centros políticos e econômicos, onde os chamados votos de abstenção superaram os candidatos eleitos por uma grande margem.

 

O que demonstram tais indicadores? A primeira e imediata leitura é crítica, de uma rejeição ou desencantamento com a política. Ao contrário do que muitos defendem, especialmente os grandes meios de comunicação, o projeto conservador não venceu as eleições em 2016, nem demonstrou capacidade de construir hegemonia, pelo menos no voto. Quem venceu foi o descaso com a política, a rejeição à participação meramente eleitoral, o desencanto com o atual modelo e a perda da esperança! Os números identificam que o Brasil não acreditou, especialmente em 2016, que a solução dos seus problemas poderia vir pelo voto ou, pelo menos, que os discursos apresentados estavam sólidos o suficiente para mudar a realidade, e isto pode ser perigoso para quem defende um projeto democrático!

 

A abstenção eleitoral foi um fenômeno comum nas grandes democracias ocidentais logo após a ascensão do neoliberalismo, o que Friedrich Müller chamou de “fastio com a política”. Também é fato que este fenômeno não resultou em nenhuma vantagem para esses países, nem em estabilização democrática. A emergência de projetos de resistência, especialmente das democracias participativas junto às administrações locais ou de movimentos de autogestão, demonstrou que a sociedade exigia muito mais dos governos do que simples processos eleitorais periódicos onde é chamada apenas para quem vai tomar as decisões pelo conjunto da sociedade. Ficou evidenciado que a população exigia muito mais, o direito a uma forma de participação mais ampla, com a possibilidade de influenciar nos processos deliberativos, motivo este que continua crescente em todo o globo.

 

A burocratização e o distanciamento dos grandes partidos trabalhistas europeus das suas bases nas décadas de 80 e 90 do século passado têm grande peso no esvaziamento dos processos eleitorais e na emergência da ideologia neoliberal que, por sinal, fracassou como projeto político em todo o mundo. A desindustrialização, a concentração de capitais, o desemprego em massa, a perda de proteção social, a desqualificação da política e o crescimento da xenofobia são alguns dos resultados da ideologia neoliberal onde esta foi aplicada. O crescimento das abstenções, portanto, também tem uma relação direta com o modelo neoliberal de administração.

 

Sobre este ponto, ainda deve ser destacado que em nenhum lugar do mundo onde tivemos a redução da proteção ao trabalho há registro de aumento de empregos, ao contrário, observa-se, isto sim, uma adequação do trabalho a ciclos produtivos temporários e um aumento gigantesco da precarização das condições laborais dentro da lógica just-in-time. A síntese das políticas conservadoras de gestão do trabalho sempre resultaram em menos empregos, menores salários, piores condições laborais e mais acidentes. Quando menor é a regulação do mercado de trabalho, menor é o consumo médio das famílias e, por via de consequência, há uma queda na atividade econômica e no número de postos formais de emprego.

 

Desta forma, existem motivos para uma preocupação real com o esvaziamento dos processos eleitorais e desencanto da sociedade com a política. É um fenômeno perigoso que alimenta o avanço das piores linhas de pensamento e abre as portas para o fascismo em todos os seus modelos. Não por acaso, o esvaziamento dos processos eleitorais na Europa coincide o crescimento da xenofobia e do neo-nazismo. São fenômenos interligados. Quanto menor é a esperança de cidadãos e cidadãs com soluções políticas equilibradas, maiores são as chances para modelos de organização violentos, oportunistas e mediocrizados, como na pregação pelo retorno das ditaduras. São visões simplórias, reacionárias, distantes dos fatos concretos, mas, ao mesmo tempo, perigosas pela sua ligação direta com o ódio e o preconceito. Daí a necessidade de retomar uma agenda construtiva.

 

Mas como construir alternativas neste momento em que os próprios direitos duramente conquistados estão sob ameaça? E aí vem a resposta mais importante: não existem projetos prontos! As únicas certezas existentes referem-se à imperatividade de maior participação social e de que não há soluções definitivas no processo eleitoral. É preciso ir além, é necessário inovar, reconstruir um projeto político transformador que mobilize de fato a sociedade, especialmente os grupos desesperançados.

 

Daí a importância de consolidar pautas antigas, que seguem esperando respostas sólidas, como a redução da jornada de trabalho, a ampliação dos mecanismos de proteção social, o fomento à produção coletiva em regime solidário, a recuperação de empresas, a universalização do ensino superior, o fomento à pesquisa, o combate à violência com inclusão e não com mais violência, a ampliação dos espaços de lazer comunitária, uma mudança drástica nos monopolizados sistemas de mobilidade urbana, a conservação do meio ambiente e a proteção dos patrimônios coletivos, a promoção da cultura popular, a criação de empregos com base permanente, a transparência efetiva na administração pública e, principalmente, a participação social. Mas antes que tudo isto possa acontecer, é preciso derrubar as barreiras que impendem o diálogo entre aqueles que realmente defendem um projeto nacional transformador. Está, de fato, no momento de consolidar uma frente democrática!

 

Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais

 

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2017/03/30/chegou-a-hora-de-reconstruir-a-politica-mas-como/

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/184476
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