Software livre: Dinamismo, mestiçagem e novo horizonte

27/07/2016
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 513, 514: A comunicação em disputa 04/07/2016

Além de seu pertencimento umbilical ao amplo território digital mundial, o software livre criou um porto sólido, quase uma pátria “adotiva” em terras latino-americanas. Esta metáfora, longe de ser um exagero chauvinista, corresponde bastante à realidade na hora de ilustrar a particular fecundidade que vem aumentando há 20 anos entre o movimento do software livre e as transformações sociais em curso no continente sul-americano.

 

Assim como em outras regiões do mundo, o movimento software livre regional se parece a uma via láctea de iniciativas disseminadas e multissetoriais, pouco sistematizadas e estudadas, em que não há nem confederação regional, nem condução centralizada ou uma verdadeira organicidade de conjunto. Suas identidades, assim como afinidades ideológicas e organizacionais, são muito diversas e às vezes até antagônicas. Entretanto, existe uma coesão que radica numa forte afinidade com os princípios éticos do software livre e de seu modus operandi. Efetivamente, estes valorizam a ação direta em redes, que nas últimas duas décadas na América Latina se uniu à aspiração central de intensificar o vínculo social e até ressignificá-lo segundo uma lógica inclusiva e igualitária. Desenvolver o software livre, ou seja, a inteligência colaborativa a serviço do acesso universal e soberano aos recursos informáticos, significa implementar modalidades comuns para compartilhar, criar comunidades de ativistas e usuários e promiscuidades horizontais com múltiplas esferas socioprofissionais. Basta isso para convertê-lo em um verdadeiro movimento continental? Não necessariamente. Contudo, para além das categorias perceptíveis, o importante é perceber a fecundidade do processo que sustenta essa via láctea regional e poder desenhar suas constelações mais significativas.

 

A primeira, sem dúvida nenhuma, é a vivacidade da onda do movimento software livre regional. Uma de suas manifestacões mais evidentes é o festival latino-americano de instalação de software livre1 que acaba de celebrar, em abril de 2016, sua décima segunda edição em mais de 200 cidades do continente. Desde o ano de 2005 este festival descentralizado constitui nada menos que a mais volumosa mobilização popular internacional dedicada à informática livre. Equipara-se a outros eventos regionais mais especializados (como a Conferência internacional do software livre, as Jornadas regionais do software livre ou outros encontros subregionais). Todos são inseparáveis da profusão de grupos de usuários e experiências do movimento enraizadas em nível territorial e nacional. Outra marca desse dinamismo se expressa no plano econômico. Segundo o International Data Corporation, o crescimento do sistema GNU/Linux na indústria digital regional em 2004 duplicava a tendência mundial de 32% de crescimento anual2. Se já não é preciso demonstrar globalmente o sucesso das distribuições abertas na infraestrutura dos servidores, esta tendência mostra a vantagem que possuem localmente os sistemas livres para responder a um contexto de desenvolvimento digital ainda muito desigual, já que a indústria digital privilegia sistemas adaptativos e de custos mais baixos. Assinalemos, por outro lado, que Cuba, Venezuela e Uruguai ganham os louros em nível mundial como parque de computadores pessoais mais linuxizado3.

 

Uma segunda constelação se vincula com a força das histórias e a mestiçagem das identidades ligadas ao movimento software livre e diferentes processos sociopolíticos. Curiosamente, trata- se de um ângulo pouco desenvolvido no pensamento sobre o próprio movimento, quando seu lugar é central na realidade. Ainda quando existe um princípio identitário autorreferencial dentro da cultura do movimento, esta tende a seguir as linhas móveis de uma identidade associativa, em outras palavras mostra uma atitude voltada ao sincretismo em relação a outras problemáticas e temas políticos. Muitos grupos de hackers e ativistas do software livre formaram parte dos momentos fundadores do Fórum Social Mundial a partir de 2001 no Brasil, de que se originará mais tarde o Fórum Mundial das Mídias Livres, a partir de 2009. Várias redes se associaram a lutas territoriais e de identidades sociais, dos movimentos feministas, as resistências cidadãs e pós-extrativistas, os meios de comunicação e comunicadores populares ou alternativos, alguns partidos políticos e movimentos sociais, o setor mutualista e as PyMEs, as redes universitárias e mais recentemente os novos movimentos urbanos. Dando lugar às vezes a associações pontuais ou setoriais, mantendo- se afastadas do verticalismo do cenário político tradicional, estes hibridismos não tiveram dúvida em facilitar a passagem de um ativismo tecnopolítico e a institucionalização de políticas públicas em nível nacional ou provin cial e, em menor medida, regional, cujas políticas de comunicação estão por ora em estado de protótipo.

 

Do México à Argentina, o propósito do software livre e da soberania tecnológica transitaram assim de modo circular das bases sociais até o mais alto nível governamental, mais claramente ainda no caso dos projetos políticos populares e progressistas. É evidente que será necessário ainda mais para generalizar de maneira sustentável um paradigma de soberania tecnológica. Mas as conquistas sociais em matéria de direitos digitais, o efeito transformador de um modo de construção radicalmente participativo e a ruptura do isolamento do discurso tecnológico são avanços fundamentais que seguirão atuando firmemente nos imaginários coletivos.

 

Por último, a terceira constelação, cujos contornos ainda estão por ser inventados amplamente: os rumos do movimento software livre. Se é muito ambicioso definir uma estratégia coletiva em virtude da grande disseminação do movimento, é necessário em compensação dar uma nova investidura a seu imaginário transformador e seus marcos de compreensão. Entramos decididamente numa nova etapa tecnopolítica, com o surgimento dos gigantes da indústria digital, a captura de uma grande parte da modalidade software livre em suas estratégias de acumulação e a entrada da microeletrônica nas grandes relações geoestratégicas. As questões de infraestrutura soberana das redes, sua reterritorialização, as lutas por uma comunicação democrática, os direitos digitais, o controle cidadão do código e dos algoritmos já formam hoje em dia uma batalha mais unificada. A afirmação libertária democratizou notavelmente a primeira etapa de desdobramento da microinformática. Com a instalação atual de um regime “realista” no espaço eletrônico, é hora de fincar as bases de um novo pacto regulador e aprofundar as alianças estratégicas com o resto da sociedade.

 

François Soulard é comunicador social e migrante franco-argentino, membro da Red de Comunicadores del Mercosur e do Foro Mundial de Medios Livres. Participa atualmente da construção do Foro Democrático Mundial (fdm.world-governance.org).

 

Artigo publicado na edição de junho 2016 da ediçao em portugês da revista América Latina en Movimiento: “La comunicación en disputa” http://www.alainet.org/pt/revistas/513-514 (ALAI - SENGE-RJ)

 

1 FLISOL http://flisol.info

 

2 Em 2003, 30% dos sistemas de busca nos servidores empresariais e 60% dos sites do mundo utilizam o software livre. http://www.somoslibres.org/modules. php?name=News&file=article&sid=338

 

3 StatCounter, 2011 http://www.bbc.com/mundo/ noticias/2011/05/110510_1541_linux_latinoamerica_ cuba_venezuela_uruguay_dc.shtml

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/179095
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