Violência e insensatez
23/02/2015
- Opinión
Até o mundo mineral está informado: dentro em breve, 1% da população mundial será dona de 99% da riqueza global. O fato não causa o pasmo da própria turma dos privilegiados, tampouco de uma congregação de ilustres economistas. O argumento que estes brandem soletra a inevitabilidade do processo, determinado, digamos assim, pelo estilo (modo, regra) de vida do planeta. E qual seria? Porventura a lei da selva?
Tempos atrás, dizem os tais economistas, a existência seguia um curso linear. Pagava-se por tarefa, por obra feita, por lance executado, de maneira constante e uniforme, de sorte que o tempo determinava o resultado do esforço despendido. Nos dias de hoje, um único gesto, uma solitária ação, a decisão isolada de um ser afortunado, podem torná-lo bilionário da noite para o dia.
E vamos de valsa, a sustentar a teoria. A fortuna, a bem da verdade factual, sempre influiu para enriquecer este ou aquele, sem contar a trapaça, o assalto, o roubo, a exploração do homem pelo homem. Como aconteceu, por exemplo, com os antológicos robber barons dos EUA no final do século XIX. No entanto, quem justifica atualmente a caminhada no rumo da desigualdade absoluta não passa de sabujo a serviço do neoliberalismo. Tornado estilo, modo, regra de vida. Sob medida para garantir a felicidade de uma centena de empresas multinacionais, a mandarem mais que os governos nacionais, bem como dos banqueiros e dos especuladores.
Antes ainda que políticas, econômicas e sociais, estão em jogo questões morais. E intelectuais, relacionadas com a razão. Por que o mundo haveria de se conformar com uma situação que favorece pouquíssimos em detrimento da avassaladora maioria? Alguns tímidos sinais de resistência afloram aqui e acolá. Há de tirar o sono, contudo, de quantos ainda se norteiam tanto por valores e princípios quanto pela lógica velha de guerra, toda uma avançada sintomatologia do emburrecimento global.
Vamos então a Copenhague, gélida embora aprazível capital do Norte, na rota do polo. Pois até ali um muçulmano enraivecido atenta contra aqueles que enxerga como inimigos. E lá vem a mídia a denunciar mais um atentado à liberdade de expressão. E não seria inclusive de culto, a se considerar que o atentador também agiu contra uma sinagoga?
Ninguém se pergunta por que um par de franceses de sangue árabe invade a redação do Charlie Hebdo, ou um apenas ataca em Copenhague. Ninguém convoca seus botões para tentar compreender as razões deste insólito e ferocíssimo conflito, a começar pela fragilidade da Europa, já assoberbada por imponentes problemas, e pelo desespero das periferias. E no caldeirão monstruoso, ferve, também e obviamente, a desigualdade cada vez mais desenfreada.
Neste momento da esperteza de um punhado de indivíduos e da cretinização coletiva, excelente metáfora da situação é a chamada arte contemporânea. Na ausência de poetas e com o enterro da pintura. A quem aproveita se não aos vilões da especulação? Se ditos artistas como os Hirst e os Koons valem milhões de dólares, o enredo farsesco favorece quem os negocia, e a quem transforma sua produção ridícula, em um tempo incapaz de expressar a extraordinária ironia de Marcel Duchamp, em moeda alternativa da especulação.
O mundo digere a empulhação, sem discernir realidade da fantasia imposta pela forma dos mais apurados e capilares instrumentos tecnológicos. Se os empulhadores acima citados valem milhões, quanto vale a Capela Sistina? Quem se habilita a estabelecer parâmetros? E por falar em Michelangelo, que se daria se algum cartunista, ao majestoso rosto barbudo do Deus cristão, a pairar soberano na abóbada da capela, substituísse as néscias feições de Bush júnior, ou de outro Bush, o futuro e enésimo? A liberdade de expressão é invocada, sem perceber que ela tem seus limites.
Quanto a esse conflito sem fronteiras que abala o planeta, de inaudita violência e insensatez abissal, denuncia uma lógica na falta de lógica: é a manifestação inexorável de um mundo violento e insensato, a favorecer os ricos e a espezinhar os demais.
23/02/2015
https://www.alainet.org/pt/articulo/167725
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