Dia histórico para a ilha, o continente americano, o Brasil... e o papa
18/12/2014
- Opinión
Reprodução Youtube
Enquanto o San Lorenzo passava à final do Mundial de Clubes,
o dia foi marcado por outro gol de Francisco, com o reatamento
diplomático entre EUA e Cuba
Quarta-feira, 17 de dezembro de 2014: este dia ficará na história das Américas como o dia da reconciliação continental.
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e o de Cuba, Raul Castro, discursaram ao mesmo tempo em transmissão direta das respectivas televisões, anunciando a disposição de reatarem relações diplomáticas, depois de 53 anos de ruptura.
A decisão veio à luz do dia depois de negociações secretas que começaram em junho de 2013, no Canadá, instadas pelo papa Francisco. Houve até um encontro, também secreto, entre gente de alto nível de ambos os governos, no próprio Vaticano.
Curiosamente, o anúncio foi feito no dia do 78º. Aniversário do Papa. Terá sido um presente? (E ainda por cima no mesmo dia em que seu time, o San Lorenzo, venceu o neozelandês Auckland City por 2 a 1 e se classificou para a final do Mundial de Clubes, sábado, diante do Real Madrid.)
Ainda falta muito a percorrer até o levantamento do embargo comercial dos EUA em relação à Cuba, porque isto tem de passar pelo Congresso norte-americano. Certamente isto não ocorrerá na próxima legislatura em Washington, com o Capitólio dominado por maiorias republicanas em ambas as casas. Aliás, vários republicanos já estão em chilique, dando ressonância a porta-vozes dos refugiados cubanos em Miami, que vêm lamentando a decisão. Entre as vozes descontentes destaca-se a de Mario Rubio, senador republicano pela Flórida desde 2011.
Mas a abertura política é evidente por si mesma, e terá mais repercussões neste campo e também no econômico já no futuro próximo.
Que ela beneficia Cuba também é algo evidente por si mesmo, a ponto de o anúncio poder ser considerado uma vitória para o governo de Havana. Haverá benefícios na entrada de dólares no país, em termos de reaproximações familiares, de livre trânsito, e de abertura de portas para a intensificação de contatos em todos os níveis com países da União Europeia, por exemplo.
Também é uma vitória para a solidariedade continental latino-americana. Em 2009 a Organização dos Estados Americanos revogou a decisão de 31 de janeiro de 1962 que suspendera Cuba do seu quadro de membros, tomada em Punta del Leste, por 14 votos a favor, 1 contra (Cuba) e 6 abstenções, entre estas a do Brasil. A decisão de 1962 na verdade suspendia o governo cubano, por ter-se declarado “marxista-leninista”, coisa considerada “incompatível” com o “sistema interamericano”.
Até hoje Cuba não manifestou vontade de retornar à OEA, tendo preferido manifestar desejos de aproximação com outras instâncias do continente, como a Unasul, a Aliança Bolivariana e o Mercosul.
O anúncio feito na quarta-feira também pode ser considerado uma vitória do Brasil, cujos governos vinham insistindo pela reaproximação com os dois países e pelo fim do embargo comercial imposto pelos Estados Unidos. O Brasil mantivera relações diplomáticas com Cuba desde 1906 até 1964, quando elas foram rompidas por Brasília depois do golpe que derrubou o presidente João Goulart. As relações só foram restabelecidas em 1986, depois do fim dos governos ditatoriais, ainda no governo do presidente José Sarney.
Deve-se assinalar, no entanto, que desde o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) o Brasil iniciara uma política de “distensão” em relação a Cuba. Até então, brasileiros que desejassem ir à ilha tinham de fazê-lo clandestinamente. Havia a possibilidade de ir pelo México, país que não rompera relações com Havana. Era arriscado, pois o caminho seria mais facilmente vigiado pela CIA e outras agências e serviços secretos do continente. O caminho mais seguro passava pelo longo deslocamento até algum país do então Leste Europeu (em geral a Tchecoslováquia), dali rumando para Cuba, e empreendendo o percurso contrário na volta. Muitas vezes fazia-se ainda uma escala intermediária noutro país, como França ou Itália.
Concomitantemente com a “distensão”, alguns brasileiros, entre eles o professor Antonio Candido, o escritor Antonio Callado e o músico Chico Buarque fizeram uma viagem ostensiva à Cuba, sem serem incomodados pela Polícia Federal na volta. Esta “distensão” de Geisel coincidia também com a aproximação ostensiva (já iniciada antes ao final do governo Médici) das ex-colônias portuguesas na África, que então se tornavam países independentes, e da maior distância em relação à política de alinhamento automático com Washington, que prevalecera nos anos anteriores da ditadura.
Nos últimos anos, as relações comerciais entre Brasil e Cuba se intensificaram, passando de 92 milhões de dólares em 2003 para 625 milhões em 2013. Esse movimento culminou com a construção de porto de Mariel, numa área de 400 quilômetros quadadrados, espécie de “Zona Franca” cubana, por empresas brasileiras, com financiamento do BNDES. Também há a participação de empresas do Brasil na reforma de aeroportos e outros portos cubanos, além de investimentos no setor açucareiro. Há ainda a participação dos médicos cubanos no programa brasileiro Mais Médicos, por meio repetindo o que Cuba faz em dezenas de outros países – como no combate ao Ebola, na África.
Tal aproximação foi intensamente criticada pela direita brasileira, inclusive na última eleição. Mas o anúncio dessa reaproximação entre os Estados Unidos e Cuba mostra o acerto da política externa brasileira, marcando mais um ponto vitorioso para ela, para desespero dos abutres, coveiros e goiabas que passaram o ano malhando o governo Dilma por causa disso, entre outras razões.
A aproximação beneficia também os Estados Unidos, reafirmando o poder de iniciativa do presidente Barack Obama, que andava meio combalido nos últimos tempos. Essa reafirmação é fundamental para que Obama possa levar adiante sua iniciativa de remover obstáculos à legalização do status dos imigrantes ilegais que forem elegíveis para esta condição, bem como seus familiares. Isso pode beneficiar os democratas nas próximas eleições presidenciais, pois os republicanos vêm tentando conquistar os votos dos eleitores “hispanoablantes”. E se os republicanos ganharem, a reaproximação e as mudanças na política de imigração irão por água abaixo.
Além disso, a política dos Estados Unidos em relação a Cuba estava cada vez mais isolada. Em 2008 a União Europeia suspendera as restrições diplomáticas à Cuba. A Assembleia Geral das Nações Unidas já adotara uma resolução, com apenas 4 votos contrários (de 195) e 1 abstenção, pedindo o fim do embargo econômico.
No momento, todos os países da América Latina mantêm relações com Cuba. E a comunidade latino-americana nos Estados Unidos é cada vez maior e mais ativa politicamente. O que comprova o dito: o que é bom para a América Latina é bom para os Estados Unidos.
18/12/2014
https://www.alainet.org/pt/articulo/166254
Del mismo autor
- 2020: marcas e cicatrizes 16/12/2020
- A espionagem de hoje segundo Edward Snowden 27/11/2019
- As novas tendências dos golpes na América Latina 18/11/2019
- Neoliberalismo é religião. E da pior espécie, a messiânica 24/10/2019
- A extrema-direita europeia afia as armas para a eleição do Parlamento da UE 20/05/2019
- 2018: um ano 'desbalançado' 21/12/2018
- A futura posição do Brasil na geopolítica deste e do outro mundo 13/12/2018
- Alertas, fiascos e significados dos 100 anos do fim da Primeira Grande Guerra 12/11/2018
- A extrema-direita europeia comemora duas vezes nesta semana: Bolsonaro e Merkel 31/10/2018
- Algumas sandices da eleição brasileira 05/10/2018