Entrevista - Moniz Bandeira

O declínio da hegemonia dos EUA e os desafios para um projeto de esquerda

03/11/2008
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A hegemonia dos EUA na América Latina se desvanece como decorrência do fracasso das ditaduras militares e das políticas neoliberais aplicadas por governos democráticos. O neoliberalismo desmoralizou-se, o Estado voltou assumir função de organização do sistema produtivo. Mas a esquerda segue sem uma plataforma. "Grande parte da esquerda, sem conhecer o pensamento de Marx, continua a pensar conforme os parâmetros gerados ao tempo de Stalin", avalia o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira.

 Ganhe quem ganhar as eleições desta terça-feira, o novo presidente dos EUA tomará posse em 20 de janeiro de 2009, em meio a uma crise mundial que alguns avaliam como igual, ou pior que a de 1929. Daquela emergiu a liderança transformadora de Franklin Roosevelt nos EUA; mas também houve Hitler, na Alemanha e ambos se viabilizaram através de uma Guerra Mundial.
 
A única certeza, desta vez, é que não será uma simples troca de guarda no trono do império. Os EUA constituem o epicentro de um colapso que marca o fim da supremacia dos mercados financeiros desregulados em todo o planeta. A implosão dessa engrenagem liberou massas de instabilidade descomunais. Dia a dia sua propagação avança em movimentos assimétricos, sem que se possa antever ainda, com toda clareza, qual será a real extensão dos abalos econômicos, bem como os desdobramentos políticos que ela trará.
 
Um marcador inaugural do ciclo que agora se fecha poderia ser 11 de setembro de 1973.
 
O local, o Chile, de Salvador Allende. A parteira da história: as baionetas, metralhadoras e caças aéreos mobilizados para atacar La Moneda, o palácio presidencial onde o médico socialista Salvador Allende morreria. Pelas mãos da Junta militar liderada pelo General Augusto Pinochet, o neoliberalismo radical de Hayek e Friedman deixaria os laboratórios de economia de Chicago para voltar à história. O ensaio chileno antecederia em quase uma década as políticas consagradas pelo Consenso de Washington que agora desabam ruidosamente.
 
Depois de um ciclo que começou em sangue, e termina agora em desastre econômico planetário, qual será o passo seguinte da história? Que lições o passado oferece ao futuro para evitar a repetição de erros, ilusões e tragédias? Em que medida a crise amplia ou restringe o espaço de autonomia política dos povos latino-americanos? Até que ponto ela enfraquece a capacidade de intervenção norte-americana, inviabilizando novos golpes e ações violentas como a que derrubou Allende? Quais os trunfos, e limites, para um avanço das agendas progressistas na região?
 
Para responder a essas e outras urgências, Carta Maior entrevistou o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira. Professor titular de História da Política Exterior do Brasil na Universidade de Brasília (UnB), hoje aposentado, Moniz Bandeira é autor de mais de 20 livros que o credenciam como uma voz obrigatória nesse momento. O título de sua obra mais recente, lançada simultaneamente no Brasil e no Chile, sintetiza essa pertinência: “Fórmula para o caos – A derrubada de Salvador Allende (1970-1973)”.
 
Da Alemanha onde mora há treze anos, tendo sido professor visitante nas Universidades de Heidelberg e Colônia, Moniz Bandeira respondeu por email às perguntas de Carta Maior. Suas palavras estão marcadas pela ênfase nas diferenças entre a América Latina de Allende e a atual de Lula, Chávez e Morales. Ainda que anteveja um declínio do intervencionismo norte-americano, por conta da crise em marcha, o cientista lembra que a CIA não deixou de operar na região. Ele não vê risco de a crise enfraquecer as lideranças regionais, transformando-as potencialmente em novos “Allendes”, mas insiste que não há espaço para erros de avaliação estratégica. A natureza e a extensão das transformações regionais, no seu entender, obedece a limites impostos pelo grau de desenvolvimento do capitalismo na realidade latino-americana.
 
A seguir entrevista de Moniz Bandeira à Carta Maior:

Carta Maior - O título do seu livro mais recente, “Fórmula para o Caos – A derrubada de Salvador Allende, 1970 1973”, sinaliza desde logo a interferência de forças desestabilizadoras na trajetória das lutas sociais na América Latina. Mas sua análise tampouco hesita em apontar equívocos nos projetos abraçados pelos partidos e organizações progressistas da região. Poderia ter sido diferente no Chile, se a esquerda tivesse conduzido o processo com maior flexibilidade política?
 

Moniz Bandeira – No prefácio à sua obra "Crítica à Economia Política" (Zur Kritik der Politschen Ökonomie), Karl Marx sustentou, como conclusão de suas pesquisas, que uma formação social nunca desmorona sem que as forças produtivas dentro dela estejam suficientemente desenvolvidas, e que as novas relações de produção superiores jamais aparecem, no lugar, antes de que as condições materiais de sua existência sejam incubadas nas entranhas da própria sociedade antiga. Este não era o caso do Chile, um país economicamente muito mais atrasado que o Brasil, inserido no mercado mundial capitalista, do qual pesadamente dependia para suas exportações de cobre e até mesmo para a importação de alimentos. E Marx jamais concebeu o socialismo como via de desenvolvimento ou modelo alternativo para o capitalismo, senão como conseqüência da expansão das forças produtivas do capitalismo.

 O próprio Lenin acentuou, por volta de 1905, que o proletariado russo sofria mais por causa do atraso do capitalismo do que pelo seu desenvolvimento. E a Rússia possuía um parque industrial, com 4 milhões de operários, quando correu a revolução de 1917. Não obstante, o presidente Salvador Allende tentou mudar o modo de produção no Chile, isto é, implantar o socialismo em um país imensamente mais atrasado que a Rússia em 1917, sem que houvesse condições econômicas e sociais, bem como condições externas, alinhando-se com Cuba e a União Soviética, dentro do contexto da Guerra Fria. No meu livro "Fórmula para o Caos" analiso todos esses problemas, tanto do ponto de vista teórico quanto empírico, com base nos documentos da época.
 CM - Como o senhor avalia esse mesma relação no enfrentamento vivido hoje por governantes progressistas fortemente acossados por oposições conservadoras?
 
MB - Embora fale em “socialismo do século XXI”, “revolução bolivariana”, conceitos que nunca definiu nem explicou do que se trata, Chávez não está tentando mudar o modo de produção capitalista na Venezuela, de modo radical como o fez Salvador Allende, que tinha um programa elaborado e sobre o qual a Unidade Popular se constituíra. Chávez apenas estatizou algumas empresas, mediante pagamento de indenizações, o que também fez Morales, na Bolívia. Este não é o caso da Argentina, onde a presidente Cristina Kirchner não tomou qualquer medida radical, atingindo empresas de outros países, ainda que indenizando-as. O que ela busca, com uma política nacionalista e em concertação com o Brasil, é restaurar o parque industrial destruído pelas políticas neoliberais da ditadura militar e do governo do presidente Carlos Meném. E a situação internacional é outra.
 
Naturalmente Chávez e Morales estão a enfrentar sérias dificuldades internas e externas. Mantém-se no governo porque os Estados Unidos cada vez mais perdem influência na região, sobretudo depois do fracasso das ditaduras militares e das políticas neoliberais dos anos 1990, e também porque no Brasil o presidente que está governo é Lula. A posição do Brasil, inclusive de suas Forças Armadas, mudou muito desde o fim do regime militar. E, justiça seja feita, o presidente Fernando Henrique Cardoso também se opôs ao golpe empresarial militar que os Estados Unidos encorajaram contra o governo de Chávez, em abril de 2002.
 
“O poder intervencionista dos Estados Unidos na América Latina já se reduziu e tende a reduzir-se cada vez mais, em virtude de sua crise financeira. Isto não significa, porém, que a CIA deixe de operar na região.”
 

CM - Em que medida o componente novo da integração sul-americana (ainda que engatinhe em fraldas) amplia a margem de manobra dos governantes hoje, em relação ao isolamento vivido por Allende nos anos 70? O golpe contra Allende seria viável nas condições atuais da geopolítica sul-americana?

 MB – A integração sul-americana não engatinha em fraldas. Toda integração é demorada e se processa em meio a contradições e divergência, como, por exemplo, ainda existem dentro da União Européia. Mas o golpe contra Allende seria viável, mesmo atualmente, porque o esforço de socialização, com a estatização acelerada de empresas e a ocupação de terras como aconteceu no Chile, um país relativamente atrasado, o que ainda é, desorganizaria todo o aparelho produtivo e ele não teria condições de sustentar-se no governo. Porém, um golpe militar, com a implantação de uma ditadura, como aconteceu em 1973, é que decerto não ocorreria, dados os acertos internacionais, que instituíram a Cláusula Democrática, na Carta da OEA, aprovada em 2001.
 
Esta cláusula foi argüida pelo Brasil para impedir o reconhecimento do golpe contra Chávez, em 2002, isolando os Estados Unidos, que terminaram capitulando. Quanto a Chávez e Morales, ao contrário de Salvador Allende e da Unidade Popular, é que eles não têm nenhum projeto definido, visando à mudança do modo de produção, e ainda assim as iniciativas que tomam defrontam-se com enorme resistência interna, tanto na Venezuela quanto na Bolívia. Ambos os países estão politicamente fraturados e não se pode dizer que a situação, sobretudo na Bolívia, seja estável.
 

CM - Alguns analistas avaliam que a formação de um colar de governos progressistas na América Latina não resultaria especialmente de avanços na organização política da região. Antes, refletiria a incorporação de uma “gordura de liquidez externa” que deu margem à acomodação dos conflitos de classe. Em tese, algo com o que Allende, por exemplo, não pode contar. O senhor vê consistência nessa avaliação?

 MB - Não se pode comparar, em nenhuma hipótese, a experiência do Chile, com o que atualmente ocorre na América do Sul, onde alguns líderes de esquerda, como na Venezuela e na Bolívia, assumiram o governo. A Guerra Fria, de caráter ideológico, acabou com o desmoronamento da União Soviética e de todo o Bloco Socialista. A conjuntura histórica é muito diversa e a hegemonia dos Estados Unidos se desvanece como decorrência, em larga medida, do fracasso das ditaduras militares e das políticas neoliberais do Consenso de Washington, aplicadas por governos democráticos.
 
O declínio dessa hegemonia foi acentuado pelo colapso financeiro de Wall Street. A eleição dos governos chamados progressistas resulta de vários e complexos fatores, tanto domésticos quanto internacionais, e reflete o fato de que os Estados Unidos não mais são uma estrela de primeira grandeza, como o eram nos anos 1950 e 1960.
 
“O bombardeio midiático continua. As agências de notícias e as redes de televisão compõem o aparelho ideológico de que os Estados Unidos se valem para manter seu domínio na América Latina.”
 
CM - Em que medida a mudança no cenário econômico mundial, poderá implodir o ensaio de “estabilidade” progressista na geopolítica da região: assim como os conservadores de Washington dizem “agora somos todos keynesianos”, o destino dos governantes progressistas na América do Sul será dizer “agora somos todos Allendes”?
 

MB – A explosão da bolha financeira estava prevista havia muito tempo. A alta do preço do petróleo, bem como a valorização do euro evidenciavam a profunda crise que solapa a economia americana. No prefácio à segunda edição de meu livro "Formação do Império Americano", lançada em meados de 2006, escrevi que “a bolha financeira dos Estados Unidos, assim inflada, vai estourar, mais dia menos dia”. De fato, em 2007, explodiu, quando, no 1º semestre de 2007, grandes corretoras, como Merrill Lynch e Lehman Brothers, suspenderam a venda de colaterais, e em julho do mesmo ano, bancos europeus registraram prejuízos com contratos baseados em hipotecas sub-prime. Foi a inadimplência de devedores hipotecários que detonou o colapso financeiro, atingindo empréstimos de empresas, cartões de crédito, etc.

 A atual valorização se deve ao fato de que as corporações multinacionais estão a vender suas posições nas bolsas de valores, seus ativos no exterior, a fim de remeter dólares para cobrir os buracos nas suas matrizes, seja nos Estados Unidos ou na Europa. A partir de outubro, parte substancial dos recursos, que entrou nos Estados Unidos, proveio do socorro por fundos soberanos da Ásia e do Oriente Médio, que adquirem títulos conversíveis em ações de bancos americanos, como o Citigroup cujas ações ordinárias foram compradas pelo fundo soberano de Abu Dhabi por US$ 7,5 bilhões. Também foram incrementadas as operações de resgate por parte dos bancos centrais para evitar que os bancos pusessem à venda ativos podres, o que precipitaria a débâcle.
 
Se todos os conservadores de Washington dizem “agora somos todos keynesianos, i. e., passaram a reconhecer que o Estado deve ser a instância superior de comando e organização do sistema produtivo, os governantes, considerados progressistas, na América do Sul não podem dizer “agora somos todos Allendes”. Allende viveu sob o impacto da Revolução Cubana e imaginou que podia implantar o socialismo no Chile, uma país economicamente e dependente, e contar com o apoio da União Soviética, sem saber que ela já estava a enfrentar severa crise econômica.
 
Na verdade, a União Soviética buscava um entendimento com o Ocidente, consumado com o Tratado Quatripartite, que resolveu a questão de Berlim e das duas Alemanhas. A época atual é outra, bem distinta da existente nos anos 1960 e 1970. Allende foi um grande homem, um idealista, que tinha um projeto bem definido. Mas é o passado de uma ilusão. E tanto Evo Morales quanto Hugo Chávez surgiram em outras circunstâncias históricas e exprimem as idiossincrasias sociais e políticas de seus respectivos países, que não são as mesmas do Chile. E, de qualquer forma, nenhum deles tentou mudar completamente o modo de produção, o que é impossível em paises atrasados, isoladamente, pois estão inseridos dentro de uma economia mundial de mercado, regida pelas leis do capitalismo. O capitalismo foi o único modo de produção que teve capacidade de expandir-se mundialmente e abrange não apenas as potências industriais, mas também todos os países periféricos, em desenvolvimento ou atrasados. É necessário que a esquerda volte a ler Marx, Rosa Luxemburgo e abandone os estereótipos gerados pelo stalinismo.
 
CM - Há risco de esfarelamento das plataformas de esquerda com retomada da hegemonia conservadora na região?
 
MB – O neoliberalismo desmoralizou-se, o Estado voltou assumir função de comando e organização do sistema produtivo. A crise financeira que teve seu epicentro em Wall Street renovou o interesses pelo pensamento de Marx, mas não há risco de esfarelamento das plataformas de esquerda, simplesmente porque elas não existem.
 
O pensamento de Marx não pode constituir, como ressaltou o grande historiador Eric Hobsbawm, uma inspiração política para a esquerda, até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, e sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista, sua instabilidade central que se manifesta por meio de crises econômicas, com dimensões políticas e sociais. A superação da sociedade capitalista por outra forma de sociedade, prevista por Marx, baseou-se não na esperança ou na vontade, mas na análise do desenvolvimento histórico, sobretudo na era capitalista.
 Marx, porém, não definiu como seria esta sociedade e, como disse Hobsbawm, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em que as economias “socialistas” foram organizadas sob o chamado “socialismo real” que existiu na União Soviética e nos demais países do Leste Europeu. Entretanto, grande parte da esquerda, sem conhecer realmente o pensamento de Marx, continua ainda a pensar conforme os parâmetros gerados ao tempo de Stalin que, em 1928, acabou a NEP e pretendeu instituir o socialismo dentro das fronteiras nacionais da União Soviética, tratando de implementar o Plano Qüinqüenal (1928-1933), por meio de radical coletivização das terras e brutal aceleramento do processo de industrialização.
 
Assim, através da restrição do consumo a um mínimo intolerável, o Estado soviético apropriou-se do excedente econômico, com o qual se dispôs a criar e organizar usinas, centrais de energia elétrica, indústrias de máquinas e equipamentos, assim como de outros bens de capital. Esta acumulação primitiva de capital, em que o esforço de socialização se converteu não mais em conseqüência e sim em via de desenvolvimento, só se tornou viável mediante a socialização do terror. A partir daí esse processo foi denominado de “construção do socialismo” e o Estado assumiu o controle de todos os meios de produção - outro tipo de capitalismo de Estado, que não era novo na Rússia, porquanto, lá, o capitalismo desde sempre existira graças somente ao poder do Estado.
 CM - Quais seriam os trunfos acumulados pelas forças populares hoje que não se encontravam disponíveis nos anos 70 de Allende?
 
MB – A época em que Salvador Allende tentou implantar o socialismo no Chile, com “vino y empanadas”, é muito diversa da atual. O contexto internacional é completamente diverso do existente nos anos 1970. É preciso não esquecer que em apenas alguns meses de 1989, os regimes comunistas na Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Bulgária e Romênia desmoronaram, como pedras de um dominó, em rápida e surpreendente sucessão. Os Estados do Báltico (Lituânia, Letônia e Estónia), que integravam a União Soviética, declararam sua independência.
 
O Muro de Berlim, monumento da Guerra Fria, do conflito Leste-Oeste mundial, esbarrondou-se, o que possibilitou a reunificação da Alemanha, em 3 de outubro de 1990. A confrontação de poder bipolar, marcada pelo antagonismo ideológico, político e militar, desvaneceu-se, e a própria União Soviética, em 1991, desintegrou-se, confirmando a previsão feita em 1935 por Leon Trotsky, segundo a qual, se não houvesse uma revolução política e não fosse restabelecida a democracia, com plena liberdade dos sindicatos e dos partidos políticos, a restauração da propriedade privada dos meios de produção tornar-se-ia inevitável e a nova classe possuidora, para as quais as condições estavam criadas, encontraria seus servidores entre os burocratas, técnicos e dirigentes, em geral, do Partido Comunista.
 
A expansão do capitalismo, para a qual as fronteiras do Leste Europeu se reabriram, voltará ao ponto em que fora atalhada, prematuramente, pela tentativa de implantação do socialismo em uma Rússia atrasada. Nela, a renda pública per capita era oito a dez vezes inferior à dos Estados Unidos, com baixa produtividade do trabalho, devido ao pequeno peso específico da indústria na sua economia.
 
CM - O senhor acredita que a crise financeira, que tem requerido recursos e energias equivalentes a uma demanda de guerra, enfraquecerá o poder intervencionista dos Estados Unidos na AL nos próximos anos? Não era essa a impressão até setembro, pelo menos no caso da Bolívia, quando o presidente Evo Morales expulsou o embaixador norte-americano, Phillip Goldberg, acusando-o de articular as forças separatista de Santa Cruz de La Sierra.
 
MB – O poder intervencionista dos Estados Unidos na América Latina já se reduziu e tende a reduzir-se cada vez mais, em virtude de sua crise financeira. Isto não significa, porém, que a CIA deixe de operar na região ou o Pentágono retire em pouco tempo as bases que possui no Peru, Colômbia e Guiana. O que ocorreu na Bolívia, que levou o presidente Evo Morales a expulsar o embaixador Phillip Goldberg, demonstra claramente que o poder de intervenção dos Estados Unidos está bastante enfraquecido.
 
 CM - Que componentes da “fórmula para o caos”, acionados contra Allende em 1973, continuariam presentes na movimentação oposicionista no continente? O bombardeio midiático seria um deles?
 
MB – O bombardeio midiático continua. As agências de notícias e as redes de televisão compõem o aparelho ideológico de que os Estados Unidos se valem para manter seu domínio na América Latina e demonizar todos os que a ele se opõe. E é preciso ressaltar que também a subsecretaria de Diplomacia Pública, do Departamento de Estado, está cooptando professores, jornalistas etc. para que escrevam artigos e tratem de desqualificar todos os que criticam os Estados Unidos, de modo a conter o crescente anti-americanismo que se manifesta na maior parte dos países.
 
“O bombardeio midiático continua. As agências de notícias e as redes de televisão compõem o aparelho ideológico de que os Estados Unidos se valem para manter seu domínio na América Latina e demonizar todos os que a ele se opõe.”
 
CM - Como intelectual residente na Europa há tantos anos, que avaliação o senhor faz do impacto político da crise na dinâmica do continente?
 MB – Este assunto é muito difícil de avaliar, pois a crise apenas começou e terá desdobramentos maiores, a partir dos Estados Unidos. Porém, a experiência totalitária da União Soviética marcou profundamente o espírito dos europeus e comprometeu toda a idéia de socialismo. Daí que a região, onde a direita é mais forte, onde os Estados Unidos contam com maior prestígio, é justamente o Leste Europeu, cujos povos - poloneses, tchecos, búlgaros, húngaros etc. - se ressentem até hoje do brutal domínio da União Soviética e dos partidos comunistas que implantaram, com o apoio do Exército Vermelho, as chamadas democracias populares, que não eram nem democracias nem populares.
 
CM - O partido da Esquerda alemão tem possibilidades de reaglutinar a sociedade com base num novo projeto mudancista?
 
MB – Não sei o que se pode chamar de um projeto mudancista, mas o fato é que o Partido Social-Democrata descaracterizou-se na Alemanha. E este fenômeno reflete as mudanças que ocorreram na sociedade, sobretudo na classe trabalhadora, e o enfraquecimento dos sindicatos, como força política. Isto aconteceu também na Inglaterra, França e em outros países da Europa. E a Linkepartei, o Partido da Esquerda, não tem, por enquanto, a menor possibilidade de galvanizar a sociedade para qualquer projeto, em virtude, sobretudo, do trauma provocado pelo regime existente na chamada República Democrática Alemã, cuja população lutou para integrar-se na República Federal da Alemanha, reunificando o país, em 1990. O percentual da Linkepartei está em torno de 12% a 13%, porque dispõe de maior apoio no Leste. Mas no que era a Alemanha Ocidental seu suporte é muito reduzido. Creio que está entre 4% e 5%, embora este possa a crescer, dependendo da evolução da crise. Mas a longo prazo.
 “É bom recordar que, segundo Marx e Engels, quando o Estado intervém na economia, não debilita, antes fortalece a propriedade privada, o capitalismo.”
 CM - O keynesianismo de Brown e Sarkozy deve ser levados a sério?
 
MB – As medidas consideradas keynesianas de Brown e Sarkozy foram determinadas pela necessidade, em face da crise financeira. É bom recordar que, segundo Marx e Engels, quando o Estado intervém na economia, não debilita, antes fortalece a propriedade privada, o capitalismo. E os velhos esquemas ideológicos não mais funcionam na Europa, porque não se renovaram, não acompanharam as mudanças ocorridas na sociedade. Grande parte da esquerda ainda imagina um proletariado que não mais existe na realidade, que não é mais o mesmo que nos tempos de Marx ou no início do século XX.
 
Fonte: Agencia Carta Maior
 
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