Liberdade incruenta
06/07/2008
- Opinión
Ingrid Betancourt talvez não acredite ainda no momento que está vivendo. Talvez lhe pareça mentira que ficou para trás o pesadelo da selva que foi sua morada por mais de seis anos. Talvez ache que a qualquer momento algum de seus carcereiros a acordará no meio da madrugada para que mude de lugar, a fim de despistar os que incessantemente a procuravam e também aos outros reféns.
Em vez disso seu sono será velado pela mãe que há seis anos chora, reza e luta por sua libertação. Pelo marido, que percorreu o mundo em campanha por seu resgate. Pelos filhos, que atravessaram o oceano para beijá-la. Seus olhos não mais pousarão sobre a paisagem de sempre: a selva inóspita, as precárias redes armadas em frágeis e vulneráveis acampamentos. Seu corpo não sentirá o cansaço, a fadiga, a tristeza de estar longe de tudo e de todos que ama. Pelo contrário, estará cercada pelos rostos amados e sorridentes daqueles que a esperaram durante seis longos anos.
Para Ingrid, assim como para 14 outros reféns, terminou o longo e terrível pesadelo que foram obrigados a viver seqüestrados pelas FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em meio à selva colombiana. Há algum tempo dando sinais de desgoverno e fragilidade crescentes, havendo perdido um de seus mais proeminentes líderes, Manuel Marulanda, o “Tirofijo”, as FARC finalmente abriram um flanco. E por este flanco entraram os militares colombianos resgatando Ingrid e os outros reféns. Outros tantos – mais de 700 – continuam em poder dos guerrilheiros.
O mundo se alegra com a libertação da jovem e valente senadora que resistiu às penas do seqüestro, apesar da saúde combalida e de todo o sofrimento a que foi submetida. Porém, por trás da evidência positiva dos fatos, há um pano de fundo que nos leva a refletir e enxergar mais longe e mais fundo.
Esta é uma vitória diferente. Acontece de forma pacífica e sem derramamento de sangue. A operação idealizada e levada magistralmente a cabo pelos militares colombianos não realizou violentas e cruéis retaliações sobre os vencidos, como seria de se esperar. As vidas dos guerrilheiros capturados não foram exterminadas, e sim poupadas, com a exigência da libertação dos outros reféns como reciprocidade ao gesto de paz realizado pelo governo de Uribe.
Não sejamos ingênuos. Não se trata de uma luta entre anjos, mas sim entre homens experimentados e treinados para lutar, morrer e sobretudo matar. Por isso mesmo provoca tal e tão bendito espanto o fato de um delicado resgate, que já havia sido tentado inúmeras vezes, ter tido semelhante desfecho. Em palavras do próprio Ministro da Defesa da Colômbia, a possibilidade de negociar foi realmente oferecida aos guerrilheiros das FARC. “Se querem negociar, oferecemos a eles uma paz digna.”
É esta a verdadeira conquista a celebrar. Para além de Ingrid e da mais que legítima alegria de sua família, amigos e povo. Para além dos que amam os outros reféns com ela resgatados. Para além da refinada e bem sucedida estratégia do governo de Alvaro Uribe. A verdadeira razão para alegria e júbilo radica em que se trata, claramente, de uma vitória integral da paz e da vida.
A violência só gera violência. E a dor por que passaram Ingrid, seus companheiros, suas famílias e amigos não justifica usar dos mesmos recursos para humilhar e punir cruelmente os culpados por seu seqüestro. A justiça não pode ser simétrica e retributiva. Mas só chega à plenitude quando se torna restaurativa, incluindo em seu regenerador e purificador caudal vítimas e agressores, seqüestrados e seqüestradores.
A libertação de Ingrid Betancourt e seus companheiros não foi uma vitória do governo de Alvaro Uribe. Tampouco de seu Exército e suas tropas de elite. Ou da força diplomática do presidente Sarkozy. Foi uma vitória da paz. E, por isso, uma vitória da vida; uma vitória do gênero humano.
- Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (www.users.rdc.puc-rio.br/agape)
Em vez disso seu sono será velado pela mãe que há seis anos chora, reza e luta por sua libertação. Pelo marido, que percorreu o mundo em campanha por seu resgate. Pelos filhos, que atravessaram o oceano para beijá-la. Seus olhos não mais pousarão sobre a paisagem de sempre: a selva inóspita, as precárias redes armadas em frágeis e vulneráveis acampamentos. Seu corpo não sentirá o cansaço, a fadiga, a tristeza de estar longe de tudo e de todos que ama. Pelo contrário, estará cercada pelos rostos amados e sorridentes daqueles que a esperaram durante seis longos anos.
Para Ingrid, assim como para 14 outros reféns, terminou o longo e terrível pesadelo que foram obrigados a viver seqüestrados pelas FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em meio à selva colombiana. Há algum tempo dando sinais de desgoverno e fragilidade crescentes, havendo perdido um de seus mais proeminentes líderes, Manuel Marulanda, o “Tirofijo”, as FARC finalmente abriram um flanco. E por este flanco entraram os militares colombianos resgatando Ingrid e os outros reféns. Outros tantos – mais de 700 – continuam em poder dos guerrilheiros.
O mundo se alegra com a libertação da jovem e valente senadora que resistiu às penas do seqüestro, apesar da saúde combalida e de todo o sofrimento a que foi submetida. Porém, por trás da evidência positiva dos fatos, há um pano de fundo que nos leva a refletir e enxergar mais longe e mais fundo.
Esta é uma vitória diferente. Acontece de forma pacífica e sem derramamento de sangue. A operação idealizada e levada magistralmente a cabo pelos militares colombianos não realizou violentas e cruéis retaliações sobre os vencidos, como seria de se esperar. As vidas dos guerrilheiros capturados não foram exterminadas, e sim poupadas, com a exigência da libertação dos outros reféns como reciprocidade ao gesto de paz realizado pelo governo de Uribe.
Não sejamos ingênuos. Não se trata de uma luta entre anjos, mas sim entre homens experimentados e treinados para lutar, morrer e sobretudo matar. Por isso mesmo provoca tal e tão bendito espanto o fato de um delicado resgate, que já havia sido tentado inúmeras vezes, ter tido semelhante desfecho. Em palavras do próprio Ministro da Defesa da Colômbia, a possibilidade de negociar foi realmente oferecida aos guerrilheiros das FARC. “Se querem negociar, oferecemos a eles uma paz digna.”
É esta a verdadeira conquista a celebrar. Para além de Ingrid e da mais que legítima alegria de sua família, amigos e povo. Para além dos que amam os outros reféns com ela resgatados. Para além da refinada e bem sucedida estratégia do governo de Alvaro Uribe. A verdadeira razão para alegria e júbilo radica em que se trata, claramente, de uma vitória integral da paz e da vida.
A violência só gera violência. E a dor por que passaram Ingrid, seus companheiros, suas famílias e amigos não justifica usar dos mesmos recursos para humilhar e punir cruelmente os culpados por seu seqüestro. A justiça não pode ser simétrica e retributiva. Mas só chega à plenitude quando se torna restaurativa, incluindo em seu regenerador e purificador caudal vítimas e agressores, seqüestrados e seqüestradores.
A libertação de Ingrid Betancourt e seus companheiros não foi uma vitória do governo de Alvaro Uribe. Tampouco de seu Exército e suas tropas de elite. Ou da força diplomática do presidente Sarkozy. Foi uma vitória da paz. E, por isso, uma vitória da vida; uma vitória do gênero humano.
- Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (www.users.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/128560
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