A tropa da elite não é invencível
08/11/2007
- Opinión
“Pátria, minha patriazinha, tadinha. Lindo e triste Brasil”. Esta canção do Vinícius bem que se enquadra neste triste país, que, em 2003, perdeu a chance de fazer uma viragem. Não por nossa culpa. Votamos por mudança. Mas por medo daqueles que assumiram o poder e decidiram não tocar nas feridas. Apenas um curativo onde o sangue está escorrendo. A chaga seguindo intacta. O bonde da história perdido. Pequenas reformas que não levam à transformação.
Agora, nestes dias, duas temáticas têm invadido a patriazinha. Uma delas diz respeito ao filme “tropa de elite” e a outra, às declarações do prefeito do Rio falando sobre a necessidade da legalização do aborto, porque, segundo ele, as favelas são fábricas de marginais. Na verdade, os dois temas são faces de uma mesma moeda. A incapacidade da elite e da pequena burguesia de compreender o mundo real, das maiorias, onde a vida acontece na sua crueza. Vivendo em palácios, condomínios fechados ou mesmo em prédios de classe média, essa gente muitas vezes não tem a menor noção do que seja a vida mesma. A vida dos que nada têm, dos que são bombardeados diuturnamente pelas fábricas de mais valia ideológica, como as televisões e a indústria cultural.
A vida no sistema capitalista é pura dureza, mano. Nele, para que um viva no condomínio fechado, outro tem de morrer. Para que um tenha segurança, outro tem de morrer, assim por diante. Não há essa história de direitos iguais ou qualquer outra pataquada de igualdade de oportunidades. Os garotos negros, de favela ou não, ainda continuam sendo visto como pessoas “suspeitas”. As meninas negras seguem não tendo “boa aparência” para uma infinidade de posições no mundo do trabalho e as mulheres em geral ainda ganham menos que os homens fazendo a mesma coisa que eles. É a selva humana, onde nenhum tipo de solidariedade parece existir.
É por isso que me enoja o debate moral. Na patriazinha morrem, por ano, milhares de mulheres, por conta de seqüelas de abortos feitos por curiosas. E, ao fim, estas mulheres, já mortas, ainda são vistas como “assassinas de bebês”. Fico pensando se essa gente que faz o debate moral acredita mesmo que uma mulher acorde de manhã, com um feto no útero, e diga, sorrindo para o espelho. “Ai, que lindo dia, acho que vou fazer um aborto!” Não creio. Conheço muitas mulheres que fizeram aborto e todos os dias se flagelam de culpa. Mulheres que não tinham outra saída, que não tinham coragem, que não eram fortes o suficiente para agüentar tudo o que vem de se ter uma criança, sozinha, sem grana, sem amparo.
Quem de nós pode apontar o dedo para uma destas criaturas a chamá-las de assassinas? Quem de nós sabe das dores que essas mulheres carregam? Quem pode saber da quase incapacidade de enfrentar o mundo sozinhas, que dirá com um filho? Eu me recuso ao debate moral. Não conheço ninguém que se vanglorie de ter feito aborto. Só conheço profundas dores e me reservo ao direito de amparar essas mulheres em um longo abraço, para que não sofram mais do já padecem. Alguém pode até dizer que mulheres há que não se importam, que fazem aborto como quem come um mamão. Beleza. Pode ter. O ser humano é sempre surpreendente. Mas, com certeza são exceções, raríssimas.
De resto, se formos analisar as estatísticas, as “mulheres da favela”, como disse o Sérgio Cabral, não são as que mais fazem aborto. Não são mesmo. As mulheres empobrecidas, que vivem em comunidades empobrecidas, elas são fortes demais, e por isso não temem trazer à vida seus rebentos. Elas enfrentam com eles a fome, o medo, a impossibilidade. Elas rompem a vida, carregando seus filhos, com o poder de suas dores e de seus fardos pesados. Elas são as que fazem a raça humana andar. A “fábrica de marginais” não vem delas. A fábrica de marginais fica nos gabinetes dos que têm o poder fetichizado e que impedem que vida brote na sua inteireza. Dos que se apropriam das riquezas, dos que acumulam bens, dos que se adonam das terras, dos que escravizam gentes. A fábrica de marginais é de propriedade de uma elite predadora e insaciável. Eles são a tropa assustadora e renitente.
Enfim, não há ninguém em sã consciência que seja favorável ao aborto. O que se quer é que as pessoas pensem e possam compreender que, às vezes, neste mundo cão que é o mundo capitalista, pessoas há que tropeçam, que caem, que não são fortes o suficiente. E que se há alguma culpa aí, não é delas. A tropa da elite é a que manda. Ela é a assassina. Mas não é invencível como faz parecer o festejado filme. Existem momentos lindos em que as gentes se juntam e mudam tudo! E esses momentos acontecem. Sempre, inexoravelmente... sempre. Assim é!
- Elaine Tavares – jornalista no Ola/UFSC. O OLA é um projeto de observação e análise das lutas populares na América Latina. http://www.ola.cse.ufsc.br
Agora, nestes dias, duas temáticas têm invadido a patriazinha. Uma delas diz respeito ao filme “tropa de elite” e a outra, às declarações do prefeito do Rio falando sobre a necessidade da legalização do aborto, porque, segundo ele, as favelas são fábricas de marginais. Na verdade, os dois temas são faces de uma mesma moeda. A incapacidade da elite e da pequena burguesia de compreender o mundo real, das maiorias, onde a vida acontece na sua crueza. Vivendo em palácios, condomínios fechados ou mesmo em prédios de classe média, essa gente muitas vezes não tem a menor noção do que seja a vida mesma. A vida dos que nada têm, dos que são bombardeados diuturnamente pelas fábricas de mais valia ideológica, como as televisões e a indústria cultural.
A vida no sistema capitalista é pura dureza, mano. Nele, para que um viva no condomínio fechado, outro tem de morrer. Para que um tenha segurança, outro tem de morrer, assim por diante. Não há essa história de direitos iguais ou qualquer outra pataquada de igualdade de oportunidades. Os garotos negros, de favela ou não, ainda continuam sendo visto como pessoas “suspeitas”. As meninas negras seguem não tendo “boa aparência” para uma infinidade de posições no mundo do trabalho e as mulheres em geral ainda ganham menos que os homens fazendo a mesma coisa que eles. É a selva humana, onde nenhum tipo de solidariedade parece existir.
É por isso que me enoja o debate moral. Na patriazinha morrem, por ano, milhares de mulheres, por conta de seqüelas de abortos feitos por curiosas. E, ao fim, estas mulheres, já mortas, ainda são vistas como “assassinas de bebês”. Fico pensando se essa gente que faz o debate moral acredita mesmo que uma mulher acorde de manhã, com um feto no útero, e diga, sorrindo para o espelho. “Ai, que lindo dia, acho que vou fazer um aborto!” Não creio. Conheço muitas mulheres que fizeram aborto e todos os dias se flagelam de culpa. Mulheres que não tinham outra saída, que não tinham coragem, que não eram fortes o suficiente para agüentar tudo o que vem de se ter uma criança, sozinha, sem grana, sem amparo.
Quem de nós pode apontar o dedo para uma destas criaturas a chamá-las de assassinas? Quem de nós sabe das dores que essas mulheres carregam? Quem pode saber da quase incapacidade de enfrentar o mundo sozinhas, que dirá com um filho? Eu me recuso ao debate moral. Não conheço ninguém que se vanglorie de ter feito aborto. Só conheço profundas dores e me reservo ao direito de amparar essas mulheres em um longo abraço, para que não sofram mais do já padecem. Alguém pode até dizer que mulheres há que não se importam, que fazem aborto como quem come um mamão. Beleza. Pode ter. O ser humano é sempre surpreendente. Mas, com certeza são exceções, raríssimas.
De resto, se formos analisar as estatísticas, as “mulheres da favela”, como disse o Sérgio Cabral, não são as que mais fazem aborto. Não são mesmo. As mulheres empobrecidas, que vivem em comunidades empobrecidas, elas são fortes demais, e por isso não temem trazer à vida seus rebentos. Elas enfrentam com eles a fome, o medo, a impossibilidade. Elas rompem a vida, carregando seus filhos, com o poder de suas dores e de seus fardos pesados. Elas são as que fazem a raça humana andar. A “fábrica de marginais” não vem delas. A fábrica de marginais fica nos gabinetes dos que têm o poder fetichizado e que impedem que vida brote na sua inteireza. Dos que se apropriam das riquezas, dos que acumulam bens, dos que se adonam das terras, dos que escravizam gentes. A fábrica de marginais é de propriedade de uma elite predadora e insaciável. Eles são a tropa assustadora e renitente.
Enfim, não há ninguém em sã consciência que seja favorável ao aborto. O que se quer é que as pessoas pensem e possam compreender que, às vezes, neste mundo cão que é o mundo capitalista, pessoas há que tropeçam, que caem, que não são fortes o suficiente. E que se há alguma culpa aí, não é delas. A tropa da elite é a que manda. Ela é a assassina. Mas não é invencível como faz parecer o festejado filme. Existem momentos lindos em que as gentes se juntam e mudam tudo! E esses momentos acontecem. Sempre, inexoravelmente... sempre. Assim é!
- Elaine Tavares – jornalista no Ola/UFSC. O OLA é um projeto de observação e análise das lutas populares na América Latina. http://www.ola.cse.ufsc.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/124135
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