Os pequenos camponeses lutam contra os paradigmas modernos obsoletos

26/07/2007
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O século XX representou uma terrível catástrofe para os pequenos camponeses de todo o mundo. Tanto nas economias capitalistas ricas como nos países socialistas, os camponeses pagaram um preço muito elevado pela industrialização. Em países capitalistas avançados como os Estados Unidos, a combinação letal de economias de escala, de tecnologias de capital intensivo e de mercado fez com que as grandes empresas monopolizassem a produção e o processamento dos produtos agrícolas. As pequenas e médias explorações ficaram relegadas a um papel marginal da produção, oferecendo trabalho a uma porcentagem insignificante da população ativa.

A União Soviética, enquanto isso, tomou ao pé da letra os maliciosos comentários de Karl Marx sobre a “idiotice da vida rural” e, fazendo uso da repressão estatal, transformou os camponeses em trabalhadores de granjas coletivas. Supunha-se que a expropriação dos excedentes agrícolas não apenas serviria para alimentar as cidades, mas também como fonte da denominada “acumulação primitiva” do capital para a industrialização.

Na atualidade, pode ser que a maior ameaça que se abate sobre os pequenos agricultores seja o livre comércio. Mas os camponeses não estão ficando de braços cruzados. Graças à sua luta, entre outros fatores, a Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) está em ponto morto. E não há lugar em que as tensões entre agricultores e livre comércio sejam mais evidentes que na Ásia.

A tríplice ameaça ao campesinato asiático

Os governos asiáticos fizeram recair o peso da industrialização sobre o campesinato durante a etapa em que assumiram as denominadas políticas desenvolvimentistas, que privilegiavam a indústria. Em Taiwan e na Coréia do Sul, a reforma agrária desencadeou, num primeiro momento, a prosperidade do campo, na década de 1960, o que estimulou a industrialização. Mas com a passagem para uma industrialização voltada às exportações, em 1965, chegou a demanda de mão-de-obra industrial barata, de forma que as políticas de governo reduziram deliberadamente os preços dos produtos agrícolas. Desta forma, os agricultores subvencionaram o aparecimento das novas economias industrializadas. Os ingressos das zonas rurais diminuíram em relação às urbanas, e o conseqüente estancamento desse que já foi um setor dinâmico desembocou na emigração em massa para as cidades e numa mão-de-obra barata e inesgotável para as fábricas. A maioria dos agricultores que ficou no campo eram pobres e anciãos, e representavam uma porcentagem minguante da população ativa nacional.

Na Tailândia, por exemplo, um imposto sobre as exportações de arroz isolou o mercado nacional das flutuações de preços no mercado internacional, razão pela qual não apenas se reduziu o preço do arroz, mas também os custos salariais dos empresários dos setores não agrícolas. Entre 1962 e 1981, excetuando 1971, foi se produzindo, ano após ano, uma passagem real de riqueza do campo para a cidade. Assim, não é de se estranhar que, apesar de que a Tailândia tenha a imagem de ser uma superpotência agrícola, uma grande porcentagem da população rural continue sendo pobre.

Na China, milhões de camponeses morreram de inanição durante o Grande Salto para Frente [1958], já que o governo se dedicou a confiscar o excedente de grãos para financiar a campanha de superindustrialização de Mao Tsé-Tung. O caso da Revolução Cultural permitiu aos camponeses recuperar certo controle sobre a produção porque o governo entrou em crise. Depois da morte de Mao, em 1976, Deng Xiaoping abordou o problema introduzindo o “sistema de responsabilidade por contrato familiar”. Cada família obteve uma parcela de terra para cultivar e, com ela, o direito de comercializar os excedentes depois de vender uma determinada quantidade da produção ao Governo, a um preço fixado pelo Estado. Este sistema criou uma prosperidade entre os camponeses que, como no caso de Taiwan, estimulou a produção industrial para cobrir a demanda rural.

Mas também como em Taiwan, esta época dourada do campesinato chegou ao fim, e foi exatamente pelo mesmo motivo: a adoção de uma industrialização centrada no meio urbano e baseada nas exportações. A acumulação primitiva do capital para a indústria tomou a forma de confisco dos excedentes agrícolas através de duras obrigações tributárias. Atualmente, os diversos escalões do Governo chinês oprimem os camponeses com 269 impostos diferentes, para não falar de comissões administrativas muitas vezes arbitrárias.

Portanto, não é estranho que, em muitos lugares, os impostos comam até 15% dos ingressos dos agricultores, três vezes mais do que o limite nacional oficial, estabelecido em 5%. Também não é estranho que, enquanto a economia foi crescendo a um ritmo anual de 8% a 10%, as rendas dos camponeses se estancaram, de forma que os habitantes urbanos agora dispõem de ingressos seis vezes superiores, em média, aos dos habitantes rurais. Neste contexto, é muito acertada a observação de Chen Guidi e Wu Chuntao, defensores dos direitos da população rural, de que a economia industrial urbana foi construída “sobre os ombros dos camponeses”.

O furacão da liberalização do comércio

Sem dúvida, a força com que se obrigou os agricultores a subvencionar a industrialização foi violenta. Mas, ao menos, as políticas comerciais naquele momento ajudavam a mitigar a dor, pois bloqueavam as importações agrícolas que eram ainda mais baratas que os produtos locais. Praticamente todos os países com setores agrícolas controlavam as importações de forma muito estrita mediante cotas e tarifas elevadas. Este escudo protetor, no entanto, se viu gravemente debilitado quando estes países assinaram o Acordo sobre Agricultura (AAG) e, a partir de 1995, começaram a aderir à Organização Mundial do Comércio (OMC).

O AAG obrigou os países a abrirem os mercados agrícolas porque proibia as cotas, que se converteram em tarifas, e exigia dos governos que importassem um volume mínimo de cada produto agrícola aplicando-lhe uma tabela tarifária baixa. Ao mesmo tempo, sob o pretexto de controlar as importantes subvenções à agricultura dos países desenvolvidos, o AAG institucionalizou os diversos canais pelos quais circulavam as subvenções, como as ajudas à exportação e os pagamentos diretos a produtores agrícolas no hemisfério setentrional.

Em conseqüência, o grau de subvenção da agricultura aumentou nos países desenvolvidos durante a primeira década de existência da OMC. O importe total de subsídios à agricultura procedente dos governos da OCDE passou de 182 bilhões de dólares norte-americanos em 1995 para 280 bilhões de dólares em 1997, 315 bilhões de dólares em 2001, 318 bilhões de dólares em 2002, e quase 300 bilhões de dólares em 2005. No começo da década de 2000, os Estados Unidos e a União Européia (UE) estavam gastando entre 9 bilhões e 10 bilhões de dólares a mais em subsídios que na década anterior. De cada 100 dólares de agroexportações dos Estados Unidos, 20-30 dólares representavam subsídios do Estado. No caso da UE, a cifra alcançava os 40-50 dólares. Assim, enquanto os pequenos camponeses do mundo em desenvolvimento tinham que sobreviver com menos de 400 dólares anuais, os agricultores norte-americanos e europeus estavam recebendo ajudas médias de 21 mil e 16 mil dólares anuais, respectivamente.

Como as importantes subvenções dos Estados Unidos e da Europa distorciam os preços mundiais para baixo, a agricultura dos países em desenvolvimento deixou de ser “competitiva” sob condições de liberalização comercial impostas pela OMC. Como aponta a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) em relatório publicado em 2000, o acusado aumento das importações depois da adoção do AAG numa série de países se traduziu nas “dificuldades conseguintes” para as “indústrias que competiam pelas importações”. Segundo esse mesmo relatório, temia-se que “sem uma proteção adequada do mercado, acompanhada de programas de desenvolvimento, muitos outros produtos internos se veriam encantoados ou prejudicados gravemente, o que acarretaria uma transformação dos hábitos alimentares no país e um incremento da dependência em relação aos alimentos importados”.

Esta virada histórica para a dependência dos alimentos importados excedeu, convém dizê-lo, o deslocamento de milhões de camponeses.

Mesmo antes que o AAG entrasse em vigor, o Banco Mundial predisse que, com o novo regime, os agricultores indonésios sairiam perdendo. E assim foi: desde 1995, as pressões competitivas provocadas pela liberalização comercial levaram à expansão das plantações de caráter industrial às custas dos pequenos agricultores dedicados ao cultivo do arroz e de outros produtos básicos, que se viram marginalizados.

Nas Filipinas, um grande número de produtores de milho, criadores de frangos, criadores de gado e horticultores se viram à beira da falência. Em Mindanao, onde o milho é um cultivo básico, muitos agricultores foram varridos do mercado. Nas palavras da analista Aileen Kwa, “não é raro ver os camponeses deixarem o milho apodrecer nos campos porque os preços no país caíram a níveis com os quais não podem competir”. Com a produção estancada, os hectares de terra dedicados ao cultivo de milho em todo o país caíram vertiginosamente dos 3.149.300 hectares em 1995 para 2.150.300 hectares em 2000.

Também na China dezenas de milhares de camponeses ficaram marginalizados, incluídos aqueles dedicados ao cultivo da soja e do algodão, após a entrada do país na OMC. De fato, a fim de manter e incrementar o acesso de seus fabricantes aos mercados dos países desenvolvidos, o Governo optou por sacrificar os agricultores.

Segundo o Institute of International Economics: “O desafio de gerir o setor agrário se tornou mais complexo com os compromissos da China em matéria de agricultura para com a OMC, que são de um alcance muito maior que o de outros países em desenvolvimento e que, em determinados aspectos, ultrapassam os de países de rendas altas. O Governo chinês admitiu reduzir as tarifas e estabelecer outras políticas que aumentem o acesso aos mercados de forma significativa; aceitou incrementar as restrições ao uso de subsídios agrícolas. Estes compromissos ultrapassam com folga os assumidos por outros participantes da Rodada do Uruguai, que desembocou na criação da OMC”.

No Sri Lanka, milhares de pequenos camponeses realizaram manifestações para protestar contra a importação de frangos e ovos, denunciando que esta estava acabando com sua atividade. Essa era também a opinião da FAO, que assinalou que o aumento das importações de alimentos básicos como a pimenta, a cebola e a batata fazia com que a produção local fosse “precária, assim como se reflete na queda significativa das zonas de produção”.

Na Índia, a liberalização das tarifas, inclusive antes de assumir os compromissos da OMC, também se traduziu numa profunda crise rural. A economista indiana Utsa Patnaik descreveu a catástrofe como “uma queda dos meios de vida e dos ingressos rurais” devido à queda dos preços dos produtos agrícolas. Este fenômeno foi acompanhado de um rápido descenso no consumo de cereais, de maneira que uma família índia de quatro pessoas em média consumia em 2003 76 kg a menos de cereais que em 1998, e 88 kg a menos que uma década atrás.

O Estado de Andra Pradesh, que se converteu em sinônimo de depressão agrária por conta da liberalização do comércio, presenciou um trágico aumento no número de suicídios entre a população camponesa: de 233 em 1998 para mais de 2.600 em 2002. Calcula-se que, na Índia, cerca de 100 mil agricultores tiraram a vida devido à queda dos preços gerada pela elevação das importações.

Os governos sob pressão

A resistência a este novo regime, tão contrário aos interesses dos pequenos camponeses, veio de várias frentes. No âmbito internacional, a liberalização do comércio e outras políticas desfavoráveis à agricultura propiciaram a formação dos blocos de países em desenvolvimento: o G-20, o G-33. O G-20 advertiu os países desenvolvidos que, a menos que estes últimos reduzissem notavelmente o injusto apoio que proporcionavam a seus respectivos setores agrícolas, não haveria mais concessões em matéria de acesso aos mercados. O G-33 exigiu que certos produtos considerados de vital importância para a produção agrícola e o emprego (conhecidos como produtos especiais) ficaram eximidos da liberalização tarifária. Também advogavam pelo direito de aumentar as tarifas e a recorrer a outras medidas – mecanismos de salvaguarda especiais (MSE) – para proteger seus produtos da invasão de produtos agrícolas importados. Quando a União Européia e os Estados Unidos se negaram a transigir sobre estas questões, a 5ª Conferência Ministerial da OMC, celebrada em Cancún em 2003, veio abaixo.

A Declaração da 6ª Conferência Ministerial da OMC, realizada em Hong Kong em dezembro de 2005, reconhecia o direito dos países em desenvolvimento de designar produtos especiais e de estabelecer MSE. No entanto, em julho de 2006, depois que os Estados Unidos voltaram atrás em relação a este compromisso e se negaram a reduzir de forma significativa os subsídios aos seus próprios agricultores, a Rodada de Doha também descarrilou. Os países em desenvolvimento, simplesmente, não podiam permitir que se produzisse ainda maior descontentamento entre suas populações rurais abrindo os mercados, sobretudo em troca da redução meramente simbólica dos ingentes subsídios agrícolas dos Estados Unidos e da União Européia.

A força que impulsionou as posturas adotadas por alguns países em desenvolvimento nestes fóruns multilaterais se encontra na violenta reação vivida em suas respectivas zonas rurais. Em 2004, por exemplo, a grave situação no campo levou à inesperada derrota da coalizão governante, encabeçada pelo Partido Bharatiya Janata (BJP), que havia organizado sua campanha sob o lema “Índia Brilha”. A revolta eleitoral rural na Índia é uma peça a mais de um fenômeno mundial que busca advertir os governos que o campo já não está disposto a aceitar políticas que sacrifiquem os interesses dos camponeses.

Na Ásia, protestos em forma de ocupação de terras, greves de fome, manifestações violentas e suicídios simbólicos fizeram do mal-estar no meio rural um grave e urgente problema. Na China, aumentaram de 8.700 em 1993 para 87.000 em 2005 o que o Ministério de Segurança Pública denomina de “incidentes em massa” – em outras palavras, ações de protesto –, a maioria deles no campo. Além disso, estes incidentes estão aumentando em número de participantes: a média passou de 10 pessoas ou menos em mediados dos anos 90 para 52 pessoas em 2004. Por isso, é lógico que os atuais dirigentes do país vejam cada vez mais o campo como um rastro de pólvora que é preciso desativar.

Uma Internacional Camponesa?

O suicídio do camponês coreano Lee Kyung Hae nas barricadas de Cancún, em setembro de 2003, foi um marco no desenvolvimento da luta camponesa em todo o mundo. Lee suicidou-se debaixo de um cartaz que dizia “A OMC mata os camponeses” e, com sua ação, pretendia chamar a atenção internacional sobre o elevado número de suicídios entre os agricultores dos países submetidos à liberalização. O fato comoveu os delegados da OMC, que guardaram um minuto de silêncio em memória de Lee. O ato deste camponês coreano, somado ao que já era um ambiente carregado, representou sem dúvida um fator chave no desenvolvimento das negociações.

Em dezembro de 2005, invocando o sacrifício de Lee, centenas de camponeses coreanos tentaram romper o cordão de isolamento policial que cercava o Centro de Convenções de Hong Kong, com a idéia de entrar no prédio. Cerca de 900 manifestantes, a maioria camponeses coreanos, foram presos.

Tanto Lee como os agricultores coreanos que protestavam em Hong Kong eram membros da
Via Campesina, uma federação internacional de agricultores fundada em meados dos anos noventa. A partir de então, a Via Campesina se converteu num dos opositores mais combativos da OMC e dos acordos de livre comércio, tanto bilaterais como multilaterais. Ainda que existam outras redes internacionais de camponeses, a Via Campesina se distingue por compartilhar o princípio de que os pequenos agricultores não só devem lutar para sobreviver no atual sistema mundial de agricultura industrial controlada pelas grandes empresas, mas que também deveriam liderar o processo de transformação ou substituição desse sistema. Comentando as idéias de José Bové, o famoso ativista francês que desmantelou um McDonald’s em Millau, sua cidade natal, e de outros dirigentes da Via Campesina, uma revista progressista define o objetivo da organização como sendo a criação de uma Internacional Camponesa, do mesmo modo que grupos comunistas e social-democratas tentaram estabelecer a Internacional Comunista e a Internacional Socialista para unir os operários no século XX.

O principal grito de guerra da Via Campesina, cuja coordenadora é da Indonésia, é “OMC fora da agricultura”, e seu programa alternativo se baseia na soberania alimentar. Soberania alimentar significa, acima de tudo, a adoção imediata de políticas que favoreçam os pequenos produtores. Estas trariam, segundo Henry Saragih, agricultor indonésio e secretário executivo da organização, e Ahmad Ya’kub, subdiretor de Estudos sobre Políticas da Federação de Sindicatos Agrários Indonésios (FSPI), “proteção do mercado nacional das importações de preços baixos, preços remunerativos para agricultores e pescadores, abolição de todas as ajudas diretas e indiretas à exportação, e supressão paulatina dos subsídios nacionais que promovem uma agricultura insustentável”.

O programa da Via Campesina, no entanto, não se limita a lutar pela instauração de políticas comerciais favoráveis aos pequenos produtores. Também luta pelo fim do regime dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio, que permite às grandes empresas patentear sementes e, deste modo, apropriar-se para lucro privado de algo que foi evoluindo graças à interação criativa entre o mundo natural e as comunidades humanas durante milhares de anos. As sementes e outros recursos fitogenéticos deveriam ser considerados parte da herança comum da humanidade, opina o grupo, e não ser objeto de privatizações.

A reforma agrária, uma questão evitada durante muito tempo pelos fazendeiros de países como as Filipinas, constitui um dos eixos da plataforma, como também a prática de uma agricultura orgânica ou biodinâmica sustentável e respeitosa do meio ambiente por parte de pequenos produtores. A organização se afastou completamente da primeira revolução verde, baseada numa agricultura de uso intensivo de produtos químicos, e da segunda revolução verde, caracterizada pela engenharia genética. As catastróficas conseqüências ambientais da primeira são bem conhecidas, afirma a Via Campesina, o que significa que o princípio da precaução deveria ser aplicado rigorosamente à segunda, de forma que se evitem impactos negativos sobre a saúde e o meio-ambiente.

A oposição à agricultura baseada na engenharia genética criou um forte laço entre agricultores e consumidores, que estão descontentes com as grandes empresas devido à comercialização de produtos transgênicos sem a etiquetagem adequada, motivo pelo qual negam aos consumidores a possibilidade de escolha. Na União Européia, uma sólida aliança construída entre agricultores, consumidores e ecologistas evitou que a União importasse transgênicos dos Estados Unidos durante vários anos. Mesmo que desde 2004 a União Européia tenha autorizado cautelosamente a importação de alguns transgênicos, 54% dos consumidores europeus continuam pensando que este tipo de alimento é “perigoso”. A resistência a outros processos nocivos, como a irradiação de alimentos, também fortaleceu os laços entre os agricultores e consumidores, muitos dos quais acreditam que a saúde pública e o impacto ambiental deveriam ser fatores muito mais determinantes sobre o comportamento dos consumidores que o preço.

Cada vez são mais as pessoas que começam a tomar consciência de que a produção local e as tradições culinárias estão intimamente relacionadas, e que esta relação está ameaçada pelo controle que as grandes empresas exercem sobre a produção, o processamento, o marketing e o consumo de alimentos. Precisamente por isso, a justificativa esgrimida por José Bové para desmantelar um McDonald’s teve tanta repercussão na Ásia: “Quando anunciamos que protestaríamos demolindo o McDonald’s que estavam construindo na cidade, todo o mundo entendeu o porquê; o simbolismo era muito forte. Foi uma ação a favor dos bons alimentos frente à comida ruim, a favor dos trabalhadores frente às multinacionais. A extrema direita e outros grupos nacionalistas tentaram dar-lhe um caráter anti-Estados Unidos, mas a grande maioria sabia que não era nada disso. Foi um protesto contra um determinado tipo de produção que quer dominar o mundo”.

Muitos economistas, tecnocratas, políticos e intelectuais urbanos viram nos pequenos camponeses uma classe condenada a desaparecer. Considerados no passado como sujeitos passivos manipulados pelas elites, agora estão lutando contra os paradigmas capitalistas, socialistas e desenvolvimentistas que os levariam à ruína. Assim, se converteram naquilo que Karl Marx chamava de “classe para si” com consciência política. E ainda que o campesinato não tenha “entrado tão confiado nessa noite”, para tomar emprestado um verso de Dylan Thomas, os acontecimentos do século XXI estão demonstrando que as visões tradicionais pró-desenvolvimentistas são tremendamente mentirosas.

Os crescentes protestos de grupos camponeses como a Via Campesina não representam uma volta ao passado. À medida que as crises ambientais se multiplicam e as disfunções da vida urbana e industrial se amontoam, o movimento camponês não só adquire grande importância para os próprios agricultores, como para todos aqueles que estamos ameaçados pelas conseqüências catastróficas de paradigmas da modernidade já obsoletos para organizar a produção, as comunidades e a vida.  (A tradução é do Cepat)

- Walden Bello é diretor executivo do Focus on the Global South, um instituto de pesquisa com sede em Bancoc, e professor de Sociologia da Universidade das Filipinas em Diliman.

https://www.alainet.org/pt/articulo/122442
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