O maravilhoso novamente
29/07/2007
- Opinión
Depois de escrever, há duas semanas, sobre a vitória do Cristo Redentor, incluído entre as novas sete maravilhas do mundo, o tema do maravilhoso volta a chamar minha atenção. E isso por observar a verdadeira febre que domina o gosto cinematográfico das novas gerações por histórias desse gênero.
O público, indiscutivelmente, anda ávido pelo maravilhoso, e não apenas no que se refere às imagens, mas também em relação ao conteúdo que as mesmas veiculam e ao qual servem de suporte. Vivemos e assistimos a verdadeiras correrias de multidões para ver Harry Potter, O Senhor dos Anéis e Guerra nas Estrelas. E nos perguntamos, perplexos, por que esses universos de contos de fadas, fora de moda nos últimos vinte anos, atraem atualmente um público tão grande e de todas as idades.
Creio que, na realidade, não foi a necessidade do maravilhoso que mudou, mas os caminhos que são percorridos para chegar até ele. Como representante da geração que viu muitíssimos filmes de violência e ação, espanto-me em constatar que hoje as pessoas começam a fugir desse tipo de narrativa e imagem.
Como a esmagadora maioria dos filmes que chegam a nossas telas, grandes ou pequenas, é americana, creio que os terríveis acontecimentos de 2001 são um marco nesta virada a que assistimos. Na época em que os Estados Unidos se consideravam um território invulnerável, sua população acorria às salas de cinema para ver filmes-catástrofe, em que aviões eram seqüestrados e o Pentágono era ameaçado por uma organização terrorista. Porém, após o 11 de setembro, esse tipo de espetáculo foi proibido, pois corria o risco de deixar de ser visto como uma ficção irreal, e sim como reflexo da realidade.
Por isso, o público agora corre para ver os filmes acima citados, que restabelecem o vínculo com a velha receita do conto de fadas: “Num país muito distante, há muito, muito tempo, era uma vez...” Na verdade, esses filmes não se limitam a projetar acontecimentos representados em espaços e épocas totalmente imaginários; também abrem mão, em grande parte, da representação realista da violência e das angústias do cotidiano.
Os contos de fadas contemporâneos, além disso, trazem consigo uma moral, tal como os tradicionais. A beleza e a virtude humilhadas, obrigadas a passar por provas duríssimas até encontrar o final feliz e a recompensa, são revisitadas e reconfiguradas nos personagens que passam por sagas em busca de algum talismã ou alguma vitória que preencha de maneira realizadora seu imaginário sedento de maravilhoso.
O ser humano é modelado por imagens – a começar pelas de seus sonhos, que o invadem todas as noites –, mas precisa certificar-se constantemente de que partilha as imagens que o possuem com seus semelhantes. Sem o imaginário, o ser humano sente-se vazio; enquanto provido de imagens, no entanto, receia ficar sozinho: o imaginário só é tranqüilizador quando se faz acompanhar pela certeza de que é compartilhado.
Olhar em volta e sentir que estão todos ligados nos mesmos heróis – seja Harry Potter ou qualquer outro – tranqüiliza a sensibilidade angustiada e exorciza a angústia e a preocupação. O que está em jogo é, nada mais, nada menos, a certeza de se sentir parte do gênero humano.
O desejo de ligar os fios de seu imaginário pessoal a um grande imaginário coletivo se faz sentir na atual tendência que incentiva as pessoas a verem filmes maravilhosos, assim como adotar religiões que enquadrem o imaginário individual de maneira mais coercitiva do que o fazem as religiões históricas, sobretudo a cristã. Entregues à solidão de seu imaginário subjetivo, nossos contemporâneos procuram imagens supostamente universais para aí atracar o seu imaginário pessoal.
O Cristianismo, enquanto proposta de vida que supõe a liberdade, não pode fazer concessões a essa via para atrair fiéis para suas fileiras. O maravilhoso que carrega em seu bojo é proposta de vida fincada na concretude do real e na vulnerabilidade da carne humana. É desde ali que ele pode preencher os sonhos do coração humano e não fora dali, em mundos irreais e fictícios.
- Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
O público, indiscutivelmente, anda ávido pelo maravilhoso, e não apenas no que se refere às imagens, mas também em relação ao conteúdo que as mesmas veiculam e ao qual servem de suporte. Vivemos e assistimos a verdadeiras correrias de multidões para ver Harry Potter, O Senhor dos Anéis e Guerra nas Estrelas. E nos perguntamos, perplexos, por que esses universos de contos de fadas, fora de moda nos últimos vinte anos, atraem atualmente um público tão grande e de todas as idades.
Creio que, na realidade, não foi a necessidade do maravilhoso que mudou, mas os caminhos que são percorridos para chegar até ele. Como representante da geração que viu muitíssimos filmes de violência e ação, espanto-me em constatar que hoje as pessoas começam a fugir desse tipo de narrativa e imagem.
Como a esmagadora maioria dos filmes que chegam a nossas telas, grandes ou pequenas, é americana, creio que os terríveis acontecimentos de 2001 são um marco nesta virada a que assistimos. Na época em que os Estados Unidos se consideravam um território invulnerável, sua população acorria às salas de cinema para ver filmes-catástrofe, em que aviões eram seqüestrados e o Pentágono era ameaçado por uma organização terrorista. Porém, após o 11 de setembro, esse tipo de espetáculo foi proibido, pois corria o risco de deixar de ser visto como uma ficção irreal, e sim como reflexo da realidade.
Por isso, o público agora corre para ver os filmes acima citados, que restabelecem o vínculo com a velha receita do conto de fadas: “Num país muito distante, há muito, muito tempo, era uma vez...” Na verdade, esses filmes não se limitam a projetar acontecimentos representados em espaços e épocas totalmente imaginários; também abrem mão, em grande parte, da representação realista da violência e das angústias do cotidiano.
Os contos de fadas contemporâneos, além disso, trazem consigo uma moral, tal como os tradicionais. A beleza e a virtude humilhadas, obrigadas a passar por provas duríssimas até encontrar o final feliz e a recompensa, são revisitadas e reconfiguradas nos personagens que passam por sagas em busca de algum talismã ou alguma vitória que preencha de maneira realizadora seu imaginário sedento de maravilhoso.
O ser humano é modelado por imagens – a começar pelas de seus sonhos, que o invadem todas as noites –, mas precisa certificar-se constantemente de que partilha as imagens que o possuem com seus semelhantes. Sem o imaginário, o ser humano sente-se vazio; enquanto provido de imagens, no entanto, receia ficar sozinho: o imaginário só é tranqüilizador quando se faz acompanhar pela certeza de que é compartilhado.
Olhar em volta e sentir que estão todos ligados nos mesmos heróis – seja Harry Potter ou qualquer outro – tranqüiliza a sensibilidade angustiada e exorciza a angústia e a preocupação. O que está em jogo é, nada mais, nada menos, a certeza de se sentir parte do gênero humano.
O desejo de ligar os fios de seu imaginário pessoal a um grande imaginário coletivo se faz sentir na atual tendência que incentiva as pessoas a verem filmes maravilhosos, assim como adotar religiões que enquadrem o imaginário individual de maneira mais coercitiva do que o fazem as religiões históricas, sobretudo a cristã. Entregues à solidão de seu imaginário subjetivo, nossos contemporâneos procuram imagens supostamente universais para aí atracar o seu imaginário pessoal.
O Cristianismo, enquanto proposta de vida que supõe a liberdade, não pode fazer concessões a essa via para atrair fiéis para suas fileiras. O maravilhoso que carrega em seu bojo é proposta de vida fincada na concretude do real e na vulnerabilidade da carne humana. É desde ali que ele pode preencher os sonhos do coração humano e não fora dali, em mundos irreais e fictícios.
- Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/122428
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