Hugo Chávez e a “liberdade de imprensa”
- Opinión
A despeito de outras considerações, o Presidente Chávez já possui o mérito de ter recordado a todos os latino-americanos que os monopólios que produzem e difundem a informação são essencialmente concessionários de um serviço público. Eis um conceito que foi gradualmente eliminado do vocabulário quando se trata de comunicação, pois os atuais “cães de guarda” operam de maneira orweliana: serviço público se transformou em “liberdade de imprensa” entendida como o direito que os monopólios possuem de informar e difundir imagens, promovendo alguns temas e dando voz a determinadas personagens no mesmo momento em que calam e ocultam tantos outros.
A operação orweliana em curso não se limita, obviamente, a seus elementos primários. Para completar o enredo é importante observar a censura voluntária praticada pela maioria dos jornalistas e órgãos independentes. No Brasil, tanto à esquerda quanto à direita, encontramos uma mesma racionalidade política que impede o exercício radical da liberdade em um regime democrático, tal é a subordinação de intelectuais e jornalistas à razão de estado e aos interesses políticos dominantes. Para entender a censura voluntária, é importante recordar o Prefácio (1945) à edição inglesa da “Revolução dos Bichos”, onde George Orwell observou que, em relação a Rússia, a intelligentsia britânica mantinha uma posição de “fundo nacionalista”, de tal forma que “o que é interessante é que, sempre que a URSS e sua política estão em jogo, não se pode esperar críticas inteligentes nem, em muitos casos, pura e simples honestidade dos escritores e jornalistas liberais, que não sofrem pressões diretas para falsificar suas opiniões” Ora, é fácil substituir Rússia por Venezuela e verificar que a mesma operação esta em curso desde que Hugo Chávez apareceu na cena política de seu país e enterrou para sempre o velho populismo de AD e COPEI, o bi-partidarismo que nossa imprensa denominava de “sistema democrático venezuelano”. Na situação da Inglaterra do pós-guerra, o “fundo nacionalista” registrado por Orwell destinava-se a preservar a aliança existente entre Stálin e Churchill que passou a comandar a liberdade de escritores e jornalistas. Enfim, os escritores e jornalistas ingleses adotaram livremente a razão de estado, praticando desde então a conhecida servidão voluntária no terreno profissional sob a forma de censura voluntária[1]. No caso da Venezuela, as razões pelas quais os jornalistas e escritores dos demais países latino-americanos adotam a censura voluntária e contribuem para o cerco midiático à Revolução Democrática Bolivariana, não têm origem em qualquer acordo entre os estados vizinhos, a exemplo daquele que se configurou entre URSS e Inglaterra. Apesar da cordialidade existente entre a maioria dos presidentes, é fácil verificar que ocorre justamente o contrário, pois a razão de estado no Brasil recomenda cautela diante do nacionalismo revolucionário bolivariano que a elite brasileira teme que possa contaminar a opinião pública. Uma vez mais e tal como advertiu Orwell, os jornalistas e intelectuais temem a opinião pública que dizem respeitar porque no fundo sabem que as propostas oriundas do nacionalismo revolucionário praticado em Caracas são razoáveis e foram amplamente utilizadas pelas potencias dominantes tanto no passado quanto no presente, como meio para preservar seus interesses; contudo, estes mesmos meios soam inconcebíveis e muitas vezes são considerados irracionais quando utilizados nos trópicos por um governo popular.
A razão para tal comportamento é elementar, mas é necessário recordar: a elite brasileira decidiu que um surto nacionalista em defesa da economia, do território e do povo no Brasil, semelhante aquele praticado na Venezuela, seria nefasto para seus interesses. Exceção feita à recente beatificação de frei Galvão pelo Vaticano, qualquer outro artigo de procedência nacional parece ser símbolo de “mentalidade pré-moderna” e anacronismo endêmico, pois sabidamente vivemos em uma época que segundo os interesses dominantes, quase tudo pode ser comprado “lá fora”. Preferem, por razões óbvias, a manutenção da “abertura da economia” que reproduz a dependência, potencializa a concentração da riqueza e perpetua o apartheid social, cuja digestão moral a maioria da intelligentsia parece ter realizado sem problemas há algum tempo.
A característica essencial da “liberdade de imprensa” na maioria dos países latinoamericanos é que o jargão não permite distribuição de tempo equânime aos dois lados da notícia. Este padrão de comportamento pode ser visto quando comparamos o tratamento jornalístico destinado ao Presidente Bush em comparação com o Presidente Chávez, por exemplo. É verdade que as críticas à Bush são freqüentes em função da invasão no Iraque e Afeganistão, mas nada ou muito pouco se diz sobre o funcionamento real do sistema político estadunidense. No mesmo diapasão W. Clinton é, segundo o padrão dominante, muito melhor que o texano Bush, mas se critica exclusivamente seus excessos amorosos enquanto predominou o silêncio sobre sua obra política. A deposição de J.B.Aristide e a posterior intervenção no país caribenho – decisões tomadas no mandado do democrata – não despertam a mesma atenção crítica que os atos de Hugo Chávez, Evo Morales ou Rafael Correa. A regra é que enquanto se vilipendia as personagens, o sistema político estadunidense fica imune a crítica e o padrão de informação sobre o que ocorre nos Estados Unidos é muito ruim: quase nada se divulga sobre a intervenção do executivo no sistema judicial, as prisões ilegais, a violação do correspondência eletrônica, as prisões sem mandato judicial, o fim do habbeas corpus por primeira vez em 200 anos de vida constitucional, as prisões ilegais da CIA na Europa e Guantánamo, a fraude eleitoral em Ohio e Miami que levou duas vezes os republicanos à Casa Branca, etc. A informação sobre o que ocorre nos EUA é parcial, fragmentada e de péssima qualidade, de tal forma que podemos condenar a Clinton ou Bush por razoes distintas mas não o sistema político que os criou e que seguirá criando figuras semelhantes nas próximas eleições presidenciais.
Em oposição a este tratamento benevolente dispensado ao sistema político estadunidense – sempre tomado como sinônimo de democracia – se observa que na análise e informação sobre a Revolução Bolivariana não somente a personagem interessa, mas igual atenção os jornalistas e escritores destinam ao sistema político e a preservação do “regime democrático”. Neste caso, é fácil constatar que “o outro lado” (os bolivarianos) raramente é escutado ou, quando se respeita a regra liberal básica, tudo sugere que é apenas para constar nos autos: tão esporádica que representa apenas um formalismo. Assim, podemos observar uma profusão de editoriais contra qualquer manifestação nacionalista que tenha origem na Venezuela, Bolívia ou Equador. A crítica é geralmente pouco inteligente, razão pela qual podemos supor que não esta em curso a tentativa de fornecer boa informação para que a opinião pública tenha cada dia melhor condição de exercer o livro arbítrio, mas simplesmente o funcionamento de um sistema de propaganda, algo completamente oposto ao que deveríamos entender por liberdade de imprensa. O resultado necessário é que mesmo aqueles que reconhecem os avanços sociais ocorridos na Venezuela após 2002, afirmam categoricamente que tudo esta sendo realizado a custa do sacrifício da “democracia”. Neste contexto, não é possível encontrar uma análise crítica sobre a democracia participativa, mas abundam manifestações sobre as virtudes da ameaçada democracia representativa que, entre nós, implica no exercício permanente do ceticismo como “virtude necessária” para suportar a impunidade, a concentração da riqueza e o monopólio do prestigio social.
Portanto, junto à defesa da “liberdade de imprensa” o debate atual também evoca um conceito particular de “democracia”, de tal forma que no jargão oficial enquanto o primeiro é afetado, a segunda está irremediavelmente comprometida. Contudo, há algo básico a discutir, pois um regime democrático não pode conviver com o monopólio dos meios de comunicação. Não é necessário buscar críticos modernos acerca do tema, pois mesmo Adam Smith em 1776, que não viveu o auge da revolução industrial, mas observou os primórdios da acumulação e concentração de capital, realiza na Riqueza das Nações uma severa crítica ao que denominou de “espírito de monopólio”, quando estes ainda não tinham nem remotamente a feição das grandes corporações que na atualidade ditam o ritmo dos negócios e controlam o estado moderno. A propósito, Adam Smith anotou que “a baixa rapacidade e os espírito de monopólio que prevalece entre comerciantes e manufatureiros (que tampouco foram chamados para serem os diretores da humanidade, nem existe razão para tal) ainda que não possa provavelmente ser corrigido, sim pode evitar-se que perturbem a tranqüilidade de outras pessoas”[2]. Para não deixar dúvidas acerca de sua posição, concluiu em seguida: “seus interesses, considerados deste ponto de vista, são contrários aos da imensa maioria do povo”.
Muito tempo depois, John A. Hobson, o liberal inglês que chamou a atenção de Lênin para o tema do imperialismo, anunciou o problema central da mídia em uma sociedade capitalista moderna: sua imensa capacidade de fabricar a opinião pública. Em agosto de 1902 o bom liberal, preocupado com a expansão imperialista da Inglaterra sob o domínio das finanças, revelou a estreita aliança entre as empresas de comunicação e o mundo dos negócios – ou seja, os monopólios – contra os interesses populares. “A influência direta – afirma Hobson – que os grandes círculos financeiros exercem na “alta política” se completa pela capacidade que possuem de dirigir a opinião pública valendo-se da imprensa, que em todos os países “civilizados” se esta convertendo cada vez mais em obediente instrumento seu a serviço. Enquanto os jornais dedicados especificamente as finanças impõem “fatos” e “opiniões” as classes sociais que vivem dos negócios, o grosso da imprensa esta cada vez mais influenciada, consciente ou inconscientemente, pelos interesses financeiros... e essa política de tomar a propriedade dos jornais para fabricar uma determinado opinião pública é coisa corrente nas grandes capitais européias. Por outro lado, o fato de que os lucros da imprensa se obtenham inteiramente de anúncios, produziu uma espécie de aversão a enfrentar-se com os grupos financeiros que controlam uma parte tão importante do negócio dos anúncios.”[3]
Desde então sabemos que nesta matéria ninguém pode comparar a fabricação de sapatos à difusão da informação ou simplesmente ocultar sob o manto sagrado da “liberdade de imprensa”, os interesses dos grandes monopólios. Não obstante, sempre que uma concessão pública é discutida, logo aparecem os interesses de sempre a defender a primazia do que falsamente denominam “mercado” e a necessidade imperiosa do “respeito aos contratos” como se informar a opinião pública cumprisse a mesma função que a produção de vestidos ou veículos.
A propósito, Noam Chomsky acertou na mosca quando comparou o jornalismo moderno a um “modelo de propaganda”, revelando conexões óbvias entre os grandes monopólios e os interesses comerciais, industriais e financeiros dominantes, destinados a controlar o pensamento[4]. Não obstante, na América Latina parece ser simplesmente um absurdo levantar a hipótese de que o público pode ter melhor informação se os meios de comunicação estiverem em mãos populares ou sob controle da sociedade civil. A situação é tal que mesmo a prática de “ouvir o outro lado”, pilar da promessa liberal, implica em severo questionamento do padrão jornalístico que finalmente se impôs. Curiosidade elementar: enquanto nos países centrais a crítica sobre o funcionamento da imprensa como grande empresa é um ato de lucidez básica, na periferia capitalista implica em sérias dúvidas sobre as convicções democráticas daqueles que esgrimem o argumento. Não obstante, como afirmou alguém com lastro na profissão, “fulano pode ir para Beirute ou Bagdá; no entanto, é em Seattle ou Atlanta que Bill Gates e Ted Turner já decidiram que nada do que passa no Líbano ou Iraque fará sombra aos aliados e negócios de Microsoft ou de Time Warner”[5].
Talvez o maior contraste entre o tratamento reservado as medidas tomadas pelo Presidente Chávez e aquelas verificadas em outro país qualquer, pode ser visto quando observamos que outra grande batalha pela manutenção da “liberdade de imprensa” e o “respeito à opinião pública” ocorre no continente: também em maio, mês que marcará o fim da concessão pública à RCTV na Venezuela, a Corte Suprema e o Congresso Nacional no México decidirão sobre o destino das concessões públicas dos meios de comunicação. Curiosamente, a atenção da grande imprensa, e especialmente dos jornalistas e escritores independentes parece não ser a mesma.
O parlamento mexicano votou recentemente a Lei de Rádio e Televisão que, acertadamente, é chamada pelos políticos de Lei Televisa, em referência óbvia a maior rede de televisão privada da América Latina. A lei, que foi aprovada no conturbado período que levou Felipe Calderón a presidência do país em meio a denuncias e grandes evidências de fraude eleitoral, mereceu pedido de inconstitucionalidade por parte de 47 senadores, entre os quais vários do ultra-conservador Partido de Ação Nacional do presidente “eleito”. Muitos senadores que participaram da negociação alegam que a lei em questão foi elaborada e aprovada pelo parlamento sob chantagem: a base parlamentar do candidato que finalmente se impôs – Felipe Calderón – ouviu claramente que, ou aprovavam a lei ou “sem Televisa não venceremos as eleições”, como narrou um senador. O recurso encontra-se na Corte Suprema e, entre muitos outros, três aspectos chamam poderosamente a atenção.
O artigo 16 da nova LFRT indica que a concessão será de 20 anos com preferência de renovação para os atuais proprietários. A lei anterior indicava que a concessão seria de até 20 anos, podendo ser revogada “conforme interesse nacional, ao tratar-se de um bem de uso comum escasso e sujeito ao regime de domínio público da Federação”. O segundo problema importante é que a nova versão da Lei proíbe “os povos e comunidades indígenas para adquirir, operar e administrar estações de radio e televisão” o que não representa pouco em um país onde existe mais de 60 povos originários e, após 1994, o princípio das autonomias municipais vingou em grande parte do território nacional, especialmente entre as populações indígenas que desde então se rebelaram. A terceira questão controversa é que os atuais concessionários poderão adquirir novas emissoras e bandas de tecnologia sem passar por leiloes públicos.
Como qualquer um pode supor, a Corte Suprema não é, no México ou em qualquer lugar deste planeta, um reduto de radicais dispostos a enfrentar o evidente reforço do monopólio informativo em uma sociedade convulsionada e, em conseqüência, não pretende uma revisão global da lei que ameace os donos do poder com a democratização no setor das comunicações. Para os críticos mexicanos, a Corte não esta interessada em estabelecer um marco de concorrência entre as duas grandes empresas que dominam a televisão no país e talvez corrija apenas os aspectos mais gritantes aprovados pelo parlamento. Contudo, também lá se escutam os gritos em protesto por esta ameaça à “liberdade de imprensa”. O assunto é motivo de debate todos os dias nos grandes jornais mexicanos, mesmo assim o silêncio sobre o tema domina a mídia brasileira, especialmente na televisão, porque se trata de um tema daqueles que “não fica bem tocar”.
Caso a Corte Suprema confirme a legislação aprovada pelo parlamento em circunstâncias inaceitáveis, a “regulação” do setor ficará definitivamente marcada pela atuação de dois grandes monopólios (Televisa e TV Azteca), conferindo aos mesmos privilégios que seriam considerados abusivos em qualquer país realmente preocupado com o pluralismo no meio jornalístico. Contudo, neste caso, os tradicionais defensores da “liberdade de imprensa” parecem estar satisfeito com o rumo da situação, pois a matéria é obviamente inconveniente para os donos do poder, especialmente para os monopólios, razão pela qual deve ser mantida fora dos holofotes. A falta de respeito para com a opinião pública neste caso é evidente, mas nem mesmo jornalistas independentes e escritores relativamente atentos aos estudos latino-americanos ou dedicados a análise da mídia, chamaram a atenção devida ao fenômeno.
Apesar do subdesenvolvimento e da dependência que caracterizam nossa formação social, não haverá nos trópicos o padrão equivalente daquele jornalismo estadunidenses que, na periferia, é considerado por gregos e troianos como o padrão mundial de qualidade precisamente destinado a “fabricar o consenso”? Observem, por exemplo, outro exemplo de respeito à opinião pública e a liberdade da imprensa implícita na intervenção das tropas da ONU no Haiti. O contraste existente entre a importância que o comando brasileiro das tropas da Minustah na intervenção no Haiti assumiu para a política externa brasileira e a falta de informação correspondente nos grandes jornais e especialmente na televisão nacional sobre o tema, parece não comover os defensores da liberdade de imprensa. Neste, como em muitos outros casos, ninguém esta preocupado com o respeito à opinião pública e podemos mesmo afirmar que o padrão jornalístico sobre o tema indica um grande temor de bem informar a opinião pública do que relamente ocorre no pequeno país caribenho após a destituição de Aristide e a intervenção patrocinada por Washington sob comando da ONU.
Neste, e tantos outros casos, não podemos dispor do “direito à informação” e desfrutar da “liberdade de imprensa” pela qual zelamos muito e que leva preocupação a todos aqueles que consideram que ela está sendo eliminada na Venezuela com o fim da concessão pública à Rádio Caracas Televisão. Por que o jornalismo brasileiro – que desfruta plenamente da “liberdade de imprensa” – não recorre os bairros de Cite Soleil escutando a dor e o desespero das vítimas da violência, que segundo organizações independentes são praticadas inclusive por nossas tropas, e escuta o “outro lado” do conflito, fortalecendo ainda mais as virtudes de nossa democracia e as convicções da opinião pública? A atenção dos monopólios televisivos parece estar voltada para o ataque à “liberdade de imprensa” na Venezuela e, obviamente, só nos resta compreender que eles não dispõem de fundos necessários para cobrir os acontecimentos no Haiti com a mesma atenção que o fazem em Caracas, onde a Revolução Democrática Bolivariana esta supostamente solapando as bases da democracia liberal.
No que diz respeito a RCTV, há mesmo duas questões essenciais que deveriam preocupar a todos nós e que merecem ser amplamente debatidas. A primeira é a identificação dos motivos que levam o governo do presidente Chávez a não renovação da concessão pública; a segunda, implica em indagação sobre o destino que o governo dará ao canal que individualmente é o maior do país.
No que se refere à primeira, não é destituído de interesse saber se os críticos que atualmente defendem a “liberdade de imprensa” e acusam o Presidente Chávez de limitá-la, utilizaram para condenar o término da concessão à RCTV, a mesma lupa que lançaram mão para reprovar a atuação do governo venezuelano. Estes críticos passam por alto o comportamento da própria empresa diante da “liberdade de imprensa”, pois caso utilizem o mesmo critério, não poderão ignorar, por exemplo, a decidida ação da empresa na tentativa golpista realizada contra o Presidente Chávez em abril de 2002, que só não se consumou porque a mobilização dos bairros pobres impediu que a farsa da posse de Pedro Carmona, então presidente de Fedecamaras (a maior federação patronal do país) prosperasse. A propósito, é decisivo recordar que no dia da “posse” de Pedro Carmona, lá estava o presidente da RCTV entre as autoridades civis anunciando um novo período para a democracia venezuelana e o respectivo retorno a Constituição de 1959.
Os defensores da “liberdade de imprensa” não consideram que a atuação destacada da RCTV no golpe de abril representou uma demonstração cabal de menosprezo pela democracia e a “liberdade de imprensa” que estava obrigada a defender e que, no entanto, violou completamente. Estes mesmos críticos situam o problema em uma esfera subjetiva, afirmando que o fim da concessão é uma demonstração de que o Presidente Chávez jamais “perdoou” a empresa por sua atuação golpista, como se tudo pudesse ser resolvido por uma mudança de comportamento do primeiro mandatário que não perde oportunidade para revelar sua crônica incapacidade de “perdoar”, renegando assim, uma vez mais, saudável disposição que deveria exibir para “pacificar” o país. Desta forma, os fiéis defensores da “liberdade de imprensa” pretendem fabricar o consenso de que o golpe de abril era possível sem a atuação das redes privadas de televisão e, em conseqüência, produzir a ilusão de que tudo passou como passou em função do comportamento “histriônico” do presidente venezuelano. Após esta demonstração de menosprezo completo pela “liberdade de imprensa” e pelo regime democrático, poderia a RCTV esperar destino diferente daquele que a aguarda em poucos dias?
A segunda questão essencial em debate é o destino que o governo dará à concessão pública. É incrível observar que no uso estendido do conceito de “liberdade de imprensa” prevalecente em nossos países, ninguém parece interessado em saber qual a via de fortalecimento do Estado induzida pela Presidente Chávez. O liberalismo conveniente aos monopólios indica que o fortalecimento do estado é indesejável para uma sociedade democrática, de tal forma que quando o estado ganha força, a sociedade civil perde vitalidade. Contudo, na Venezuela, o fortalecimento do estado nacional não significa o reforço do “ogro filantrópico”, mas exatamente seu oposto: uma grande possibilidade de democratização do mesmo. É precisamente esta ameaça de democratização do estado venezuelano que imprime temor à classe dominante no Brasil, pois em nosso país a “transição” da ditadura à democracia não passou de um processo em que os privilégios de uma ordem social ultra autoritária, marcada pela relação parasitaria entre o grande empresariado e o estado foram preservados por meio da “negociação” que assegura aos donos do poder o prestígio social e as posições de mando costumeiras.
Neste sentido, a Revolução Democrática Bolivariana em curso na Venezuela é uma crítica contundente à tentativa liberal de legitimação da ordem burguesa implícita no “processo constituinte de
Voltemos então ao nosso ponto: qual a relação entre a Revolução Democrática Bolivariana e a democratização dos meios de comunicação? Ora, no contexto venezuelano a primeira é impossível sem que a segunda ocorra e, embora desejáveis, obviamente estamos muito distante de possibilidade semelhante no Brasil, pois os monopólios dominam até o ponto que uma TV Estatal é vista como um atentado a liberdade de imprensa mesmo quando não vai produzir mais que cócegas no atual sistema de monopólios. E se o Ministério da Comunicação e Informação da Venezuela decidir que o destino da RCTV será, a partir do dia 27 de maio, aquele que permitirá a uma “cooperativa de políticas públicas” a administração democrática deste importante meio de comunicação? É possível admitir que a empresa será muito mais democrática do que na época em que apenas uma família decidia sobre os rumos da opinião pública. Neste caso, os requisitos da liberdade de imprensa fugiriam ao padrão dominante, mas certamente estariam muito mais próximos do mito da liberdade de imprensa do que nos dias atuais. Acaso seria um atentado a “liberdade de imprensa” que a maior televisão privada do país não ficasse mais sob o comando iluminado de um único proprietário, mas sob a responsabilidade de um conselho representativo da sociedade civil?
Por outro lado, não passou pela cabeça dos disciplinados militantes da causa da “liberdade de imprensa” que o tempo de 20 anos para uma concessão é, em si mesmo, em qualquer parte do mundo, um abuso e uma ofensa à democracia? Por que deveríamos votar em deputados e senadores a cada 4 ou 8 e conceder 20 anos a um proprietário de rede nacional de televisão que atua praticamente sem controle social e desfruta de uma posição que causa inveja a qualquer político profissional? Por que devemos controlar com rédeas curtas os políticos que tanto achincalhamos, iluminando as víceras do congresso nacional todos os dias com suas omissões e favores, enquanto deixamos em completo ostracismo o real funcionamento das empresas que controlam os meios de comunicação que com freqüência criam e destroem políticos, decidindo sobre a qualidade da opinião publica, geralmente indefesa em função do jornalismo dominante?
Neste contexto é compreensível o comportamento dominante na mídia brasileira diante da medida adotada pelo governo da Venezuela, pois em nosso país nos deparamos com dois fenômenos importantes que estão sendo tratados lá: o primeiro, a super-concentração de capital no setor e o segundo, a política oficial de concessões. Em nenhum destes dois aspectos há indícios de democratização no Brasil. Ao contrário, não obstante a luta de organizações independentes pela democratização dos meios de comunicação, o que prevalece em nosso país é o monopólio privado com crescentes apoios e subsídios governamentais para manter o privilégio e que seguem protegidos pelo silencio quase absoluto das câmaras de TV e editores de jornais, os principais beneficiários das medidas em curso.
No setor das comunicações não deveriam existir monopólios como são os casos de Televisa no México, Venevisión e RCTV na Venezuela ou as Organizações Globo no Brasil, para assinalar os casos mais evidentes. Nas condições de subdesenvolvimento e dependência, em que a taxa de escolarização é baixa e o analfabetismo alcança em algumas regiões do país quase 50%, o monopólio da televisão assume o perfil de despotismo muito facilmente, sendo uma peça do controle político, cultural e estético da população. Nos termos da ordem, em tempos de ditadura, a censura e a violência dominam; no regime democrático, o controle do pensamento é indispensável. Neste caso, o monopólio do meio de comunicação, especialmente a televisão, é decisivo. Não é ocioso recordar que o brasileiro consome pelo menos 8 horas de televisão diária enquanto observamos a redução do consumo do livro, geralmente caro e quase completamente vetado às classes populares.
O sistema de legitimação do grande empresariado indica que a concorrência e, portanto, o risco, é uma mola propulsora do capitalismo e condição para seu dinamismo. Não obstante, nos países centrais desde há várias décadas o comando das decisões de investimento depende do estado e dos monopólios. Nas economias periféricas, este processo de monopolização é ainda mais precoce, pois nossos países jamais conheceram um período de capitalismo concorrencial que por período muito curto se verificou nos Estados Unidos e Inglaterra. Mas tanto nos países centrais como nos periféricos as evidências são abundantes contra a ideologia, pois tudo que o empresário moderno deseja é exatamente o oposto do que prega, razão pela qual faz tudo que esta a seu alcance para evitar o risco e fugir da concorrência. O meio mais eficaz para lográ-lo é o controle do estado e existem muitas formas de controlar o estado. A primeira é educar a burocracia estatal em função dos interesses privados, o que certa sociologia da ordem denomina profissionalismo dos funcionários públicos; a segunda, diminuir drasticamente a capacidade de controle da burocracia estatal. Este último caso foi um recurso muito utilizado nos processos de modernização capitalista aplicado na América Latina a partir de 1982. Esta modernização capitalista – que a esquerda liberal chama de neoliberalismo – atuou precisamente diminuindo a contratação de funcionários ou reduzindo sua capacidade de atuação (entende-se, por isso, a insistência da direita em identificar como ameaça qualquer aumento com o custeio do estado), de tal forma que o estado não pode controlar a riqueza da Amazônia, o Banco Central não monitora o “mercado” financeiro e setores estratégicos do estado dependem objetivamente das empresas ou dos bancos para cumprir as funções que cabem exclusivamente a ele exercer.
Contudo, entre todos os mecanismos que evitam a concorrência, o mais apreciado pelos monopólios é aquele que garante a posição de mercado (privilégio de monopólio) por 20 ou 30 anos por meio de lei. Este era o caso, por exemplo, da RCTV e tem sido a norma para o setor das comunicações como para tantos outros em muitos países. Os empresários alegam que necessitam de “segurança” para fazer seus investimentos e contratos quase eternos tornam-se uma norma tão indispensável quanto o oxigênio para os seres humanos. E a vocação para risco? Ora, neste contexto um contrato de 20 anos equivale quase a um reino de mil anos... Na Venezuela, resulta que o futuro chegou precisamente quando a Revolução Democrática Bolivariana avançava a passos largos na refundação do Estado e pretende a superação da democracia representativa indicando que o futuro será da democracia participativa e as inevitáveis consultas diretas a população quando algo substancial esta em jogo.
Finalmente, uma reflexão sobre a democracia e os meios de comunicação desde o ponto de vista de governos populares. A esquerda brasileira é predominantemente liberal e somente cosmeticamente marxista ou radical, razão pela qual não avança de maneira decidida na democratização dos meios de comunicação, embora professe apreço pela democracia todos os dias. Observem, por exemplo, a política oficial do governo Lula no que diz respeito a concessões públicas de rádio e televisão, para verificar que não existe razão plausível para que a UNE, a CUT, a FENAJ, ou outras entidades não possam dispor de canais abertos de televisão e rádios com alcance nacional. Perguntem a razão pela qual podemos dispor de 60 ou mais canais na televisão fechada enquanto condenamos grande parte da população a miserável programação dos canais abertos que, a rigor, não oferecem opções reais. Afinal, a falta de uma política de concessões efetivamente democrática só pode ser entendida como uma declaração de aberto temor da capacidade da opinião pública em decidir sobre os rumos do país quando for melhor informada, quando conseguir “ouvir os dois lados”, mesmo quando a esquerda ou o que sobrou dela esta quase que completamente domesticada.
Quando decidiu apoiar abertamente e preparar durante meses a greve petroleira de dezembro de 2001 que gerou grave crise econômica e a paralisação quase completa do estado, a RCTV sabia que violava abertamente a busca da verdade e as leis que deveria respeitar. Da mesma forma, quando decidiu participar ativamente da derrocada do Presidente Chávez no golpe de abril de
A Venezuela esta vivendo grandes transformações e seu governo não esta imune a cometer erros. Contudo, é igualmente óbvio para qualquer escritor ou jornalista honesto que grande parte das transformações opera no sentido de dar mais poder as maiorias, historicamente afastadas das decisões. Não podemos ignorar que mesmo sofrendo a completa oposição dos monopólios dos meios de comunicação, da igreja católica, da Embaixada de Washington, das multinacionais petroleiras, do empresariado local, o presidente Chávez venceu no voto todos os desafios. Mas não apenas isso: as medidas que tomou até o momento, na grande maioria dos casos, favoreceu o controle que todo povo deve ter sobre o estado. O controle nacional sobre a riqueza petroleira, o fim do analfabetismo, a democratização de empresas estatais, os referendos e plebiscitos constantes indicam que o estado venezuelano se fortalece na exata medida em que se democratiza. Portanto, é perfeitamente compreensível que o cerco midiático a Revolução Bolivariana siga com força nos próximos anos, pois se trata de um exemplo que não pode prosperar.
Quando comparamos com o que ocorre no Brasil, entende-se melhor porque toda medida tomada pelo presidente Chávez representa uma ameaça para os interesses consolidados em nosso país, o que motivará a oposição conhecida. Não haverá informação, nem mesmo oposição inteligente. Restará a censura voluntária ou o culto do ceticismo pseudo-crítico que, evitando a crítica orwelliana em seus pontos centrais, cultiva as conclusões mais convenientes para os objetivos de manutenção da ordem afirmando que “em política, nada mais podemos fazer do que concluir qual dos dois males é o menor”. E claro, já fica estabelecido que a Revolução Bolivariana é pior dos males em análise.
O fim da concessão pública a RCTV continuará sendo objeto de “incompreensão” por parte de jornalistas e escritores independentes e a opinião publica manufaturada, pois a relação governo/mídia no Brasil pode ser observada claramente quando em episódio recente um dos comentaristas de horário nobre da Rede Globo – principal monopólio no Brasil – é demitido de suas funções e, pouco tempo depois, assume a condição de ministro de estado sem constrangimentos. Os “críticos” de esquerda logo dirigiram suas baterias contra um jornalista famoso responsável pela violação do sagrado principio ético da independência, fato que certamente contribuiu para arranhar ainda mais a já combalida credibilidade da profissão. É sintomático que estes mesmos críticos não focaram no fundamental: a linha que deveria dividir os interesses públicos – e o governo – do reino dos monopólios. Contudo, aqui não há com o que se preocupar, pois como todos sabem a liberdade de imprensa e a democracia está mesmo sendo atacada na Venezuela.
- Nildo Ouriques, Professor do Departamento de Economia e Presidente do Instituto de Estudos Latino-Americano da Universidade Federal de Santa Catarina (IELA-UFSC) (www.ola.cse.ufsc.br)
[1] Contudo, também a vitalidade crítica de Orwell perde força quando chega ao Brasil. Com freqüência oelogio ao ceticismo – esta doença que todo estudante de jornalismo parece obrigado a contrair precocemente como condição para o exercício profissional – enterra a vocação crítica presente nos escritos do autor de Homenagem a Catalunha. Talvez por esta razão, o jornalista Daniel Pizza apresentou Orwell tão somente como um “liberal anglo-saxão” que defendia a “democracia e o realismo”; no mesmo diapasão, reduziu a radicalidade do autor inglês ao considerar que em política, tudo se resume em “concluir qual dos dois males é o menor”. É preciso recordar que Orwell qualificava o capitalismo como “tirania”, adjetivo que torna qualquer escolha política muito mais dramática e finalmente impede de apresentá-lo simplesmente como um “liberal anglo-saxão”. A propósito da importante contribuição realizada pelo jornalista na divulgação da obra de Orwell, não posso senão lamentar a ausência de um texto tão imprescindível para nós quanto necessário para perceber a trajetória intelectual do autor, como Politics and the English Language, ausente
[2] Smith, Adam. Investigación sobre la naturaleza y causas de la riqueza de las naciones, p. 437, FCE, Sexta reimpresión, México, 1990. No momento em que encerro esta breve reflexão, os jornais anunciam que a empresa de publicidade canadense Thompson Corp. comprou a agência de notícias e informações financieras Reuters por 17,2 bilhões de dólares. Com a aquisição, a nova empresa será o maior grupo de notícia financiera do mundo, com 34% do mercado, um pouquinho acima da Bloomberg que detêm 33 e era a atual líder mundial.
[3] Hobson, J. A. Estudios sobre el imperialismo, p. 76, Alianza Editorial, Madrid, 1981.
[4] Chomsky, Noam. Ilusiones necesarias. Control del pensamiento en las sociedades democráticas. Libertarias/Prodhufi, Madrid, 1992.
[5] Halimi, Serge. Os novos cães de guarda, Editora Vozes, p. 15, Petrópolis, 1998.
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