Maio de 2006 44a A.G. da CNBB — Não é documento oficial da CNBB —

Análise de Conjuntura

27/08/2002
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Apresentação

As eleições deste ano são o eixo estruturador desta Análise, porque elas trazem à tona a grande questão de um Projeto de Nação cuja viabilidade depende necessariamente da solidariedade com os demais povos sul-americanos.  Essa questão está polarizando o debate entre o Movimento Social que se identifica como portador daquele Projeto e uma coalizão conservadora que usa todos os recursos para obstruir um processo de mudanças estruturais.  Esse debate não se dá num clima democrático de respeito às divergências, mas num quadro cultural onde a informação é veiculada por uns poucos mas poderosos grupos que controlam a mídia, dificultando a formação de uma real opinião pública.  As dificuldades na elaboração de projetos políticos viáveis ou sua efetivação como políticas públicas (como é o caso da Reforma Agrária), bem como as sucessivas denúncias – e casos reais - de corrupção nos três poderes da República levam ao desalento os setores comprometidos com o ideal de um Brasil justo, democrático, pacífico e solidário com os outros povos.

Esta análise quer examinar com objetividade essa complicada realidade política, tendo em vista apontar pistas para a reflexão e a ação de quem não se deixa desanimar pelos percalços da condição humana e acredita que o Reino de Deus começa a realizar-se na história.  Ao final, como já é habitual, abordaremos temas em debate no Congresso Nacional que mais diretamente concernem a Igreja.

Para não alongar demais o texto, desta vez não são abordadas as questões internacionais, porque sua complexidade exige muito cuidado para não ficar superficial.  Basta mencionar questões como o fracasso político-militar dos EUA no Iraque, o impasse nas relações entre o atual governo de Israel e a Autoridade Palestina, as dificuldades de um acordo justo para o comércio mundial e as tentativas de repressão aos movimentos migratórios.  Além da perspectiva latino-americana, contudo, há uma questão internacional que não pode ser deixada de lado, porque condiciona todo projeto de desenvolvimento nacional: é a da crise ecológica que se avizinha.  Ela obriga que sejam pensados e elaborados projetos que não se fundem no crescimento industrial predatório (como tem sido até hoje o desenvolvimento capitalista, modelo seguido pelos países “emergentes” – China, Índia, Rússia e Brasil).

 

I.  O parâmetro ecológico como condicionante do desenvolvimento

Está constatado que a Terra passa por importantes mudanças não naturais, porque provocadas pela atividade humana.  O aumento de dióxido de carbono, metano e outros gases provoca o “efeito estufa”, com conseqüências evidentes como o acelerado degelo nos pólos e o recuo das geleiras em regiões montanhosas.  O aumento das catástrofes naturais indica que as ameaças são bem reais.  Também cresce a consciência que se tem delas, mas os maiores poluidores opõem seus interesses econômicos às decisões a serem tomadas[1]

Não se pode hoje pensar modelos de desenvolvimento sem integrar, como fundamental, o desafio da sustentabilidade – já que o modelo neoliberal é insustentável.  Trata-se da sobrevivência das plantas, animais e seres humanos, sua integridade, convivência pacífica e felicidade.  Como o indica a “Carta da Terra” aprovada na Unesco em 2000, trata-se de construir “um modo de vida sustentável”, com as suas quatro dimensões: ambiental (preservação da vida), social (integração e convivência), mental (ética e espiritualidade) e integral (vida plena para cada um e para todos).

Quase simultaneamente, no mês de março, houve, no México o “4o Fórum Mundial da Água” com ministros de mais de 150 países; em Curitiba, o “3o Encontro das Partes do Protocolo de Cartagena sobre a Biossegurança” e a “8a Conferencia das Partes da Convenção da Diversidade Biológica”; e em Porto Alegre, a “Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural”, organizada pela FAO.  Entre temas tão ricos e complexos, destacaremos o que foi dito sobre a água. 

O “Fórum Mundial da Água”, organizado por governos, organismos multilaterais e transnacionais, teve como contrapropostas: o “1o Fórum Alternativo em Defesa da Água”, e o “Tribunal latino-americano da água”, com mais de 30.000 pessoas nas ruas para defender o “direito humano à água”.  O Fórum terminou em 22 de março, dia em que foi reestatizado o serviço de água e saneamento de Buenos Aires.  A declaração final adotou uma posição vaga sobre o tema mais controvertido: “Sublinhamos a necessidade de incluir a água e o saneamento como prioridades nacionais, em particular nas estratégias nacionais de desenvolvimento sustentável e de redução da pobreza”.  A proposta do direito humano à água, defendida por vários países (Bolívia, Venezuela, Argentina, Uruguai, Cuba, Índia) e pela sociedade civil, não passou.  Vários países europeus também defenderam o “direito fundamental” à água.  Essa posição se deve à crescente mobilização das populações contra a privatização (em particular na AL).

 

II.  O projeto de Desenvolvimento Nacional e seus oponentes

Breve história dos projetos para o Brasil

A pertinência das análises de conjuntura depende do modo como se referem às estruturas da sociedade.  Convém aqui explicitar essa referência para, ao mesmo tempo explicitar a originalidade do projeto que visa tornar a sociedade mais justa, democrática e benéfica para todos os seus membros.  Todo projeto de sociedade nasce no terreno da história social.  O projeto ainda hoje vigente no Brasil é herdeiro do antigo projeto colonial, implantado desde o século 16, para fazer desta terra e de seus habitantes fonte de riquezas para a metrópole.  Nele, um pequeno mas poderoso grupo, diretamente ligado à metrópole e a ela subordinado, detém o controle da terra, dos capitais, do poder político e da cultura oficial.  Por ocasião da independência, no século 19, a metrópole portuguesa perdeu a hegemonia, mas seu lugar foi ocupado pela Inglaterra.  No século 20, as duas guerras mundiais provocaram um novo arranjo nas relações internacionais e os EUA passam a ocupar posição equivalente à antiga metrópole, abastecendo-se aqui de produtos primários e assegurando um mercado para seus produtos.

Apesar das muitas revoltas e movimentos contra esse projeto colonial, só em meados do século 20 começa a ser elaborado um projeto de Desenvolvimento capaz de reconstruir a Nação sobre novas bases.  Formulado inicialmente por intelectuais, pouco a pouco ele ganha a adesão dos setores médios e populares.  Registrou avanços na área econômica – como a industrialização e a criação de um setor empresarial que tornou o Brasil a 8ª economia mundial na década de 1970 – e também na área social – como a universalização da educação, saúde e previdência social na Constituição de 1988.  Mas sofreu também revezes, como a estagnação econômica dos últimos 25 anos e as reformas neoliberais que desde 1995 tentam expurgar da Constituição as conquistas populares como se estas fossem um “entulho social” prejudicial ao equilíbrio fiscal.  É nesse confronto de projetos que hoje se situa o debate entre os movimentos sociais e as oligarquias oriundas da casa grande.

Imprescindível é a apropriação pelo povo, desta história de lutas para garantir um novo projeto de sociedade libertada da sua dominação secular.  As palavras de ordem, veiculadas por movimentos sociais, nos anos 50-60, assinalaram a recusa do “entreguismo” e a aspiração às mudanças estruturais incluindo a Reforma Agrária.  As oligarquias apelaram às Forças Armadas para garantirem sua hegemonia.  A pretexto de combater a subversão, foi esmagado o projeto nacional-desenvolvimentista original, só restando o objetivo do crescimento econômico.  Aliás, até hoje o complexo e rico conceito de Desenvolvimento tem sido reduzido ao crescimento econômico, na melhor das hipóteses acrescentando-se alguma forma de distribuição de renda.  O restabelecimento de um Estado de Direito realimentou a esperança de uma “Nova República” que entretanto não chegou às populações socialmente excluídas, principalmente do Nordeste e do Norte, vítimas seculares das oligarquias.  A Constituinte nos anos 86-88 revelou entroncamentos e entrechoques.  Por um lado, houve afirmação e garantia dos direitos sociais; por outro lado o “Centrão” - braço político de oligarquias surdas aos anseios populares - conseguiu bloquear reformas essenciais como a Reforma Agrária.

A eleição de Lula, em 2002, veio dar novo alento aos Movimentos Sociais que constroem, passo a passo, um Projeto de Nação que livre o Brasil das seculares estruturas de subordinação às metrópoles, hoje definidas não mais por um poder político geograficamente localizado, mas pelo poder financeiro atuando globalmente.  De fato, como veremos a seguir, seu governo tem sido reconhecido como mais favorável aos Movimentos Sociais e a um projeto de Desenvolvimento Nacional, do que os anteriores.  Sua subordinação, porém, ao capital financeiro e à política macroeconômica de concentração de renda que ele impõe, reduz muito o volume de recursos públicos para a melhoria das condições de vida da população em geral[2].  A maior parte da pesadíssima carga tributária sobre quem trabalha e quem compra não retorna para o conjunto da população, mas para quem detém os títulos da dívida pública.  Temos, pois, um contexto ambivalente, onde a frustração por ter um governante incapaz de enfrentar politicamente as antigas oligarquias, é contrabalançada por outras políticas corretas e pelo aumento da autoestima popular, ao ver no mais alto posto da República alguém pessoalmente identificado com suas condições de vida e seus anseios.

Os Movimentos Sociais hoje

Sendo hoje os principais portadores do projeto de reconstrução nacional a partir da efetiva extensão da cidadania a toda a população brasileira, os Movimentos Sociais vêm buscando formas de expressão capazes de envolver também as grandes massas na perspectiva de um Projeto de Nação para o Brasil.  Ganham vulto hoje, a partir da 4ª Semana Social Brasileira, as Assembléias Populares Estaduais e Nacional, que representam uma proposta real de aglutinação das forças populares do país, tentando superar a fragmentação provocada pelas disputas de poder pelos partidos políticos e por práticas corporativistas dos próprios movimentos sociais.  Busca-se uma nova síntese que motive as mobilizações sociais e dê maior organicidade às suas lutas específicas, direcionando-as para a construção de uma nova sociedade.  Atualmente, situa-se aqui um dos maiores desafios para os movimentos sociais: a capacidade de seguir mobilizando o povo nas suas lutas e apontar alternativas - teóricas e práticas – para a superação do neoliberalismo ainda dominante.

Outro espaço importante de expressão pública dos Movimentos Sociais foi o II Fórum Social Brasileiro, realizado em Recife no mês de abril.  Diante das opções dadas pelo atual quadro eleitoral, os Movimentos Sociais ali representados apontam a necessidade de o Governo Lula sinalizar concretamente seu compromisso com as bandeiras históricas apresentadas pelos movimentos sociais, e alertam para o risco de retorno às políticas sociais neoliberais, o desmonte do Estado Brasileiro e a possibilidade de agravar-se a criminalização dos movimentos sociais.

Houve uma avaliação crítica do governo Lula, afirmando a distância entre o que foi realizado e as metas dos movimentos sociais, principalmente no que toca a política econômica, porém também houve o reconhecimento de que com o governo Lula canais de diálogo foram construídos em várias áreas, a política externa foi soberana, cessou o ritmo de privatizações e o aumento real do Salário Mínimo teve impacto importante na vida dos “de baixo” da pirâmide da sociedade brasileira.  No entanto, esses tímidos avanços não podem ser motivo para que os movimentos sociais abandonem o seu protagonismo histórico na resistência ao modelo e aos governos neoliberais.

Há uma retomada importante de ações dos movimentos sociais, especialmente ao se contraporem à ofensiva conservadora da oposição de direita, na perspectiva de pressionar o governo para investir mais recursos nas políticas sociais, como recursos para agricultura familiar, programas sociais, reforma agrária, pagamento dos passivos com os atingidos por barragens, entre outras políticas públicas que só poderão ser efetivadas com uma drástica redução dos juros e do superávit primário. 

Grandes metas do Projeto de Nação

            Para resgatar um projeto para o Brasil, é imprescindível a mediação do campo político, de modo a inverter a “ordem” de uma sociedade regida pelo mercado e prioriza o capital, e construir um projeto de sociedade onde o povo é sujeito político da sua história.  Para um novo projeto de sociedade, as populações apropriam-se do seu destino e tornam–se atores políticos, assumindo bandeiras sociais e políticas.  À medida que avança o processo de elaboração de um projeto, ele vai-se reformulando, de modo a corrigir defeitos e suprir falhas.  Isso ocorre também com o projeto de Desenvolvimento Nacional oriundo dos Movimentos Sociais.  Sua reformulação mais recente, inspirada na 4ª Semana Social Brasileira e na Assembléia Popular de outubro de 2005, foi sintetizada pela CNBB em sua “cartilha” para as eleições de 2006.  Essa síntese é aqui retomada porque a CNBB tem sido uma parceira histórica dos Movimentos Sociais no Brasil, desde os anos 1970.

Recordando o Ensino Social da Igreja, o documento lembra que a construção de um novo modelo de sociedade para superar a hegemonia neoliberal exige um conjunto de virtudes éticas e civis que possam constituir um ethos de uma sociedade solidária.  Exige o exercício de valores como: a liberdade, a solidariedade, a igual dignidade da pessoa humana, a destinação universal dos bens, o respeito à natureza e ao direito à vida das gerações futuras, e a primazia do trabalho sobre o capital e da pessoa humana sobre as instituições.  Dado este parâmetro, ele aponta as grandes opções do projeto de Nação para os dias de hoje:

Democratizar o Estado e ampliar a participação popular.  Trata-se de assegurar e ampliar os direitos sociais inscritos na Constituição de 1988, como a universalização dos serviços de saúde, educação, previdência, moradia, segurança, alimentação e respeito às diversidades; regulamentar os processos de referendos e plebiscitos, e constituir comitês populares de acompanhamento dos gastos públicos.

Rever o modelo econômico e o processo de mercantilização da vida.  Os bispos não hesitam ao afirmar a necessidade de o Estado regular o mercado para garantir a prioridade da qualidade de vida sobre os interesses do sistema financeiro.  Por isso, recomendam o incentivo público à economia solidária, como forma de geração de renda, e insistem na auditoria da dívida pública, conforme preconizado pela Constituição Federal.

Ampliar as oportunidades de trabalho.  Diante das ameaças de flexibilização dos direitos do trabalhador e de empresas sem a devida responsabilidade social, a Igreja reafirma o trabalho como direito universal que deve ser assegurado por políticas públicas que busquem o pleno emprego e assegurem um salário justo, tanto no campo quanto na cidade.

Fortalecer exigências éticas em defesa da Vida.  Para que todos tenham os meios para viver uma vida digna, desde a concepção até o final de seus dias, os poderes constituídos não só devem recusar qualquer projeto que atente contra a família, legalize o aborto ou a eutanásia, como devem garantir boas condições de saúde especialmente à mulher e à criança.

Reforçar a soberania da Nação.  Nenhum povo deve deixar seus recursos naturais à mercê de interesses financistas.  Por isso, cabe agora garantir a água como bem público, proteger a biodiversidade e assegurar o uso do solo agriculturável a todos os brasileiros, principalmente os pequenos agricultores, povos indígenas e quilombolas.

Democratizar o acesso à terra e ao solo urbano.  Reafirmando que não se pode confundir “terra de trabalho” e “terra de negócio”, os nossos bispos reclamam uma verdadeira e eficiente reforma agrária e o direito a um espaço adequado na cidade para a população que ali habita.

Proteger o meio-ambiente e a Amazônia.  A Amazônia precisa ter um modelo específico para seu desenvolvimento, fundado em pequenos projetos de base local que evitem as práticas predatórias e a privatização de bens coletivos, contidas nos grandes projetos capitalistas.

Novamente em cena o pseudo-moralismo

A cultura política brasileira tem, entre outros, este mecanismo que impede a mudança real e profunda na sociedade.  Nem é primeiramente que vise a permanência da desigualdade, da marginalidade e do atraso.  Certamente não em nível de discurso.  O mal que faz é que, obcecado pelo joio, não deixa crescer o trigo.

Se olharmos os momentos históricos em que reemerge com força, temos evidência de sua natureza ideológica e conservadora.  Quando as camadas populares começam a organizar-se e se fazerem senhoras do destino, o pseudo-moralismo se afirma procurando justificar-se pela defesa da ordem, da família, do direito ou da tradição.  O mesmo pseudo-moralismo que há meio século se chocava com os romances do governante, não se importando com o tratamento dado aos operários que deviam construir a nova capital em quatro anos, hoje se mostra indignado quando "agitadores" contrariam as normas de bom-comportamento cívico para fazerem aparecer na mídia suas críticas e reivindicações.

Esse pseudo-moralismo se dá, como fenômeno político, substancialmente em nível do discurso.  Tem como traços característicos a redução de todo valor à dimensão moral individual - o que no limite o leva a imputar os efeitos colaterais inevitáveis no processo histórico à intenção pessoal de quem toma a decisão – e o culto da "pureza", da perfeição de cada ato e processo.  Isto é nítido na sua vertente jurídica: nossa tradição sempre buscou a perfeição formal, daí resultando leis excelentes em si mesmas, embora não se cumpram.

Esse pseudo-moralismo é paralisante porque toda opção humana pode ser criticada, já que nunca consegue atender a todos os valores em jogo.  Quem opta assume certas prioridades, mas não outras.  Assim, o pseudo-moralista questiona a validade ética da opção tomada, porque o agir concreto é sempre imperfeito e o moralista típico quer todas as coisas boas ao mesmo tempo.  Fica ofendido e se sente incompreendido, se dizem que é fator de atraso ou da desigualdade.  Mas se todos os valores são prioridade, não há prioridade.  O pseudo-moralista tem aversão ao risco, por pavor da culpa.  Como toda decisão humana é grávida de erros possíveis e de desvios de rota, o ideal são mãos imaculadamente limpas por nada tocarem, nada fazerem.  Com isso, o status quo passa a ser o único parâmetro real e efetivo de ação, pela vantagem de já existir.

Aí esbarra o projeto de construção da Nação sobre as novas bases da cidadania estendida a todos, porque tampouco ele será perfeito...

III.  O que está em jogo nas eleições de 2006

As eleições na América Latina

A América Latina emerge no cenário político e eleitoral, como um ente de grande importância, indicando que vem crescendo nos projetos de nação a identidade latino-americana.  De um lado, as propostas que defendem a auto-sustentabilidade econômica da América Latina; de outro, as propostas de alinhamento com os países ricos do capitalismo central, como na ALCA ou em parceria com os Estados Unidos.  Estas propostas encontram-se no centro da disputa eleitoral no Brasil e nos outros países da América Latina.

Do lado da proposta de sustentabilidade latino-americana e de integração econômica e cultural, há esforços para a criação de um gasoduto continental, de uma PETROSUL e TELESUL.  Trata-se uma estratégia de longo prazo para o controle dos recursos energéticos como base para o desenvolvimento integrado da região, e não apenas de interesses comerciais imediatos.  As conversações neste sentido reúnem Chávez, Kirchner, Morales e Lula.  A grande mídia tem atacado tais iniciativas, insistindo que elas são inviáveis e que fortalecem lideranças “populistas”.  Já os responsáveis por essa política de integração afirmam que é ele fundamental para dar bases a um projeto de crescimento econômico com redistribuição de renda, ampliação do espaço público sob o controle do Estado, maior participação da sociedade, aumento real do salário mínimo e reforma agrária, sem temer o fortalecimento da participação popular nos espaços de poder.

De outro lado, os que defendem a sociedade de mercado sem controle externo, são menos afeitos à ampliação da participação popular e defendem políticas sociais focadas apenas nos setores carentes de proteção social, sem propor a reforma agrária ou uma política salarial como mecanismos privilegiados de redistribuição de renda e riqueza.

O panorama eleitoral latino-americano mostra a disputa entre os dois projetos.  De um lado, quem recusa o modelo do “Consenso de Washington” e busca alternativas numa democracia de massas; de outro, quem insiste na continuidade do projeto de inserção na “globalização” e se contente com uma democracia formal.  Algumas vitórias eleitorais são expressivas quanto ao alinhamento do eleitorado: Chile, Bolívia e Uruguai.  Argentina e Venezuela farão suas escolhas em 2007 e, ao que tudo indica, reelegerão Kirchner, na Argentina, e Chávez, na Venezuela, ambos adeptos da soberania latino-americana.  No México, a disputa eleitoral espelha propostas divergentes, com López Obrador se opondo a Vicente Fox, alinhado aos Estados Unidos.  É exceção a Colômbia, com uma intervenção branca norte-americana em seu território em nome do combate ao narcotráfico.

Este panorama de crescimento do eleitorado de centro-esquerda pode ser explicado pelo fato de que quase todos estes paises são democracias novas, saídas de regimes militares e que no período pos-autoritário, votando em líderes de elites, não viram resultados no campo social-redistributivo.  A pobreza e a desigualdade persistem, com exceção do Chile que nos últimos doze anos elegeu políticos da tendência Concertación, comprometidos com a erradicação da pobreza naquele país e apresentando os melhores resultados da América do Sul.  Um quadro muito semelhante ao da Europa das primeiras décadas do século XX quando os partidos socialistas, de trabalhadores e da social-democracia ganharam as eleições e com o poder adquirido adotaram políticas de bem-estar por meio de um Estado redistributivo.  Se em uma democracia se podem escolher “lados” do processo político, hoje os eleitores se orientam por aqueles que se identificam com suas carências, como o caso dos países citados e das intenções de voto favoráveis a Lula pelos segmentos mais pobres.

É necessário distinguir estas diferentes orientações, sob pena de cairmos no equívoco de haver real conflito entre o Brasil e a Bolívia, para citar apenas um caso recente.  Convém ter presente que a grande mídia está alinhada com os setores conservadores que não querem o Estado construindo a igualdade social.  Acusa-se o Brasil de se curvar diante de Morales e Chávez, para evitar que a política externa brasileira busque um novo equilíbrio com seus vizinhos e torne realidade o projeto de integração latino-americana.

Neste contexto, a posição de Lula é contraditória, porque seu governo não tem sido capaz de realizar o projeto de Desenvolvimento Nacional, mas é o seu maior símbolo não só no Brasil como no conjunto da América Latina (embora isso acarrete o risco do "Lulismo", no qual o líder substitui o Movimento).

Feita esta análise, chegamos à questão axial: em quê o processo eleitoral de 2006 pode fazer avançar ou retardar o projeto de Desenvolvimento Nacional? Cada candidatura trás no seu bojo um projeto que, mesmo não sendo explicitado, dará os rumos do futuro governo, caso seja vencedora.  Neste sentido, os nomes e partidos não são mais do que símbolos de um grupo ou setores sociais com seu projeto para o nosso país.  Ao votar, o eleitor faz uma entre as opções possíveis.  Talvez não seja exatamente aquela da sua preferência, mas a que mais corresponda àquilo que deseja para o Brasil.

Não há uma resposta única à questão.  O Movimento Social, expressando-se por meio do Fórum Social Brasileiro, está pedindo a Lula uma nova "Carta ao Povo Brasileiro", com o claro compromisso de fazer avançar o processo, como condição para apoiar sua candidatura.  Outros setores articulam uma "frente de esquerda" para a disputa do 1º turno, considerando que somente uma forte votação à esquerda trará de volta Lula para a posição que ocupou anteriormente.  Setores sem afinidade com o projeto dos Movimentos Sociais, se articulam em torno a uma candidatura própria.  Outros, enfim, indicam sua opção pelo voto nulo, como se este não representasse um passo atrás no processo de democratização do país. 

IV.  Notícias do Congresso Nacional

Realidade global do Congresso

O Congresso Nacional passa por uma fase de grande descrédito.  Conforme a pesquisa da DataFolha, nos dias 16 e 17/03/06, a sua imagem só piora.  Vejamos os números: ruim/péssimo 41% (33% em fevereiro); regular 37% (43% em fevereiro); ótimo/bom 14% (16% em fevereiro).

A perspectiva das eleições já perpassa todas as discussões.  O reflexo da campanha eleitoral influencia mesmo em projetos fundamentais como aconteceu com a votação do Orçamento.  Poucas matérias têm sido votadas neste período, tendo ainda as Medidas Provisórias como óbice à liberação das pautas de votação.

O Congresso tem vivido momentos fortemente conflitivos pelos embates nas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) que investigam as mazelas e as denúncias do respectivo tema e encaminham para o Conselho de Ética as conclusões relativas aos parlamentares acusados.  O Conselho de Ética aprofunda a investigação e envia seu Parecer ao plenário para votação em plenário.  Tem sido, no entanto, desmoralizado pelo fato dos seus Pareceres serem subestimados.  Alguns dos seus membros chegam a perguntar qual o objetivo real do Conselho de Ética já que o Plenário legaliza a corrupção ao absolver seus pares sem considerar a investigação e a discussão realizadas.

Neste quadro, vem sendo questionado o voto secreto no Parlamento, o que leva o parlamentar a não mostrar a cara aos eleitores.  Há uma Proposta de Emenda Parlamentar (PEC), pronta para ser votada, que põe fim ao voto secreto nas decisões parlamentares.  Foi criada uma Frente Parlamentar, suprapartidária, defendendo o direito essencial do eleitor de saber como o seu parlamentar vota.

Relatório da CPI dos Correios

A CPI dos Correios teve grande repercussão.  Nove meses de investigação resultaram num relatório de mais de 1.800 páginas.  O seu relator-geral, deputado Osmar Serraglio, não só confirma a existência do pagamento de mesadas a deputados, como refuta a tese de que se tratava apenas de recursos de “caixa dois” eleitoral.  O texto informa que Lula ouviu Jefferson sobre o chamado “mensalão” e pediu providências ao ministro da Articulação Política.  Serraglio não acusa Lula de omissão, mas sugere que ele poderia ter tomado conhecimento dos fatos anormais.  O relator pediu o indiciamento de 115 pessoas, entre elas os ex-dirigentes do PT, direta ou indiretamente responsáveis pelo esquema do empresário Marcos Valério.  Também foram indiciados dezenas de diretores e ex-diretores de estatais envolvidos em irregularidades, o ex-governador de Minas Gerais e ex-presidente do PSDB, dirigentes de fundos de pensão e parlamentares que receberam dinheiro.  Valério recebeu nove pedidos de indiciamento, inclusive por peculato, lavagem de dinheiro e corrupção ativa.  Outras 50 pessoas terão de ser investigadas pelo Ministério Público para aprofundar apurações que a CPI não teve condições de concluir.  A lista de indiciamentos inclui os 19 parlamentares que passaram pelo Conselho de Ética da Câmara.  A descrição das irregularidades nos Correios, estatal que batizou a CPI, ocupa juntamente com a apresentação do relatório, as primeiras 474 páginas do documento.  Segundo o relatório, o Brasil tem que adotar com urgência mecanismos que reduzam a corrupção, a começar por mudanças na legislação para fiscalizar as operações financeiras.  Fica porém sem resposta uma pergunta: por que os deputados do próprio PT precisariam receber propina para votar com o governo?

Novas regras para as eleições

Foi aprovado o projeto da “minirreforma eleitoral”.  Esperava-se uma Reforma Política ampla para barrar futuras corrupções, mas os parlamentares não cortaram na própria carne.  Os principais pontos da minirreforma são: os programas de rádio e televisão serão restritos a gravações do candidato e dos filiados ao seu partido em estúdio, sendo vedadas gravações externas, desenhos animados e conversão para vídeo de imagens gravadas em películas cinematográficas; fica proibida a divulgação, na imprensa escrita, de propaganda eleitoral de candidato, partido ou coligação; passa a ser vedada a utilização de outdoors, pichações, fixação de placas, faixas, a distribuição de camisetas, bonés, cestas básicas...  A Lei deve fixar o limite dos gastos de campanha mas, se a Lei não for publicada, caberá aos partidos políticos fixar este limite e comunicar à Justiça Eleitoral; o candidato terá registro cancelado ou o diploma cassado se comprovado abuso de poder econômico; as doações de recursos financeiros somente poderão ser efetuadas em conta registrada por meio de cheques cruzados e nominais ou transferências eletrônicas de depósito; os partidos, coligações e candidatos serão obrigados a divulgar na página criada pela Justiça Eleitoral, na Internet, um relatório discriminando os recursos recebidos para financiamento de campanha...

Instituto revocatório de mandatos eletivos

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC), Nº 1/2006, é uma iniciativa da OAB, acolhida pelo Senador Pedro Simon.  Na proposta, o artigo 14 da Constituição que trata das várias formas de votação, inclusive dos instrumentos de participação popular, será acrescido de um artigo sobre o instituto revocatório de mandatos eletivos[3].  É justificado pelo princípio basilar da democracia no artigo 1º da Constituição Federal “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição”.  O novo artigo, 14A, diz: “Transcorrido um ano da data da posse nos respectivos cargos, o Presidente da República, ou os membros do Congresso Nacional, poderão ter seus mandatos revogados por referendo popular”.  Seus principais parágrafos: o mandato do senador poderá ser revogado pelo eleitorado do Estado por ele representado; o eleitorado nacional poderá decidir a dissolução da Câmara dos Deputados, convocando-se nova eleição, que será realizada no prazo de três meses; o referendo previsto neste artigo realizar-se-á por iniciativa popular, dirigida ao Superior Tribunal Eleitoral; o referendo para revogação do mandato do Presidente da República poderá também se realizar mediante requerimento da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, dirigido ao Tribunal Superior Eleitoral.

Projeto de Segurança Alimentar

Tramita já na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara o Projeto de Lei que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN.  Seu objetivo é formular políticas, planos, programa e ações voltadas a assegurar o direito humano à alimentação adequada.  O Projeto define a alimentação adequada como direito fundamental da pessoa humana, indispensável à realização dos direitos constitucionais, e remete ao Poder Público a responsabilidade de adoção das políticas necessárias a promover e garantir a segurança alimentar.  Para tanto, será criado o SISAN, integrado pelas três esferas de governo e por instituições públicas e privadas, com ou sem fins lucrativos.  Para o funcionamento do aludido Sistema são previstos os princípios e diretrizes que devem nortear sua atuação, bem como a criação de órgãos definidores da política correspondente.

Teologia e capelania como profissão

Dois Projetos de Lei sobre temas religiosos chamam especial atenção.  Um dispõe sobre o exercício da profissão de teólogo; o outro propõe regulamentação da profissão do capelão cristão.  Ambos são propostos por parlamentares evangélicos que, conforme levantamento recente, contam na bancada evangélica, com 56 deputados (destes 33 são pastores ou bispos) e 03 senadores.

O Senador Marcelo Crivella é o autor do Projeto sobre o exercício da profissão de Teólogo.  Ele propõe a criação de um Conselho Nacional de Teologia e suas seccionais levando em consideração o reconhecimento da Teologia pelo Ministério de Educação, desde 1999, como uma área específica do conhecimento humano.  Outro Projeto defende a atividade do profissional capelão cristão, explicitando que consiste em “dar assistência espiritual cristã em hospitais, presídios, orfanatos, asilos, creches, albergues, escolas, áreas militares, empresas e instituições governamentais”.  Este capelão, conforme o projeto, é um profissional com afiliação ao Conselho Federal de Capelania Cristã do Brasil (CFCB), a ser criado para assumir o controle do trabalho das capelanias.  O Projeto está em tramitação na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público.  É curioso a CNBB não ter sido ainda consultada nem solicitada a opinar diante de assuntos com conseqüências sérias para a Igreja Católica.  Estamos, no entanto, acompanhando estes projetos, sugerindo relatores e solicitando audiências públicas para ampliar o debate.

Reservas de vagas nas Universidades

O Projeto de Lei 73/99 cria o sistema de reserva de vagas para universidades públicas baseado no desempenho dos alunos no Ensino Médio.  O Projeto destina 50% das vagas para quem cursou o Ensino Médio em escolas públicas, reservando um percentual para alunos negros, pardos e indígenas, de acordo com a participação dessas etnias no conjunto da população de cada estado.  O atual relatório do Projeto, já aprovado em três comissões permanentes da Câmara, poderia ter seguido para o Senado, em caráter conclusivo.  No entanto, um requerimento do deputado Alberto Goldman, solicitou que ele fosse discutido e votado em Plenário.  O Colégio de Líderes convocou uma audiência pública para ouvir o Ministro da Educação, a Ministra da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, professores universitários e líderes.  Representavam opiniões divergentes, com um debate acalorado.  Em princípio, o projeto deve ser encaminhado para a votação na Câmara ainda no mês de maio.  O Ministério da Promoção da Igualdade Racial e os seus Conselheiros tentam convencer os Deputados da importância do tema.

Projetos sobre Estatuto da Pessoa com Deficiência

Há projetos em circulação, nas duas casas do Congresso, sobre o Estatuto: no Senado tem como relator o Senador Flávio Arns e as comissões permanentes já o aprovaram.  Na Câmara é um projeto de lei do ano 2000, do então deputado Paulo Paim.  Quando um dos dois chegar à outra casa serão fundidos num só projeto.  A Campanha da Fraternidade deste ano contribuiu para impulsionar novos passos em sua tramitação.  Foi enviada uma solicitação da CNBB aos Presidentes das duas casas legislativas pedindo aceleração no seu andamento.

Contribuíram para esta análise Pe. Ernanne Pinheiro, Lúcia Avelar, Pe. Antônio Abreu SJ,
Pe. 
Thierry Linard, Daniel Seidel, Pe. Bernard Lestienne e Ir.  Delci Franzen.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira

Membro da Equipe de ISER-Assessoria



[1] Em setembro de 2005, o G8 se comprometeu a atacar o aquecimento, mas os EUA conseguiram baixar o tom da declaração: o pedido de ação imediata sumiu do texto final, e as metas seguem vagas e sem prazo.  O protocolo de Kyoto, para conter a emissão dos gases-estufa, em vigor desde janeiro de 2005, não se cumpre como previsto por causa da oposição dos EUA.

[2] O ministério da agricultura trabalha em favor das grandes propriedades de extensão-exploração e do agro-negócio.  O ministério do Desenvolvimento Agrário trabalha em favor das pequenas formas de produção familiar.  O crédito rural é 10 vezes mais importante para o agro-negócio que para o Pronaf (42 e 4 bilhões de reais respectivamente na última safra).  Na estimação do PIB, a parte atribuída à renda do trabalhador está baixando cada vez mais, entretanto a da renda atribuída ao capital não para de crescer.  Isso explica que o Brasil ocupa o 73º lugar no ranking do desenvolvimento humano sendo ao mesmo tempo uma das 12 maiores economias do mundo.  A adoção de políticas do sistema capitalista neoliberal aprofunda uma verdadeira esquizofrenia entre o econômico-financeiro (paraíso financeiro) e o social (pobreza infernal).  Nos dois últimos anos, somente o serviço da dívida pública foi de 430 bilhões de reais, entretanto foi de 178 bilhões de reais, a soma dos gastos sociais que incluem saúde, educação, ciência e tecnologia, reforma agrária, transporte, e segurança publica.  Para citar mais males no sistema, basta ver a destruição sócio-ambiental da Amazônia pelas serrarias, fazendeiros, mineradoras, sem esquecer a biopirataria que coloca toda a questão da propriedade intelectual de patentes e de biogenética.

[3] A justificativa da proposta, elaborada pelo professor Fábio Comparato, mostra que vários países já utilizam este instrumento.  “Tudo isto nos leva a considerar, diz o texto, a necessidade política de se introduzir urgentemente entre nós o instituto da revogação popular de mandatos eletivos, ou “recall”, como o denominam os norte-americanos, de forma a fortalecer na vida pública a soberania do povo, dando novas razões para confiar nas instituições democráticas”.

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