A mosca azul
13/03/2006
- Opinión
O poder intriga. Exerci-o poucas vezes: dirigente estudantil,
chefe de reportagem. Mais recente, em 2003 e 2004, assessor
especial do presidente da República, com direito a gabinete no
Palácio do Planalto e uma infra nadda desprezível: secretárias,
celular, viagens aéreas, moradia, carro com motorista, tudo pago
pelo contribuinte.
Muito aprendi. Algumas lições trago de berço. Meu avô e meu pai
também serviram em palácios do governo.
A pessoa revestida de poder qualuer um, de síndico ou gerente,
policial ou político deveria dar ouvidos ao que dela dizem seus
subalternos. Vox populi. Mas não é o que acontece em geral.
Prestamos mais atenção ao juízo dos pares e superiores, em busca
de reconhecimento de quem tem ppoder de ampliar o nosso poder.
Assim, sobre os subalternos desaba aquele nosso outro lado
perverso que tanto esmeramos em esconder aos olhos de nossos
pares e superiores. Todavia, cavalo indomado, se não somos
contidos pelas rédeas da boa educação, ai ds subalternos! Quem
está por cima tem o poder de adverti-los, censurá-los, puni-los
ou demiti-los. Como não nos ameaçam, deixamos extravasar o
demônio que nos habita. Desarrazoados, elevamos a voz,
humilhamos, xingamos, repreendemos, e por pouco não avançamos
para cobrir a vítima de sopapos.
Dê à pessoa uma fatia de poder e saberá quem de fato ela é. O
poder, ao contrário do que se diz, não muda as pessoas. Faz com
que se revelem. É como o artista a quem faltavam pincel, tintas
e tela, ou o assassino que, afinal, dispõe de arma. O poder sobe
à cabeça quando já se encontrava destilado, em repouso, no
coração. Como o álcool, embriaga e, por vezes, faz delirar,
excita a agressividade, derruba escrúpulos. Uma vez investida da
função ou cargo, título ou prebenda, a pessoa se crê superior e
não admite que subalternos contrariem sua vontade, suas opiniões,
suas idéias e seus caprichos.
Na falta de uma psicologia do poder mais sistemática, à qual não
faltam as valiosas contribuições de Adler e Reich, recorrro aos
clássicos da literatura. Desde a Bíblia, destacando-se os livros
do Pentateuco, às obras de Shakespeare, Kafka e o nosso Machado
de Assis.
O dramaturgo inglês bem retrata as ambições e as intrigas do
poder. O autor de A metamorfose revela a sua fce opressiva, a
arrogância, o modo como tende a anular a dignidade do cidadão
comum. E Machado de Assis não faz por menos, embora com mais
sutileza, porém incisivo.
Leia-se o conto O espelho. Ali, um tratado completo de patologia
do poder. O jovem Jacobina, de origem pobre, é nomeado alferes.
Descobre, pois, que “cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora; outra que olha de fora para
dentro.” (...) “Há casos, por exemplo, em que um simples botão de
camisa é a alma exterior de uma pessoa; ‹ e assim também a polca,
o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina,
um tambor etc.”
Recolhido à fazenda da tia, Jacobina se espanta por todos o
tratarem de “senhor alferes” (o que me faz recordar que, no
Planalto, todos são chamados de “doutor” ou “doutora”, ainda que
o funcionário nunca tenha pisado uma faculdade). Sua “alma
exterior” anula a “interior”. Jacobina só se dá conta da
aberração quando se vê a sós na propriedade. Não é a solidão que
o assusta. É a própria insignificância. Havia se acostumado a
se olhar apenas de fora para dentro. Até que, uniformizado,
contempla-se no espelho. Recupera então a auto-estima, o orgulho,
a “alma exterior” que lhe despersonalizara, castrando-lhe a
verdadeira identidade.
Nem todos que ocupam poder deixam que a “alma exterior” prevaleça
sobre a “interior”. Esses fazem do poder serviço e não temem o
juízo de seus subalternos, nem mesmo críticas. Pois sabem que
somos todos feitos de barro e sopro, e o que importa na vida é a
bagagem subjetiva, não os adereços objetivos.
Sem o talento de Machado de Assis, porém inspirado em seu poema A
mosca azul, ousei levar ao papel minha reflexão sobre o poder.
Resultou no livro A mosca azul", que a editora Rocco faz chegar
este mês às livrarias. Meus dois anos no governo Lula me
estimularam a partilhar com os leitores meu ponto de vista a
partir de um ponto o Palácio do Planalto, coração do poder.
- Frei Betto é escritor, autor de “Alucinado Som de Tuba” (Ática),
entre outros livros. Pedidos de “A mosca azul”:
tecacarvalho@uol.com.br
https://www.alainet.org/pt/active/10840
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