Meu carnaval

20/02/2006
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Chega o Carnaval e, com ele, a tristeza de palhaço que vê o circo pegar fogo. Fico surdo aos tamborins, cego à desnudez das mulheres e de nariz tapado ao cheiro ácido do suor quente. É outro o Carnaval que tanto anseio. Não o de salões abarrotados de gritos desconexos, nem desfiles que disfarçam de luxo a indigência do povo. Quero a alegria dalma, arlequim bailando em meu espírito, o odor suave da colombina afagando os meus cabelos. Quero a serpentina enlaçando fraternuras e confetes caindo como estrelas nos telhados de meus sonhos. Quero o rei Momo premiando o meu país de farturas e o corso da alegria atravessando as ruas dos meus passos. Não irei a bailes ébrios de álcool, nem me atarei a cordões que me algemam a liberdade. A mim pouco importa que, no Carnaval, homens se fantasiem de mulheres e mulheres vistam-se como homens. O que ambiciono é mais ousado: virar-me pelo avesso, trazer à tona aquele que sou e não tenho sido, travestir-me de mim mesmo, da minha face mais real e que, no entanto, trago mascarada nos demais dias do ano. É a loucura, essa loucura do sopro divino do qual sou feito. É ela que pretendo expor nas passarelas, nu, sem fantasias, puro como o mais belo dos anjos. Então, voarei alucinado pelas avenidas e, ao aterrissar no sambódromo, provocarei um silêncio reverencial, aquela suspensão de todo respirar que só as epifanias suscitam. A multidão em delírio aplaudirá o próprio êxtase, embriagada de plenitudes. Não encharcarei minha solidão de cervejas, nem mergulharei no mar de espumas brilhantes e ilusões estéreis. Serei insensatamente o clone de mim mesmo, arrancando-me novo de velhas células. Porta-bandeira atrevido, exibirei na escola de samba uma por uma de minhas quimeras, tão palpáveis quanto o amor que dói no peito. Rasgarei a minha fantasia e, com os trapos, tecerei um tapete de utopias, sobre o qual dançarei o mais ousado dos frevos, até que amanheça em minha esperança. Gritarei como os náufragos ao avistarem terra firme e trarei o meu rosto pintado com as cores do arco-íris, para que todos vejam que bani a tristeza que me assalta ao aproximar-se o Carnaval dos incautos, essa demência coletiva que satura os sentidos sem aplacar o desejo. Quero é festa, muita festa, com pierrôs embevecidos frente às promessas sedutoras de odaliscas virgens formando o cordão de madrugadas de silêncio, nas quais nem respiração se escuta, só o ritmo imponderável do mistério. - Frei Betto é escritor, autor de "A Mosca Azul ­ Reflexão sobre o poder (lançamento da Ed. Rocco), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/114390
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