Salve, salve, o povo guarani !
13/02/2006
- Opinión
Entre os dias 5 e 10 de fevereiro de 1756 foram escritas algumas das páginas mais bonitas da história de nosso povo. Nesse período se travaram batalhas que definiram a propriedade do território,que hoje é o Rio Grande do Sul. De um lado, dois exércitos fortemente armados e unidos, do império espanhol e do império Português, abençoados pelo império do Vaticano, que os acompanhava. Do outro lado, o povo guarani, que vivia sossegadamente , organizado em sete povoados,defendendo sua cultura, sua forma de viver e seu território.
250 anos depois, nos reunimos durante os quatro dias, mais de 10 mil pessoas, a maioria jovens, militantes sociais da cidade e do campo, de todo sul do Brasil. E entre nós,1.500 representantes do povo Guarani, vindos de quatro países: Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia. Formamos um acampamento em São Gabriel, Rio grande do Sul, para referenciar ao povo Guarani e o martírio do seu líder SEPE TIARAJU.
Afinal, o que fomos celebrar em São Gabriel, se houve uma derrota, um massacre do povo Guarani ?
Para entender a importância de nosso acampamento e das homenagens aos derrotados, vamos recorrer a historia. Os povos Guaranis, Charruas, Minuanos e Tapes, habitaram desde tempos imemoráveis, o território que hoje é conhecido como Rio Grande do Sul. (segundo os estudos antropológicos, há provas da presença humana no território brasileiro, vindos provavelmente da Ásia, há cerca de 50 mil anos!). E entre os anos de 1600 e 1756 floresceu uma civilização extremamente progressista na região noroeste do território gaúcho, o que compreende desde o norte do Uruguai até o noroeste do Rio grande do Sul, nas margens do Rio Uruguai, e ultrapassando o rio, aonde hoje é a província de Missiones na Argentina e parte do sul do Paraguai. Nesse território se concentraram os povos guaranis e seus aliados Charruas. Organizaram uma forma de vida social impressionante. Foi uma aliança entre o saber milenar do seu povo, com o enciclopedismo europeu que veio com a Companhia de Jesus. Nesses 150 anos, se desenvolveram 33 cidades, que em média chegaram a ter entre 5 a 15 mil habitantes cada uma. Toda terra era de uso e posse coletiva. O trabalho era organizado de duas formas. Uma parte era para toda comunidade e realizado de forma coletiva, e uma pequena parte do tempo podia ser dedicado a afazeres domésticos e cultivos familiares. Não havia fome. Não Havia desigualdade social. Não havia pobres e ricos. Todos eram iguais. Havia já naquela época, pasmem, escolas, e segundo os registros, todas as crianças deveriam ir a escola a partir dos seis anos. (imagine que a primeira escola publica no Brasil foi fundada depois, por D.Pedro II, la pelos idos de 1840..) Nesse sistema econômico, chegaram a ter mais de 4 milhões de cabeça de gado, originalmente trazidas pelos jesuítas e adaptadas aos pampas gaúchos. Havia fartura de alimentos. E grande parte do tempo, as pessoas se dedicavam a atividades culturais, festas, cantorias e intercambio. No povoado de São Miguel das Missões registra-se que havia uma orquestra de crianças e adolescentes que tocavam inclusive violino! Isso tudo, lembre-se lá pelos idos de 1700..
E muitos anos antes da civilização européia implantaram um regime político, que depois ficou conhecido como republica. Ou seja na estrutura de poder dos Guaranis, a eleição dos seus líderes era feita pelo voto de cada habitante, homens e mulheres.
Foi nesse regime que em 1751 foi eleito,pelo voto de todos, como uma espécie de prefeito ou cacique de São Miguel, o jovem guerreiro Sepé Tiaraju. Sepé falava e escrevia três idiomas: guarani, latim e espanhol!
Tudo isso era visto com muita desconfiança e ganância pelos impérios da época. Cansados de fazer guerras entre si, e disputarem o mercado no nascente capitalismo comercial, o Império Português e Espanhol realizaram 1751 o tratado de Madri, que punha fim a suas disputas de mercado. E por esse acordo, também, trocaram, a colônia de sacramento, hoje Montevidéo, um pequeno povoado sob controle dos portugueses, por um imenso território guarani, que ia do norte de Montevidéo ate Assunción no Paraguai, como se fosse espanhol. Era Guarani.
Na verdade foi selada uma aliança entre os dois impérios, para impedir que aquela civilização tão rica e que controlava tanto território se consolidasse, fora do controle do nascente capitalismo. Decidiram então que os povos nativos deveriam abolir sua organização social, abandonar seu território, suas casas, suas sete cidades da margem direita do rio Uruguai e passar todos para o oeste do Rio. Pois do outro lado do rio seria Espanha e do lado de cá, seria Portugal. Grande decisão! Os povos guaranis não aceitaram, apesar das ameaças do Vaticano e da traição da maior parte dos jesuítas que com eles viviam. E resolveram defender seu território e seu modo de viver. Sepé Tiaraju como autoridade máxima dos sete povos, comandou a resistência, com seus 30 mil guerreiros, mas armados apenas com lanças e flechas, tiveram que enfrentar o poder da pólvora e do canhão dos mais poderosos exércitos da época.
A maior parte dos guerreiros foram massacrados, mas não se entregaram! Milhares de mulheres e crianças cruzaram o rio Uruguai e foram viver no que hoje é Missiones e Paraguai. Outros milhares se embrenharam na mata, fugiram, e geraram os que hoje são os remanescentes dos Guaranis, em todo sul do país.
Sepe Tiaraju tombou em combate, no dia 7 de fevereiro de 1756, próximo a um riacho, aonde hoje se formou a cidade de São Gabriel. Foi o inicio do fim. E a batalha derradeira se deu dia 10 de fevereiro nas colinas de Caiboaté, a uns 30 quilometros de São Gabriel. Ali foram massacrados mais de 1500 guerreiros guaranis, traídos pela ilusão de um acordo de paz. Seus corpos estão lá enterrados , sob a sombra de uma enorme cruz. E ninguém se lembrou de fazer qualquer escavação ou pesquisa sobre eles, até hoje.
Foi assim que o território dos guaranis deixou de ser deles e passou a ser de Portugal e mais tarde se transformou em Rio grande do Sul. Suas terras foram distribuídas entre os oficiais portugueses para controlar o novo território, formaram grandes fazendas de gado. E assim nasceu também, o latifúndio da fronteira gaúcha, raiz de uma sociedade desigual e opressora, ate hoje.
Essas batalhas e a figura de Sepe Tiaraju se inserem nas gloriosas lutas de resistência dos povos nativos da América Latina, que enfrentaram com sua coragem e cultura os poderosos impérios. Assim fizeram os Incas e seu Tupac-amaru, no Peru. Assim fizeram os Quéchuas, e seu Tupakatari, na Bolívia, todos no mesmo período histórico de Sepé e os guaranis.
Fomos a São Gabriel nos abastecer dessa coragem, dessa vontade de defender nosso território, nossa cultura, nosso sonho de uma sociedade mais justa e igualitária. Fomos lá buscar energia nos guerreiros guaranis, que no passado enfrentaram os mesmos impérios. Agora, o império não vem invadir nosso território com canhões e cavalaria, agora ele vem com seus bancos (comprando até nossos melhores jogadores..para falsas propagandas!) vem com seu capital, comprando nossas empresas, nossas terras...vem nos explorar cobrando por serviços de telefone, de energia elétrica, que nós mesmo montamos e eles se apropriaram. Vem com suas mais altas taxas de juros do mundo! Mas o sentido da dominação e da exploração das riquezas, é a mesma.
Agora não podem mais contar com parte dos jesuítas, na defesa de sua ideologia. Agora eles invadem com a televisão, com suas mentiras e tonterias!
250 anos depois, a rigor, a luta é a mesma. O povo versus o império do capital !
Talvez seja por isso, que nenhum grande jornal, nenhum grande canal de televisão quis ir a São Gabriel. Estiveram lá apenas a TV Educativa do Paraná e a TELESUR, que pretender ser voz e espaço dos povos da América Latina.
Salve, salve, o povo Guarani, que sobrevive heróico, resistindo há 250 anos!. Resta-nos o consolo, que todos os impérios foram derrotados. E os atuais também serão.
- João Pedro Stedile, Dirigente do MST e da via campesina Brasil
https://www.alainet.org/pt/articulo/114353
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