Procura-se JK

12/01/2006
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Quando perguntam à escritora Maria Adelaide Amaral, se não teme críticas de historiadores ao que ela escreve para a televisão, responde: “O que eu escrevo não é documentário. O texto é romanceado para dar um molho, mas tudo parte da realidade. Em cima do que realmente está documentado, imaginamos cenas possíveis”. Sim, concordamos, tudo parte da realidade. Até mesmo a dramaturgia para as massas brasileiras, que sempre parte de uma certa realidade, a da televisão do Brasil. O leitor já sabe que procuramos nos referir à minissérie JK, a pequena telenovela sobre a vida do ex-presidente Juscelino Kubitschek, no ar da TV Globo desde 3 de janeiro. Resta saber em que a declaração de um dos autores, a dramaturga Maria Adelaide Amaral, se aplica ao produto que vemos todas noites, e em que passo e altura cabe o reparo do parágrafo acima. Capítulo I – Ficção não é documentário Pintura não é tintura. O criar não é imitar. Autor não é ator. O leitor já vê que distinções como essas fazem uma hierarquia, que se afirmam pelo que negam. Burra e estupidamente. Assim é o caso de “ficção não é documentário”. Quem assim se expressa, primeiro, parece confundir documentário com documento, frio e sem voz, e, segundo, não vê, ou parece não ver, que o documentário é uma esfera legítima de trabalho estético. De imediato nos lembramos de Os Anos JK, de Cabra marcado pra morrer, que por sua simples existência falam melhor da vitória da arte sobre o documento frio da História. Mas “minissérie não é documentário”, como foi a exata declaração de Maria Adelaide, é também uma defesa para possíveis críticas de testemunhas e testemunhos e historiadores à liberdade de autor, que, reconheçamos, é um princípio inegociável. Ainda que se confunda liberdade com liberdades, ou leviandades, mais vale a liberdade de que se abusa que o abuso da sua extinção. No entanto, aqui, na minissérie JK, é o espaço onde se invoca um princípio geral de criadores para legitimar um abuso contra a liberdade de criação. Capítulo II – JK não é ficção Há quem pense, e divulgue, e imagine que ficção é um trabalho do mais puro fazer imaginário. Ou, se nos permitem escrever no nível de tal crença, tão perigosa e ignorante quanto um fundamentalismo, há quem pense que ficção é imaginação, com a rima no mundo da danação. Vista assim, a realidade é um puro arbítrio, um reflexo nos sentidos dos comuns mortais, uma coisa precária, sem charme, glamour (esta a palavra da ligeireza artística!), roupa suja que é melhor se deixar em casa, de preferência debaixo da cama. Para tal crença, tudo que não é ficção é realidade. (O leitor imagine o desprezo que assim recebe o mundo.) E, para ser mais tautológico, tudo que não for realidade é ficção. E aqui pegamos o bicho pelo rabo. Em JK, a minissérie, os laços que prendem Juscelino Kubitscheck à realidade são laços de fita. E de chapéus, figurinos, cenários e músicas de época, e fotos, e referências longínquas distantes e breves a nomes de personalidades dos anos da sua formação. Há nesse JK um décor que é digno dos mais caros, no sentido de amados e queridos, e dos mais caros, no sentido de preço em moeda, dos mais caros aplausos, pesados em afeto e em dólar. É uma superprodução. Esse luxo, essa coisa feérica, termina por obscurecer o entendimento para o seu núcleo dramático. Que, perdoem os empresários, é o princípio do mundo. Em JK aparecem atores que recebem o nome de Juscelino. Com fatos e fotos da vida de Juscelino, fatos e fotos, “romanceados”. Deseja-se dizer, romantizados, edulcorados de sentimentalismo até a náusea. Quem procurar uma biografia em imagens, vá para os livros, porque este não é o lugar nem a intenção autoral. (Mas existem autores na televisão? Não seria mais próprio dizer que há um roteiro pré-escrito, a produção, a indústria do entretenimento, que é o destino prévio dos criadores, criadores de pretextos para as vinhetas?) Quem procurar a História, vá para os livros, porque isto aqui não é um documentário. Quem procurar uma boa história, que procure contos e romances, porque Capítulo III – JK é uma ficção... À maneira da televisão. É um novo gênero. Nele, entra um indivíduo e diz para uma bela dama, “Sarah, você me enlouquece”, e ela, “quem é você?”, e ele, “eu sou Juscelino, estudante de medicina’’. Juscelino é um estudante pobre como um personagem de Dickens, diz a nossa voz íntima, em off, mas Sarah, que é de uma rica família, ainda assim por ele se apaixona, conforme a caracterização na tela. Sabem por quê? – Juscelino sabe dançar tango! Si, ele tem a elegância e os meneios de quadris que fazem elevar a posição, social. Claro, as coisas não se passam com esse nível esquemático, mas no espremer dos fatos e do saco têm sido assim. As casas que ensinam a bailar tango devem estar mui gratas e felizes por essa ficção. Pero nosotros, no. Acostumados que estávamos a ver nas pessoas, quando recriadas, algo parecido a uma formação, ao drama que há em qualquer um e um qualquer caráter, estranhamos declarações como “A vida de ninguém é tão interessante assim que não devêssemos romancear”, ou “O maior desafio é transformar momentos históricos da maior importância num produto altamente irresistível”. Pior do que estas declarações é o produto irresistível realizado. Porque esperávamos ver algo semelhante a um ex-presidente, à vida de um político, mas recebemos uma telenovela, um puxa-encolhe no pior sentido desse gênero folhetim. (“Frustração somente sua, meu caro”, devem estar dizendo autores e produção da minissérie, “trabalhamos para as massas do Brasil, não para os pretensos intelectuais”.) E por isso, pelos efeitos alcançados, a grossura avança. A política, numa vida de um político, entra na minissérie com efeitos absolutamente tragicômicos. Um casal tem a cena atravessada por soldados de fuzis em punho, mas não os vê, a nada vê, porque estão enamorados, porque estão a bailar ... um tango. Em um jantar, para o mesmo acontecimento, a revolução entra como uma linha rápida no diálogo, como um silvo de uma bomba, porque enquanto o pau canta lá fora, ao som dos tiros de 1930, declara-se à mesa, um pouco antes do licor: - Acabou-se a política do café-com-leite... Capítulo IV – O melhor de JK O melhor de JK nada tem a ver com JK. Não nos referimos à imagem do monumento construído por Niemeyer, bela como um símbolo de um artista eterno, não nos referimos à voz de Milton Nascimento, que é um convite ao repouso, à graça do espírito, não nos referimos por fim à criação de Hans Donner, na abertura, que retoma linhas e riscos de Niemeyer como um viva à inteligência. Isto, digamos, é exterior, é um secundário, uma vinheta na trama. Referimo-nos à história paralela de Licurgo, sua esposa Maria e o filho Zinque. Melhor dizendo, aqui não há uma história paralela, porque de JK perde a mais completa referência. É um conto, uma história independente, fora do espaço e da História. O resumo dos personagens, no http://jk.globo.com/Series/JK/0,,5085,00.html informa: “LICURGO: típico coronel do interior, autoritário, brutal, reacionário. Falso cristão, prega as leis da Igreja, mas vive de acordo com suas vontades. Freqüentador assíduo do cabaré de Olímpia. Não aceita que o filho siga a vida religiosa. ZINQUE: sofre com a violência do pai. Casa-se com Madalena e assume seu irmão Antenor como filho... seu grande sonho é seguir a vida religiosa, mas é impedido pelo pai. MARIA: mulher religiosa, calada, submissa, quase sem instrução, mas de boa índole. Sofre com os maus tratos do marido”. Um bom observador anotaria que esse resumo já traz em si o seu destino. Não por ser esquemático, em tintas grossas delineado, como todo e qualquer resumo. Mas por trazer uma pobreza de idéias de causar arrepios pelo uso dos adjetivos e do que seriam personagens-substantivos. Vejam: Licurgo prega as leis da Igreja, MAS vive de acordo com suas vontades – alguma contradição nessa hipocrisia? Zinque, por sua vez, gostaria de seguir uma carreira clerical, e esta é a sua virtude, que sofre sob a violência do pai. Por Deus beato! Maria, por fim, porque não concebe sem pecado, não faz por onde, que é afinal uma forma de não conceber. E mais: Maria é religiosa, calada, submissa, sem instrução, MAS de boa índole. Onde há contradição, para o adversativo mas, em não ter instrução e ser uma pessoa decente? No entanto, com todas essas limitações, temos aí, nessa história independente, o melhor da trama dramática de JK. Pela razão muito simples de nela haver conflito, tensão, que não se resolve, como se fosse um membro a latejar que jamais explode. As telenovelas, mais de um analista já disse, gostam aqui e ali de retomar um clássico, de se nutrir nas idéias dos clássicos, para lhes amesquinhar o sentido original e melhor diluir. O que em Os irmãos Karamázovi era um grito raivoso contra a depravação do velho pai, que é assassinado por fim, nesse sub-relato é a história da conformação do corno perfeito, do filho Zinque, casado com a mulher que é amante do pai, sob consentimento. Que oportunidade perdida nesse conflito entre um velho devasso e um filho virtuoso! Todas as vezes em que sai de cena esse núcleo, chegamos a ouvir um grito “corta!”, e vemos a montagem fria da edição, que volta para o nome e o tema de minissérie. Então aparece um Juscelino elegante, irresistível, galã, dançarino perfeito, a conquistar com os pés, como se fosse um jogador de futebol, o mundo e os corações. Bem que o escritor e jornalista Nei Duclós já nos havia avisado, em http://outubro.blogspot.com/ : “JK - Faça sucesso e depois conte como você foi pobre e conseguiu tudo à custa do esforço próprio. Não existe essa ilusão. Nenhuma carreira de sucesso está vinculada apenas às qualidades pessoais. É preciso ver o entorno.” Como pode um peixe vivo viver fora de água fria?, pergunta e canta Milton Nascimento na vinheta. Para esta minissérie, pode. Sem história, sem política, sem companhia, se ainda assim houver JK, JK é procurado.
https://www.alainet.org/pt/articulo/114084

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