Encontro revitaliza a Teologia da Libertação
22/01/2005
- Opinión
“A minha mensagem no Fórum Social Mundial é a de que os movimentos sociais no Brasil, de uma forma construtiva, têm de fazer pressão muito mais ativa sobre o governo”. O recado foi dado pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, em entrevista exclusiva ao jornal Brasil de Fato, em Porto Alegre, durante o I Fórum da Teologia da Libertação, que reuniu teólogos de todo o mundo. Boaventura, uma dos intelectuais engajados no processo de construção do Fórum Social Mundial, participou de uma conferência, com os religiosos, sobre os dilemas do movimento que se opõe à globalização neoliberal. Para o intelectual português, a Teologia da Libertação tem uma oportunidade de se revitalizar e participar da construção desse novo mundo possível.
Brasil de Fato - Qual a importância da realização desse Fórum de Teologia no contexto global de hoje?
Boaventura de Souza Santos — Creio que é um movimento importante porque reúne representantes de destaque dessa corrente que tomou uma decisão corajosa nos anos 60 de opção e compromisso pelos pobres, uma decisão extremamente controversa e que teve impacto enorme na América Latina. Essa corrente entrou em crise, naturalmente, com o atual Papa, foi obrigada fazer mudanças e também pelo modelo de desenvolvimento que acabou por se impor na América Latina. Porque a Teoria da Libertação estava de alguma maneira ligada às teorias de dependência e o pensamento social daquele tempo. A utilidade desse encontro, no meu entender, é vitalizar os princípios da Teologia da Libertação com uma visão mais ampla. Os problemas hoje são diferentes, as questões, os instrumentos mudaram, as formas de opressão são hoje muito mais variadas. Para a Teologia da Libertação, a forma de opressão era a questão de classe, os ricos e os pobres, os trabalhadores e os capitalistas, hoje já está posto que as mulheres, os negros e os indígenas também são oprimidos. Portanto, a Teologia tem de ampliar seu espectro e ser um pouco diversa para que todos esses grupos tenham sua própria teologia. Isso vai enriquecer esse pensamento da Teologia da Libertação.
BF — O senhor disse, aqui no Fórum, que a religião havia contribuído também para a monocultura do saber e, ao mesmo tempo, houve resistências internas a isso.
Boaventura — A expansão européia e o capitalismo europeu levaram para as Américas as verdades cristãs, e não a verdade da ciência, que veio depois. No século XVI, a verdade cristão se impõe em relação a todas e destrói as outras. Os missionários fizeram uma tentativa de abordagem, aprendendo as línguas locais, mas com um objetivo central: passar a imagem da verdade. Foi um grande agente da monocultura e praticou aquilo que chamo de epistemicídio. Mataram todos os espistêmios, todas os conhecimentos, idéias, culturas, que era consideradas idolátricas e deviam ser destruídas. Um processo de destruição cultural. Simplesmente desde o início os próprios missionários mantiveram uma certa distância. Vemos, por exemplo, no próprio padre Antonio Vieira aqui no Brasil uma ambigüidade e diferença em relação à expansão colonial. Portanto, há aqui umas sementes de resistência que ficaram dominadas durante muito tempo, mas que nos ajudam a explicar por que razão essa grande empresa dos serviços religiosos das Américas, uma das primeiras transnacionais da história, digamos assim, vai se transformar de pouco em pouco em um instrumento de resistência. Em um momento, a opção é ambígua, mas de certo altura esteve ao lado dos oprimidos. Portanto, foi um agente da monocultura, mas tem toda sua especialidade de ser também um agente de tecnologias do saber, de troca experiências de espiritualidades que estão sendo procuradas hoje.
BF — O senhor destacou o papel da teologia nos anos 60 e 70. Os teólogos optaram também por dialogar com o povo, viver ao seu lado e atuar junto, fazendo um trabalho de base. Hoje, mesmo nessa movimentação do Fórum, não há uma lacuna em relação a isso, ou seja, um distanciamento entre o discurso contra-hegemônico e a vida das pessoas pobres.
Boaventura — Penso que sim. Creio que os que mais precisam do Fórum Social Mundial não estão aqui, porque não tem dinheiro para vir, porque não podem se deslocar da África, por exemplo. Mesmo no Brasil, fizemos um estudo para ver quantos habitantes das favelas de Porto Alegre estavam no fórum, e não eram muitos. Esse é um problema realmente sério, atentar para o trabalho de base, um trabalho feito tal e qual a teologia da libertação executou pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). É certo que os pobres estão no fórum, por meio de seus representantes, propondo atividades. Mas é preciso voltar à base que, de certa maneira, não é mais base dos oprimidos, das ONGs e dos movimentos que são representantes e falam em seu nome, mas não são oprimidos. O risco disso é que essa globalização alternativa pode deixar de ser tão alternativa quanto gostaria de ser.
BF — O senhor também fala da necessidade de radicalizar a democracia. Qual o espaço disso em um mundo com um poder imperial cada vez mais vigoroso?
Boaventura — Por um lado, as forças conservadoras estão atuando no sentido de estreitar ainda mais os limites da democracia. A chamada “mãe das democracias”, a estadunidense, é uma democracia doente. Os estudantes de lá se mobilizam hoje para defender os votos contra a fraude eleitoral. Isso era um problema típico de terceiro mundo, mas agora está no primeiro. A democracia estadunidense está sendo minada por essa revolução da direita reacionária convervadora, que conta com o apoio dos poderes econômicos e de grupos religiosos. Por outro lado, há uma série de experiências importantes que vão em sentido oposto, como publiquei no livro “Democratizar a Democracia”. Um exemplo é o orçamento participativo e outras iniciativas que ampliam a participação dos cidadãos, aumentam a transparência do poder e obtêm distribuição social através de formas de democracia de alta intensidade a nível local. O que não foi possível, até o momento, foi ultrapassar essa escala. O próprio Brasil não foi capaz de levar. É um processo longo, mas temos de impulsionar para que ocorra em escala nacional. É uma luta entre os que querem estreitar a democracia e os que querem ampliá-la.
BF — Como as religiões poderiam atuar na construção desse outro mundo possível?
Boaventura — Se articulando. Nenhuma religião tem a receita da dignidade humana. Hoje, há uma forma de espiritualidade que não segue a ortodoxia e busca a experiência religiosa que mais se adapta. Por vezes, essa não é nem a de seu país, mas a de outros países. Temos de criar a teologia da tradução, que se assenta na idéia de que é possível criar pontes entre as diferentes tradições religiosas. Em vez de criarmos dogmatismos, temos de criar mecanismos de tradução que permitam mostrar que todas lutam, à sua maneira, por uma melhora e afirmação da dignidade humana.
BF — O senhor fez uma referência durante sua palestra que foi contra os textos de Antonio Negri, autor de O Império. Como o sr. vê a obra dele e também a de John Holloway, que nega o poder?
Boaventura — A resposta a essa pergunta seria longuíssima. Com respeito a Negri, o grande equívoco é pensar que as transformações do capitalismo criaram condições para uma luta generalizada contra o capitalismo, sobretudo através do trabalho intelectual. Isso eu não vejo na África, onde eu trabalho, tampouco na América Latina, então não consigo ver onde é que o capitalismo se tornou nesse aspecto vulnerável à resistência. Em segundo lugar, o conceito de multidão de Negri é inerte. O que Negri propõe não é uma luta das forças do imperialismo, mas contra o império. Mas como lutar contra o império, se não lutarmos contra os imperialistas? Dizer como Michar Hardt que não faz sentido hoje ser antinorte-americano porque o império não tem cabeça é algo ridículo, sobretudo depois do que está ocorrendo no Iraque. Dizer que o império não tem um hegemon é absolutamente incompreensível. Aliás, a grande suspeita desse livro é que é promovido pelas editoras estadunidenses, grandes empresas que publicam normalmente coisas que defendem o status quo. Com toda franqueza, não considero que seja um discurso muito sério e reflete o isolamento total que, hoje, os intelectuais têm em relação aos movimentos sociais. Se tivessem algum contato com os movimentos sociais, perceberiam que o grande problema que temos hoje é de articulação entre os distintos movimentos, que se fazem a partir de uma temática da diferença, e não de uma temática de conceitos homegeinizantes.
Quanto ao Holloway, é algo distinto, uma tese de um outro tipo, uma leitura polêmica dos utopistas e têm um erro, no meu entender, que é que uma luta política seja ela revolucionária ou seja reformista parte sempre dos termos do conflito que são definidos dos poderes dominantes. A luta se dá no modo como as classes tentam alterar os termos do conflito. Os operários, por exemplo, que eram inicialmente agredidos por serem uma classe perigosa, foram alterando isso mostrando que eram produtivos, compunham uma classe loboriosa e não queriam destruir nada, mas se organizar. É assim que se alteram os termos de um conflito na sociedade. Não se pode pensar que o poder não existe e que não lutamos contra ele. O que temos de lutar é pela transformação do poder. Entre tomar o poder a la Leinin e não considerar o poder, há uma terceira via que de que é preciso transformar o poder.
BF — No último fórum realizado no país, havia uma grande expectativa quanto às possibilidades da experiência de Lula no governo. O fórum volta dois anos depois. Qual é a sua especificidade, hoje?
Boaventura — O Fórum é algo mundial, não está sujeito às políticas internas de Porto Alegre ou do Brasil. É evidente que há uma desilusão em relação ao governo Lula, mas eu continuo a manifestar alguma solidariedade. Não sou daqueles que pensam que houve uma traição completa dos objetivos, penso que estamos no grau zero entre o medo e a esperança e há possibilidade de a esperança vencer o medo. É um processo político muito complicado e a minha mensagem no Fórum Social Mundial é que os movimentos sociais no Brasil, de uma forma construtiva, têm de fazer pressão muito mais ativa sobre o governo. Não podem deixar que seja apenas o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), os outros movimentos têm de fazer essa pressão. O governo está sendo muito pressionado pelas forças poderosas do mundo e do Brasil e é necessário uma pressão contrária.
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