Ler um vídeo (Sétima parte): sete dias em território zapatista

01/10/2004
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
Segunda-feira: no caracol de Morelia. Foi recebida a observadora F, e W que esteve aqui no caracol IV, informou que aprendeu muitas coisas durante os dias em que ficou por aqui e que vão lutar em seus países de origem, Itália e Espanha; levam a flor da palavra ao coletivo. Aqui no caracol IV, se reuniram 13 professores de diferentes municípios, onde estiveram praticando o ensino das consoantes: L - CH - J - B - K - N - R - W - X - Y. Foram estas as letras estudadas com motivação e através da apresentação de objetos naturais e artificiais, palavras ou enunciados para identificar as sílabas de cada letra e programaram uma reunião; ficou para os dias 20 e 21 no município Miguel Hidalgo. Três companheiros saíram em comissão rumo ao município Che Guevara para investigar os problemas que ocorreram no município mencionado em relação à semeadura de maconha, sim é possível que isso tenha acontecido no lugar dos fatos "X", dois companheiros foram detidos por esta provocação no presídio do município Che Guevara para pagar por seus erros. Os companheiros do operador de vídeo filmaram o que aconteceu, o vídeo será entregue à Junta. As autoridades deste município se responsabilizam a levantar uma ata de acerto com o detido e entregam uma cópia na Junta de Bom Governo; os detidos reconhecem os gastos da comissão da Junta em seiscentos Pesos. Recebemos o senhor I, da Argélia, que veio preparar a comida Cus-Cus, acompanhado por uma delegação do comitê de solidariedade da França. Terça-feira: no caracol de Roberto Barrios. Recebemos a irmã N, da Suíça, de uma organização Z, e entregou uma doação de 57 mil 790 Pesos para as comunidades necessitadas da Região Norte e a cada um dos 10 municípios coube a quantia de 6 mil 229. Se a conta não dá certo é porque somamos a isso o que foi dado por um irmão do DF e assim a conta dá certo. Reunião da comissão para tratar do logotipo do carro que foi chamado Milho resistente, em chol P'atal ba ixim e em tzeltal Tulan ixim. Os auxiliares de Semente do Sol entregaram dois dicionários, dois globos terrestres e um mundo com pedestal. Recebemos os irmãos do Japão da organização de solidariedade zapatista que quer trabalhar nos murais. Foi feita uma carta para a organização da Holanda sobre o projeto de nove farmácias, três casas de saúde, capacitação e uma ambulância. Quarta-feira: no caracol de La Garrucha. Apresentou-se o companheiro Benito do povoado "X" do município Francisco Gómez. Assunto: problema da lenha com a ARIC oficial. Por causa deste problema da lenha, as mulheres se enfrentaram na igreja, um homem da ARIC bateu numa mulher zapatista, também um companheiro de base se enfrentou com um tal de Artemio da ARIC oficial. Em meio a este pleito, uma mulher "prijista" tira a roupa diante de todos para ver se alguém a estupra. Isso não deu em maiores problemas e o companheiro Benito não esperou que seu dirigente se apresentasse à convocação do turno passado. Apresentaram-se o senhor B e o senhor A, de Ocosingo. Assunto: informar em relação ao táxi detido. O coordenador do transporte da região de Ocosingo disse que o táxi já pode ser resgatado desde que se assine um papel onde se diz que o táxi não é para o trabalho. A JBG enviou outro ofício ao coordenador e ao delegado do governo do estado para que libere imediatamente o táxi porque se não respeitam o trabalho honrado então as pessoas se tornam delinqüentes ou políticos, ou o povo pobre se juntará e se levantará em armas como os zapatistas em primeiro de janeiro de 94 e que respeitem então seu trabalho de taxista. Apresentaram-se na JBG pessoas da organização PRD de Ocosingo, para relatar o roubo de nove cavalos, quatro arreios e uma moto-serra. A JBG passou a investigação ao Município Autônomo Rebelde Zapatista Francisco Gómez, e quando encontraram os que haviam cometido o roubo, chamaram os donos para entregar a eles seus animais e suas coisas; não se aceitou o dinheiro que ofereciam por suas coisas, e aos que haviam roubado se disse que não voltassem a fazer isso porque podiam ir pra cadeia. Apresentou-se na JBG a senhora Transita, assunto de um problema de terreno com os companheiros bases de apoio de um bairro de Ocosingo, cuja superfície é de 8 por 15 em terra recuperada; a JBG pediu seus papéis do terreno, e respondeu que não tem nenhuma documentação como dona, a JBG investigou e resultou que este terreno havia sido vendido por alguém que tampouco era o dono e por isso os companheiros e o resto do bairro destruíram a casa, e ela entrou com quatro processos no Ministério Público, três são contra bases de apoio e um contra o delegado que não é companheiro; depois de várias negociações a JBG propôs devolver o terreno e os materiais se ela retirar as quatro demandas; suas coisas já foram devolvidas e ela não retirou uma das demandas, que é a do delegado que não é companheiro, porque anda falando mal dela, a JBG exige que se cumpra o acordo feito sem que nada tenha a ver o que o delegado fala ou deixa de falar. Espera-se ainda o cumprimento. Apresentaram-se as autoridades da organização "X" para resolver o problema de um estupro e de um enfrentamento que ocorreu por um problema de terra, e foram dadas três respostas com as quais eles, como autoridade, assinaram concordando: 1. As autoridades oficiais se ocuparão do problema do estupro; 2. Que os refugiados voltem a seus lugares de origem, e 3. Que haja um acerto pacífico para todos os problemas. De 21 casos, 16 estão resolvidos, quatro estão pendentes e um não foi resolvido. Quinta-feira: no caracol de Oventic. Chegou Ofélia com um doutor para ver se damos a permissão de mostrar uns fogões para que não se gaste lenha e lhe demos a permissão. Chegaram da revista Rebeldia e logo da FZLN para entregar o dinheiro da campanha que se chama "20 e 10, o fogo e a palavra" e que é para as Juntas de Bom Governo e foi enviado ao EZLN para que reparta o todo em cada Junta. Chegou também [alguém] dos Jovens da Resistência Alternativa do DF para a mesma razão. Avaliou-se o projeto da bloqueria de Polhó com os de Enlace. O município autônomo de San Andrés Sakamchén pede emprestados dez mil Pesos para consertar os carros da presidência. Os que ajudaram para as necessidades dos refugiados de Zinacantán, do CIEPAC, da DESMI, da Alemanha, Granada, Médicos do Mundo, Associação Civil Comunitária, dos jogadores da Itália da equipe que se chama Internazionale de Milano, dos Estados Unidos e de pessoas individuais, deu um total de 616 mil 302 Pesos e 26 centavos. Sexta-feira: no caracol de La Realidad. Uma senhora de Cidade El Carmen, Campeche, veio até nós para colocar um problema que ela tem com um senhor da cidade de Comitán: prometeram-lhe que iriam negociar pra ela um crédito hipotecário e como garantia entrega a documentação da sua casa ao banco. Acontece que os recursos não lhe foram entregues, e, em seguida, ela exigiu a documentação antes entregada ao banco, mas esta não lhe foi devolvida porque os recursos haviam chegado sim nas mãos do administrador, mas não nas dela. A JBG a orientou que era melhor procurar uma organização de defensores de direitos humanos porque se trata de uma violação de seus direitos, foram-lhes recomendados os Frayba, e até o momento não se sabe se ela foi ou não. Os solidários que construíram a turbina em La Realidad vieram ver como está funcionando e voltam com a fala da JBG. Chegaram solidários da Austrália, pediram para saber sobre a autonomia e o que é o mandar obedecendo; explicamos a eles com detalhes, se mostraram muito maravilhados e disseram que levariam a mensagem para divulgar em seu país. Vieram também da Argentina, França, Canadá e Polônia para receber a fala sobre a autonomia. Chegaram os do País Basco para ver os projetos que estão apoiando, voltam contentes porque vêem que o acordo está sendo cumprido. Chegaram estudantes da UNAM, da UPN e do Poli para falar e para que se explique para eles o que é o mandar obedecendo e a autonomia. Sábado: em algum povoado zapatista. Cheguei com Rolando para cumprimentar Dona Julia. Ela me leva pra ver a casa-sala-refeitorio-cozinha-quarto. Dá-me café, guineo. Conta-me de seus filhos, de seus netos, de seus bisnetos, de quando ficou frente a frente com os soldados e "Eu olhava direto no seu olho, assim, (e arqueia as sobrancelhas grisalhas) e dizia- lhe: 'vamos tire seu revólver e me dê um tiro, vamos', mas ele não sacou o revólver, do contrário não estaria aqui contando". Continua falando de quando seu filho se escondia para levar tostadas aos insurgentes na montanha, quando os povos se juntaram, quando se votou a guerra, quando foram todos para lutar na cidade, quando entrou na resistência, quando foram feitos os autônomos, quando os caracóis. Estava preste a tirar o cachimbo e o tabaco quando, de repente, ela pára e me pergunta: "Você vai falar isso ao Sup?". Viro-me para Ronaldo que alisa o bigode para dissimular a risada. Deixo o cachimbo e o tabaco na bolsa. "Sim", lhe digo. "Ah!, Pois, quando for vê-lo saúde-o para mim e lhe dê a minha benção, o condenado só deus sabe por onde anda porque já faz dias que não vem", diz e me dá algumas empadas "para o Sup". Despedimo-nos. Já no potreiro digo a Ronaldo: "Se continuar rindo desse jeito não vai voltar aqui de novo". "Com certeza vamos morrer os dois", diz ele rindo e indo à frente. Já a uma boa distância me grita: "Lembre-se de cumprimentar o Sup". Chegando na choça do comando me olho no espelhinho e digo e repito: "Nós de então já não somos os mesmos", e suspiro...que outra coisa poderia fazer? Domingo: em algum lugar das montanhas do sudeste mexicano. Madrugada. Topei com Moy que tampouco consegue dormir. Faz pouco tempo que a tropa foi descansar. Só se adivinha a sombra da sentinela. Falamos com Moy dos mortos, dos nossos mortos. Digo-lhe que qualquer um deles era melhor do que eu. Que agora o Eleazar se foi, que parecia que ia se safar e de repente morreu. Porque aqui a morte nunca chega devagarzinho, aparece sem mais nem menos, dando um pontapé, e simplesmente não se vê mais o seu passo e fica-se pensando que teria sido melhor se tivesse levado alguém e não ele, o morto. Eleazar era melhor do que eu, e Pedro, e Hugo, e Fredy, e Álvaro e todos os nomes que calo porque, por que herdar mortos? Eleazar, que está ainda na cama, queria ficar de pé e saudar militarmente, e pediu música pela manhã. Moy me diz que estou com o rosto molhado. Tiro as gotas com a mão e digo: "é a chuva". Moy acende um cigarro, eu o cachimbo. Lá em cima um céu, dolorido de tantas estrelas, não chora, simplesmente se olha no espelho moreno da lua. Certidão de autenticidade. Dito, visto e ouvido o anterior, no pleno uso das minhas faculdades mentais e mais ou menos das físicas, certifico que o que foi exposto neste vídeo "tão diferente", e o que tenho narrado a respeito dos povoados zapatistas é verdadeiro, possível de ser comprovado e, no caso, repreensível. O único aspecto que pode ser atribuído à fantasia ou à imaginação é o que se refere à existência daquele que escreve isso, pois é sabido que nós fantasmas não somos outra coisa que a mesma coisa até que, como disse não sei quem, morremos para viver. Dou fé. Vídeo projetado para toda a galáxia a partir do estado de Chiapas, no sudeste mexicano, no ano quarto do século vigésimo primeiro, a 20 do nascimento e a 10 do início, quando agosto sofre de languidez e o país que nos abraça sofre de esperança (porque, em geral, é Bush que faz sofrer o mundo). Nota: o presente vídeo não tem copyright e pode ser reproduzido total ou parcialmente onde lhe der vontade, quantas vezes e com quem quiser. Agora, se você lhe prestar atenção nele e trabalhar coerentemente, pois então pode ir parar na cadeia, mas isso não é por conta do distribuidor do vídeo que é, como já disse, o Sistema Zapatista de Televisão Intergaláctica. Valeu. Saúde e falta o que falta...para quando faz falta. (a continuar...) Das montanhas do Sudeste Mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos. México, agosto de 2004. 20 e 10.
https://www.alainet.org/pt/active/6874
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS