O fundamentalista
06/08/2004
- Opinión
Ele acredita que conhece a única verdade verdadeira. E repudia
quem não pensa como ele. Se pudesse, abriria a cabeça do próximo
para incutir-lhe as suas idéias e convicções, a sua ideologia ou
religião.
O fundamentalista é intolerante com os outros e tolerante
consigo mesmo. Ainda que se cale diante de uma opinião
divergente, está convencido de que só ele sabe o que é certo e o
que é errado. Julga que a sua moral tem valor universal, a sua
política é a mais justa, a sua crença é a resposta a todos os
mistérios.
Se suporta o contraditório é porque não dispõe de ferramentas de
poder para incutir seu ponto de vista em corações e mentes. Mas
dotado de poder, o fundamentalista mata em nome do pacifismo,
assassina para preservar a democracia, tortura em defesa da
liberdade.
O fundamentalista é um demente que chega ao extremo de proclamar
orgulhosamente sua sanidade mental. E acredita que seus inimigos
são desprovidos de razão. Só ele está certo. Em sua cabeça não
há lugar para a dúvida, a indagação, a autocrítica. Ainda que
educado, julga-se superior a seus interlocutores. E acredita que
a humanidade seria bem melhor se morressem todos que não pensam
como ele, sobrevivendo apenas quem coincide com a sua visão de
mundo.
O fundamentalista é, por natureza, um terrorista. Ainda que não
amarre bombas em seu corpo e nem faça explodir um prédio, jamais
admite que seus subalternos tenham opinião contrária, que a
mulher possa desdizê-lo, ou que um amigo queira desmenti-lo. Do
alto de seu belvedere, onde só há lugar para uma única pessoa –
ele -, o fundamentalista mira todas as coisas convencido de que
só os seus olhos enxergam a amplitude e a profundidade do real.
Ele não suporta a dialética. Maniqueísta, divide o mundo entre o
bem e o mal. Para ele, não há purgatório, só céu e inferno.
Sectário, não admite nuances, considerações, reticências.
Imprime à sua palavra peso definitivo. E, vencida a sua razão,
reage com emoção e ataca com violência quem ousa dele discordar.
Amós Oz, romancista israelense, define o fanático – sinônimo de
fundamentalista – como uma criatura bastante generosa,
altruísta, mais interessado no próximo do que em si mesmo, pois
insiste em salvar a nossa alma, libertar-nos do pecado, redimir-
nos, melhorar os nossos hábitos alimentares.
O fundamentalismo é a doença senil da infantilidade intelectual.
Seus argumentos são pueris e sua lógica, velhaca. Ele reduz a
pluralidade à estreita unicidade de sua ótica; impõe o monopólio
de sua tese; odeia a diversidade; faz da retórica uma arma para
destruir, não os argumentos alheios, mas a boa fama de quem não
se submete à opulência de sua verve. Está convencido de que
entre ele e Deus não há intermediários nem mediações.
O fundamentalista confunde o seu momento pessoal com o seu tempo
histórico. Acredita que séculos de dúvidas e indagações
convergem para o seu tempo presente, no qual ele porta a luz
capaz de provocar epifanias.
Ele não debate, vocifera; não propõe, determina; não discerne,
delimita; não opina, ajuíza; não sugere, ordena; não discorda,
censura; não advoga, condena.
O fundamentalista é, por natureza, ditatorial. Nada o incomoda
mais que a diversidade de idéias e a variedade de práticas. Sua
medida do mundo é ele mesmo, pois enxerga a realidade mais com o
próprio umbigo que com os olhos.
Irredutível em seu ponto de vista, não se dá conta de que tem a
vista amarrada a um ponto. Pensa que abarca todas as dimensões
do real. Adora sofismar, confunde o legal com o justo, irmana
pobreza e ignorância. Ele é vitima dessa alucinação persecutória
que identifica fantasmas ameaçadores em toda parte. É movido por
uma mórbida tendência à vingança. Seu único prazer é a dor de
seus desafetos.
O fundamentalista tem horror ao mistério e morre de medo de que
descubram as suas fraquezas. Individualista, só se junta a um
grupo se lhe dão o papel de mentor ou guru. Às comprovações
científicas que contrariam suas convicções, responde com
argumentos subjetivos. Enfim, é um chato, não de galocha, mas de
salto alto. E carece de senso de humor.
* Frei Betto é escritor e autor, em parceria com Luiz Fernando
Veríssimo e outros, de ³O Desafio Ético² (Garamond), entre
outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/110326
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