A ditadura do terror e do capital
24/03/2004
- Opinión
O golpe militar de 1964 não foi um raio em céu azul. Ao contrário,
foi longa e meticulosamente preparado. Um momento de fundação do
projeto ditatorial foi a organização da Escola Superior de Guerra,
ao final da segunda guerra mundial, quando os militares brasileiros
retornaram da Itália, embevecidos com o conceito norte-americano de
democracia e, no seu desdobramento, com a estratégia de "guerra
fria", de que a Doutrina de Segurança Nacional foi uma expressão
estratégica. Basta recordar-nos que Humberto Castelo Branco e
Golbery do Couto e Silva participaram daquela fundação.
Esse projeto foi sendo elaborado como linha de ação e foi acumulando
forças através de ações como as tentativas de golpe contra Getúlio
Vargas, do intento de impedir a posse de JK e das ações golpistas
contra este, da tentativa de impedir a posse de João Goulart na
renúncia de Jânio Quadros, até desembocar no sucesso do golpe
militar de 1964. Este freou um processo de expansão da democracia no
Brasil, articulando uma aliança entre o grande empresariado
nacional, as FFAA, a Igreja Católica, o governo dos EUA, as grandes
corporações multinacionais, grande mídia e setores da classe média,
para impor a militarização do Estado e da sociedade a serviço de um
projeto de acumulação de capital privado nacional e estrangeiro.
Foi o mais violento e cruel movimento político da história
brasileira, que prendeu, torturou, executou, exilou, cassou
parlamentares, juizes, professores – em suma, atacou sem
contemplação tudo o que lhe parecesse representar democracia e
movimento popular no Brasil. Teve o apoio e sua promoção feitos pela
grande mídia – com exceção da Última Hora, que pagou seu preço com
sua extinção – que passou a idéia – tão cara às manipulações da
guerra fria – de que o país se encontrava à beira de se tornar um
regime comunista no estilo daqueles do leste europeu e que apenas
uma intervenção militar apoiada por Washington poderia salvar-nos da
ditadura e da perda das liberdades. (Estas entendidas principalmente
como propriedade privada, escola privada, imprensa privada, etc.)
Em nome desse discurso instalou-se uma brutal ditadura militar, que
liquidou a democracia e a liberdade individual e coletiva, os
direitos sociais, econômicos e políticos, justamente para preservar
a propriedade privada dos grandes capitais, da grande mídia, das
escolas privadas, etc. ,etc. Fico patente como, mais uma vez, o
liberalismo na história brasileira era manipulado por ideologias
ditatoriais para obter seus fins e docilmente se acomodava a elas. A
alta oficialidade das FFAA se tornou a equipe dirigente do regime,
associada a economistas e juristas universitários que se prestavam a
servir a esse projeto antidemocrático e antinacional. Os militares,
que haviam inaugurado esse ciclo brutal na Argentina, com a queda de
Perón, haviam sido chamados, com razão, de "gorilas", e aqui foram
rebatizados por um deles, em um acesso de sinceridade, como "vacas
fardadas", prestando-se a servir aos interesses do grande capital
privado nacional e internacional, massacrando o povo, a democracia e
as instituições republicanas.
Alguns chegaram a prever que a perda da democracia levaria o Brasil
para o retrocesso econômico, até mesmo a voltar a ser um país
agrário. Não demorou muito para que ficasse evidente que, ao
contrário, o capitalismo brasileiro se expandiria mais com ditadura
do que com democracia. Porque o fortalecimento dos movimentos
sociais e forças políticas populares, ao democratizar o acesso ao
consumo e a extensão dos direitos sociais e políticos, se chocava
com um processo de acumulação de capital com vocação elitista,
especialmente desde que a instalação da indústria automobilística
estrangeira havia se instalado no país, uma década antes do golpe
militar.
Esta instalação tendia já a impor uma dinâmica de acumulação
centrada no consumo de luxo e a exportação, que viria a se
consolidar definitivamente com a ditadura militar. Esta contribuiu
para isso, não somente pela abertura indiscriminada ao capital
estrangeiro, mas também pelo achatamento do poder de compra do
mercado interno de consumo popular, pela política de arrocho
salarial e de degradação do poder aquisitivo dos empregados
públicos, além da extensão dos índices de desemprego.
Além disso, a ditadura militar promoveu a criminosa degradação dos
serviços públicos, particularmente os de educação e saúde. A escola
pública, até ali, era um espaço de presença comum e de aliança da
classe média e das classes pobres. A partir dessa degradação, a
classe média se bandeou, com enorme esforço, para a educação
particular, deixando a escola pública – que continua a abrigar a 90%
das nossas crianças e jovens – como um tema de pobre, sem
repercussão na opinião pública e na mídia, preocupadas com a
elevação das mensalidades das escolas particulares e não com a
qualidade do ensino público. Foi cometido um crime do ponto de vista
social, dos interesses públicos e dos projetos nacionais, sob a
égide da construção de um "Brasil grande", entendido como uma nação
subimperialista, exportadora e expansionista, mas miserável
internamente.
O golpe militar de 1964 e a ditadura militar que se seguiu durante
21 anos, representam assim um momento trágico na história
brasileira, que têm grandes responsabilidades por, apesar da
expansão econômica, ter acentuado a natureza de sociedade
profundamente desigual e excludente de direitos para a massa da
população brasileira. Todos os que foram responsáveis – de forma
ativa ou passiva – pelo movimento que derrubou um governo
legitimamente constituído, pela feroz repressão desencadeada e pela
ditadura militar que ensangüentou a democracia brasileira, assim
como os que obtiveram imensos lucros com tudo isso, deveriam ter
pago por seus crimes, deveriam pelo menos fazer autocrítica do que
fizeram ou deixaram que fosse feito com sua anuência.
De esquecimentos e perdões sem apurar responsabilidades, não se
constroem democracias e processos de emancipação. Constroem-se
pactos de elite, espúrios, tanto mais quanto mais excluem os povos,
seus representantes, sua cultura, suas expressões, seus heróis e
mártires. Não esquecer nunca tudo aquilo, 40 anos depois, para nunca
perdoar os que rifaram a democracia e massacraram o povo para fazer
valer os interesses dos grandes lucros privados e das estratégias
imperiais alheias aos interesses do Brasil.
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