Mudar para continuar o mesmo
19/06/2003
- Opinión
Durante a Eco-92 no Rio de Janeiro sob forte pressão de autoridades
do Vaticano presentes no evento tive que tomar, de imeditato, uma
decisão dolorosa, a de deixar o ministério sacerdotal e me auto-
promover ao estado de leigo. Não quis que um amigo soubesse da
decisão pela imprensa. Procurei-o no hotel onde estava hospedado e
lhe comuniquei pessoalmente o fato. Ele me olhou fundo nos olhos e
me fez esta pergunta: mas você continuará o mesmo com a opção pelos
pobres e por sua libertação? Respondi-lhe: sim, porque essa é uma
opção de vida. Então, respondeu: tudo bem, o melhor do cristianismo
está salvo. E me fez a seguinte observação: há momentos na vida em
que para continuarmos os mesmos temos que mudar. Você teve a coragem
de mudar, para continuar o mesmo de sempre.
Isso tudo foi-me dito pelo Comandante Fidel Castro Ruz. Essa frase
nunca me saiu da cabeça e me inspira até os dias de hoje. Escrevi na
época: troquei de trincheira mas não de luta; mudei de caminho mas
não de direção. E volta e meia, a frase sábia de Fidel Castro, me
vem à mente, a propósito das mudanças operadas no Presidente Lula e
a cobrança de coerência dos assim chamados "radicais" do PT.
O Presidente Lula mudou, como reconheceu, porque a vida mudou. Antes
estava na oposição agora está no poder central. E estar no poder
central implica cuidar do todo e não só da parte, inspirado nas
opções de base do partido e da coligão, atento sempre à realidade
concreta. E esta é complexa, contraditória e exposta aos
imponderáveis das políticas mundiais que não podem ser
desconsideradas se quisermos sobreviver. Governar num quadro assim é
mover-se numa realidade quântica, cheia de incertezas e
virtualidades que cobram capacidade de resposta a conjunturas novas
e flexibilidade para mudanças a fim de continuar na mesma direção, a
de resgatar o Brasil.
A questão toda se resume no que entendemos por coerência. Coerência
é a adequação entre teoria e prática, entre cabeça e mãos. Ocorre,
porém, que entre cabeça e mãos não há uma passagem direta. Ao
contrário, ambas, se encontram mergulhadas numa realidade complexa,
onde atores e fatores não são controláveis por minha cabeça. Eles
possuem sua lógica e força própria. Quem não os toma em conta,
encurta a realidade ao tamanho de sua cabeça. Isso faz o
fundamentalismo e todo o pensamento autoritário.
Importa introduzir uma mediação: o juizo prudencial e prático. Há
que se fazer as mudanças, guardando a coerência com a cabeça mas
considerando as forças em presença. A coerência dos "radicais"
esquece essas forças e busca a adequação imediata entre cabeça e
mãos. Vão ao confronto que pode bloquear tudo ou impôr pela força
seus propósitos. E ai adeus, democracia. Na seara, diz o Mestre, há
joio e trigo. O "radical" diz: arranquemos o joio, porque ele não
tem direito, não se importando se junto com ele se arranca também o
trigo. É uma coerência direta, fria e desastrosa. A outra coerência,
história e eficaz, diz: deixemos o joio e o trigo juntos, senão
arrancaremos o trigo. Nosso dever, entretanto, é distinguir o joio
do trigo, é denunciar o joio e reforçar o trigo. No momento oportuno
vamos separá-los, cada qual com seu destino próprio.
O Presidente Lula mudou para continuar o mesmo. Por isso, não trocou
de lado, apenas de trincheira na mesma luta.
* Leonardo Boff. Teólogo
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