Razões de outubro
18/11/2002
- Opinión
Por que, depois de 500 anos de poder elitista, desprezo ao povo,
arrogância aristocrática e perversidade social, o Brasil elege um
presidente filho do povo, retirante nordestino, operário metalúrgico,
líder sindical e militante de esquerda?
Lula foi eleito porque a esquerda está arrependida dos seus erros e a
direita envergonhada de seus êxitos. A esquerda se arrepende dos
equívocos que a fizeram perder o poder conquistado em alguns países,
como Chile; do poder mal administrado, como no Leste da Europa; e das
derrotas colecionadas em tantas tentativas frustradas de revoluções e
eleições.
A direita sente remorso de suas conquistas: um mundo rico e dividido
pelo apartheid econômico, degradado pela crise ecológica, que assiste
envergonhada ao genocídio na África, à pobreza nas esquinas de suas
cidades, à droga consumindo seus filhos; e que não consegue esconder
que a destruição do comunismo jogou a URSS no crime e na pobreza.
Lula chegou ao poder porque a direita brasileira perdeu a capacidade
de iludir os eleitores, e porque a esquerda soube corrigir suas
próprias ilusões.
Em 1822, a elite iludiu o povo prometendo a Independência com um
imperador filho do rei da metrópole. Fez a abolição da escravidão
sem dar escola nem terra, e a população negra agradeceu iludida. Um
ano depois, proclamou a República, substituindo os condes pelas
excelências, e a plebe pelo povão, mas o povo acreditou que estava
elegendo o "seu" presidente.
No século XX, a elite desenvolveu a economia prometendo enriquecer a
todos depois que o produto crescesse. A pobreza persistiu, mas o
povo esperava e agradecia migalhas. Recentemente, prometeu que a
abertura comercial e a privatização levariam todos os brasileiros ao
paraíso do consumo. E durante alguns anos os brasileiros continuaram
acreditando. Mas as ilusões acabaram. As mentiras da elite
construíram um monstro social e esgotaram seu baú de ilusões sociais.
A primeira causa da vitória de um metalúrgico de esquerda para a
Presidência decorre da incapacidade de a elite brasileira continuar
oferecendo ilusões ao povo brasileiro. Até o candidato da elite era
um militante com tradição de esquerda.
A segunda causa da vitória do Lula foi a reciclagem da esquerda.
Lula não teria sido eleito se, ao lado da falta de ilusórias
propostas da direita, o PT não fosse hoje um partido espalhado por
todo o pais, passando por experiências administrativas em governos
estaduais e municipais, um partido realista, com credibilidade. Lula
não ganharia se o discurso da esquerda continuasse prisioneiro de
suas próprias ilusões e preconceitos que levaram ao fracasso no
passado, em nome de utopias impossíveis.
O PT vitorioso representa hoje a continuação da tradição idealista do
passado, mas também uma ruptura olhando para o futuro do mundo real.
Mas, o fim das ilusões da direita e dos erros da esquerda não seria
suficiente para eleger um presidente se não tivéssemos um líder
carismático capaz de inspirar credibilidade e competência. Lula
passa estes sentimentos: o povo, inclusive a elite, o respeita e
confia nele.
Juntos, uma direita esgotada, uma esquerda renovada e um líder
preparado construíram as condições para que, pela primeira vez, o
Brasil tenha um presidente popular, com origem, cara e nome do povo,
com propostas voltadas para o povo.
Mas para que o Lula ganhou, se não vai fazer a revolução que a
esquerda tradicional defendia, nem tem o direito de apenas
administrar a crise como se fosse um recém-chegado membro da elite?
O Lula ganhou para inventar uma soberania compatível com a
globalização, para retomar o crescimento econômico e estabelecer
formas de distribuir a renda, recuperar a infra-estrutura. Ganhou
para quebrar o corporativismo e criar um sentimento comum de nação e
uma mística para nosso futuro. Ele ganhou, sobretudo, para completar
a Independência, a Republica, e realizar a verdadeira Abolição, a da
pobreza.
Lula ganhou para ser o presidente que fará a segunda e verdadeira
abolição. Tomando de imediato as medidas para garantir que, dentro
de poucos anos, o Brasil seja um país sem exclusão social, onde todos
tenham acesso aos bens e serviços essenciais. Lula foi o primeiro
presidente que, no dia de sua vitória, assumiu o compromisso com a
erradicação da fome no país: de comida, mas também de educação, de
cultura, de honestidade, de soberania, de moradia, atendimento de
saúde, equilíbrio ecológico, de auto-estima.
Para isso, ele tem de fazer com o nome Silva e as mãos do povo o que
uma princesa Bragança não fez: completar a abolição.
* Cristovam Buarque, Professor da UnB/CDS.
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