Cultura da paz e prevenção da violência
15/11/2002
- Opinión
É justamente no século que acabamos de deixar para trás e neste que agora iniciamos que a violência vem se apresentando em suas formas mais insidiosas, mais cínicas, num grau de refinamento que provavelmente supera em muito os períodos mais cruéis da história da humanidade. Genocídios e torturas "cientificamente" organizados; perseguições de todos os matizes; depurações raciais e "limpezas étnicas"; êxodo forçado de populações inteiras e grupos sociais indefesos; terrorismo em formas inumanas; segregação e/ou exclusão econômica, racial e religiosa; todos são comportamentos individuais e coletivos que traduzem nada mais, nada menos, do que o simples e cruel desejo de destruir o outro. E fazem tristemente parte de nosso cotidiano. Ainda estamos todos sob o impacto dos atentados contra as torres gêmeas de Nova York e o Pentágono, em Washington DC. Talvez a mais diabólica vitória da violência seja não deixar ninguém fora de seu envolvimento tentacular. Não podemos deixar de perceber, necessariamente, que estamos todos implicados. Somos todos vítimas de uma história patológica. E o segredo para que haja uma "cura" coletiva, um processo solidário de cura, é conscientizar-se desse processo e assumir que estamos todos doentes deste mal, ou pelo menos dele convalescendo. Reconhecer a carga de agressividade e violência que se encontra em todos e em cada um de nós é o único caminho possível para orientá-la em outra direção, tomar outro caminho e poder aproximar-se dos poderosos e violentos com atitudes e palavras que tenham a esperança de sensibilizá-los. É caminho para ver, também, que não se trata apenas de um problema pessoal, mas também e igualmente estrutural. Estruturas que significam condições de comércio totalmente erradas e injustas, desejo de hegemonia por parte de grandes potências, dissipação de riqueza na corrida armamentista e na exploração das nações pobres são um desafio à consciência da humanidade e uma chamada à responsabilidade de todos e de cada um. Caso voltemos nossas atenções para a sociedade brasileira em particular, veremos que nela a violência é um fenômeno onipresente. Entre nós, em nosso país, a violência manifesta-se praticamente em todas as suas formas, desde a mais banal como a agressão física, armada ou não, branda ou brutal, até às mais insidiosas como a segregação econômica e racial, passando por aquelas formas televisivas que não apenas manipulam as consciências, mas que também acabam por reproduzir e banalizar a violência instituída como expressão da nossa sociedade, fazendo com que ela deixe de ser um escândalo.moral e político para um número considerável de nossos concidadãos. A violência, portanto, para qualquer um no mundo de hoje e muito especialmente no Brasil e no Rio de Janeiro, está longe de ser um tema teórico. Pelo contrário, de uma maneira assustadoramente concreta, entra pelas casas e corpos, ameaça a vida em todas as suas dimensões e vai deixando, por onde passa, um rastro de morte e destruição. Atinge e implica todos os setores da vida, inclusive a religião. Um dos problemas maiores que se coloca para a humanidade neste início de século é a relação entre a religião e a violência. Todos os observadores dos fatos e grupos sociais o reconhecem. A violência cobre o planeta em muitos de seus pontos mais importantes, muitas vezes relacionada de perto com a religião e seus fanatismos e subprodutos, tais como os fundamentalismos de toda espécie, as guerras santas, as "limpezas étnicas" e outros. As análises feitas sobre este fenômeno, no entanto, permanecem, na maior parte das vezes, na superfície das coisas. Não retêm nada além da emergência sempre mais forte dos "integrismos" de toda espécie, focalizando suas reflexões preferentemente sobre o fundamentalismo muçulmano. É o que se está vendo a cada dia na mídia a respeito dos recentes atentados. Ora, parece-nos que a questão é na verdade muito mais ampla e profunda. Não atinge apenas os integrismos, mas muitas das próprias práticas religiosas e as religiões mesmas, inclusive as grandes religiões do Ocidente e as religiões monoteístas. E isto em termos de compreensão e de prática. A questão da violência e do mal - e, por contraste, também da não- violência - está, portanto, no centro da reflexão hodierna sobre a religião e o fenômeno religioso. Por isto, parece-nos que igualmente e não menos tem que estar no centro do pensamento teológico cristão ocidental, através do qual se procuraria e poderia trazer iluminações verdadeiramente primordiais e - ousaríamos dizer - definitivas - para todo o pensamento ético e religioso que se elabora em torno a esta questão neste final de século. Por outro lado, é importante situar a violência no horizonte que lhe é próprio, ou seja: para além dos limites do que é lógico e pensável, no campo do irracional e, por isto mesmo, do perturbador. Neste sentido, o tema da violência faz fronteira com algo que também é impensável racional e filosoficamente. Algo que, portanto, também e igualmente, releva do ilógico e do perturbador: o amor, o desejo, a bondade, a fé, a comunicação com Deus. Buscar os caminhos para uma prevenção fecunda e pacífica da violência parece-nos a única saída para construir uma cultura de paz. É por isso que todas as iniciativas nesse sentido devem ser apoiadas e incentivadas, a fim de que o mundo que vamos legar aos nossos filhos e netos seja ainda digno de ser habitado pelos seres humanos, criaturas de Deus. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga
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