O sindicalismo diante do risco-Alca
29/09/2002
- Opinión
O sindicalismo brasileiro, mesmo sem ainda ter apostado todas as fichas na
luta estratégica contra a Alca, acabou se engajando na reta final da
preparação do plebiscito da Semana da Pátria. O êxito desta consulta, que
superou as expectativas mais otimistas, contou com a adesão de várias
entidades sindicais. A CUT, a maior central do país, fixou a meta de 3
milhões de votos; a CGT aprovou um duro manifesto contra esta armadilha dos
EUA; a CAT também protestou. A avaliação desta jornada nacional ainda será
feita, mas já há consenso de que o plebiscito foi um evento histórico – com a
coleta de mais de 10 milhões de votos.
O engajamento do movimento sindical é plenamente justificado. Afinal, a Alca
só trará prejuízos para os trabalhadores. Vingando as regras do falso "livre
comércio", com a extinção das medidas de proteção às economias locais, as
poderosas corporações empresariais abocanharão de vez os mercados do
continente. Os resultados serão negativos em todos os sentidos. Por um lado,
resultarão na quebradeira dos parques produtivos nacionais, gerando
desemprego e queda de salários. Por outro, multinacionais até poderão se
deslocar para a região, mas às custas de mão-de-obra barata, sem qualquer
amparo trabalhista e sindical.
Além da regressão social, a Alca também restringirá ainda mais os espaços
democráticos no já autoritário capitalismo. Vingará, de fato, a ditadura das
mega-corporações – o fascismo do mercado, segundo a brilhante síntese do
pensador português Boaventura Santos. Além de liberalizar o comércio, os
negociadores deste tratado pretendem conceder aos oligopólios o mesmo
estatuto jurídico dos Estados. As multinacionais passariam a ter poder para
questionar todas as regras existentes em qualquer país do continente, desde
as leis trabalhistas até as normas de proteção ambiental, passando pelo
direito de greve e manifestações.
A força das corporações seria tão colossal que até setores burgueses estão
assustados. O insuspeito jornal O Estado de S.Paulo, após ter acesso ao
relatório de 42 páginas do grupo de negociação em investimentos da Alca,
concluiu: "As multinacionais terão poder para processar os governos e cobrar
indenizações até se tiverem algum tipo de prejuízo em conseqüência de
manifestações de rua". A tendência natural é que os sindicatos,
independentemente da visão política, tenham enormes dificuldades para atuar
em defesa das suas bases. A perda de representatividade e do poder de pressão
do sindicalismo é uma premissa da Alca!
AMBIENTE ANTI-SINDICAL
A constatação de que os sindicatos serão violentamente afetados com a
implantação da Alca é feita pela própria Ciosl (Confederação Internacional
das Organizações Sindicais Livres), a maior central mundial da atualidade,
conhecida por sua postura moderada, de viés social-democrata. Apesar de não
ser formalmente contrária às chamadas "áreas de livre comércio", ela teme
pelo pior. O seu prognóstico tem como base as sombrias experiências das zonas
francas de fabricação e, principalmente, as trágicas conseqüências do Nafta,
o acordo econômico englobando EUA, Canadá e México que vigora desde 1º de
janeiro de 1994.
Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho, de 2001, há no
mundo 836 zonas francas (350 na América do Norte, 225 na Ásia, 133 na América
Latina e Caribe, 81 na Europa e 47 na África). Nas empresas nelas instaladas
trabalham mais de 27 milhões de trabalhadores, na sua maioria mulheres. A
dura realidade do trabalho nestas áreas é chocante. Algumas multinacionais
até geram empregos, mas geralmente de péssima qualidade. Além dos incentivos
fiscais, os governos atraem as inversões externas arrochando os
trabalhadores. "São comuns violações de direitos trabalhistas e sindicais",
garante a OIT.
"As empresas se instalam nas zonas francas não só porque podem aproveitar a
infra-estrutura adequada, as isenções fiscais e alfandegárias e os baixos
salários, senão também porque podem gozar do ambiente anti-sindical que lhes
permite reduzir seus custos de produção e multiplicar seus lucros", afirma o
livrete "O inferno dos novos paraísos fiscais", publicado pela Ciosl em 1996.
Ele cita o editorial de uma revista empresarial, a Business Índia, que
recomenda os investimentos nas zonas francas porque "a maioria dos
trabalhadores não está organizada, um fator que ajuda a empresa a ser
competitiva em nível internacional".
O documento também denuncia vários governos que divulgam folhetos
promocionais sobre as vantagens destes "paraísos", destacando que são "union-
free" – livres de sindicatos. Numa conferência empresarial em Miami, o
representante do Panamá distribuiu prospecto ressaltando os limites às
atividades sindicais em seu país. Já o de Honduras enfatizou a existência de
sindicatos "domesticados" nas suas zonas francas. Muitos empresários
mencionam a não aplicação das leis trabalhistas e sindicais nestas áreas como
motivo de estímulo à inversão estrangeira. Sem meias-palavras, informam que
as empresas usam "listas negras" para afastar "agitadores" e que exigem
"certificado de boa conduta" para contratar novos trabalhadores.
REPRESSÃO ENDÊMICA
Para a Ciosl, a violência anti-sindical que impera nas zonas francas tenderia
a ser reproduzida e ampliada nas "áreas de livre comércio". A prova mais
contundente disto é o Nafta. Em seus "informes anuais sobre violação dos
direitos sindicais", a Ciosl sempre menciona os casos de agressão ao
sindicalismo resultante deste acordo. No mais recente, de 2002, ela dedica
especial atenção às indústrias instaladas no México, as famigeradas
maquiladoras. Antes do Nafta, existiam 789 maquilas nesta zona fronteiriça,
que possui 3 mil quilômetros de distância e mais de 12 milhões de habitantes
espalhados em 22 cidades "gêmeas" – como Tijuana, San Diego, Ciudad Juarez e
El Paso. Na época, elas empregavam 211 mil mexicanos.
Hoje já são quase 4 mil maquiladoras, empregando cerca de 1,3 milhão de
trabalhadores na fronteira. A invasão das multinacionais se deu por razões
óbvias: proximidade com o maior mercado de consumo do planeta; custo de
fabricação que representa de 10 a 30% dos preços norte-americanos; redução
dos cargos de direção, já que o mesmo executivo administra a fábrica de ambos
os lados; elevada produtividade dos mexicanos; baixos salários;
disponibilidade de terrenos industriais com toda infra-estrutura; isenção de
impostos diretos e indiretos; e supressão de barreiras alfandegárias. Segundo
recente pesquisa, as empresas também citaram a legislação ambiental como um
dos motivos para se transferir dos EUA.
Além disso, as corporações se aproveitaram da inexistência de tradição de
luta e de sindicatos na região, rotulada de "union-free". Até o final da
década passada, cerca de 90% dos trabalhadores da fronteira não possuíam
representação sindical. O restante era afiliado à Confederação dos
Trabalhadores do México (CTM), conhecida por sua histórica burocratização,
intensos laços com empresários e famosos episódios de corrupção. Para atrair
o capital externo, o governo suaviza a aplicação das leis trabalhistas
vigentes no país. Os poucos fiscais do Ministério do Trabalho geralmente são
proibidos de ingressar nas fábricas.
A própria legislação sindical mexicana, adaptada às regras da OIT, até hoje é
desrespeitada na fronteira. Esta não requer autorização para a criação de
sindicatos, mas impõe a sua homologação pelas Juntas de Conciliação e
Arbitragem (JCA) – compostas por governo, empresários e trabalhadores. Sem o
registro o sindicato não pode convocar greves ou participar de negociações.
Com a invasão das mega-empresas, a JCA tornou-se um instrumento patronal para
inviabilizar a criação de entidades autônomas. "As maquilas são hostis aos
sindicatos", garante a Ciosl. Só há pouco tempo foi conquistado, após anos de
luta, o primeiro sindicato numa maquiladora do México - na fábrica Kuk-Dong,
que produz roupas para a Nike.
O direito de greve também é reconhecido no México, mas com restrições. Para
deflagrar uma paralisação, o sindicato deve emitir um comunicado com cinco
dias de antecedência e a JCA tem poder para declarar a greve ilegal. Neste
caso, o trabalhador deve retornar ao trabalho em 24 horas sob pena de
demissão. Já os servidores públicos só podem convocar greves quando
comprovada a "violação sistemática dos direitos estabelecidos na
Constituição". Para isso, devem contar com o apoio de dois terços dos
funcionários em assembléia. A mesma lei permite ao governo requisitar
trabalhadores em casos de "emergência nacional". Desde a implantação do
Nafta, cresceram os obstáculos legais e ilegais para a deflagração de greves.
Segundo a Ciosl, os métodos usados pelas maquilas contra o sindicalismo são
variados e cruéis. "A JCA pode demorar ou inclusive não conceder
reconhecimento a um sindicato, especialmente se este for hostil à política do
governo, às empresas influentes ou aos sindicatos controlados pelos
empresários". É comum maquiladoras organizarem sindicatos fantoches, que "não
são conhecidos pelos trabalhadores da fábrica, não promovem reuniões, não
realizam eleições e nem participam de negociações". Estes são amparados pelos
"contratos de proteção", nos quais as empresas pagam uma soma mensal. "Em
troca, eles garantem a paz social. Também circulam "listas negras" com o nome
das lideranças sindicais", denuncia o informe.
Com a eleição do ex-executivo da Coca-Cola, Vicente Fox, para a presidência
da República, houve uma reviravolta política no México – com o fim de 60 anos
no poder do PRI. O sindicalismo, na maior parte burocratizado e corrompido,
viu-se diante de novas ameaças. Em maio de 2001, o Banco Mundial sugeriu ao
governo uma política trabalhista mais "flexível". A proposta incluía a
eliminação da regulamentação vigente sobre negociação coletiva, do pagamento
de indenizações e da contribuição das empresas para a seguridade social. O
presidente Fox também apresentou recentemente projeto de lei limitando o
direito de greve, proibindo as paralisações de solidariedade e reduzindo a
duração da greve para 30 dias.
Toda esta violência contra a organização classista visa perpetuar os abusos
das maquiladoras. Estudos indicam que na região fronteiriça os trabalhadores
recebem menos de 6 dólares por dia numa jornada de 10 a 12 horas. A
rotatividade no emprego é elevada; somente 40% dos 1,3 milhões de operários
ficam no emprego por mais de três meses. "Horas extras não remuneradas,
assédio sexual, discriminação no emprego, condições de saúde e segurança
inexistentes e demissões injustificadas são alguns exemplos da sorte diária
dos trabalhadores das maquilas", afirma a Ciosl.
EPISÓDIOS DEPRIMENTES
Segundo informe anual da Ciosl, 9.800 têxteis da Kuk-Dong, de propriedade
coreana, entraram em greve em janeiro de 2001 para exigir o direito de formar
um sindicato. "Os operários, alguns de apenas 15 anos, trabalhavam 50 horas
semanais por 30 dólares; eram proibidos de deixar a fábrica nas pausas do
almoço e muitos ficaram doentes após comer no refeitório interno". Os
grevistas ocuparam a fábrica por três dias, mas foram desalojados com
violência pela polícia – 15 foram hospitalizados. Devido à greve, a empresa
cedeu. Mas logo depois do retorno ao trabalho, demitiu os líderes grevistas –
sem direito a indenização. Após intensa campanha de solidariedade
internacional, inclusive com a recusa dos universitários norte-americanos de
consumir roupas da Nike, a maquiladora foi obrigada a reconhecer o sindicato.
Outro caso conhecido foi o da Duro-Bag, empresa têxtil de origem norte-
americana. Há anos os operários lutam pelo reconhecimento do seu sindicato.
Em 2000, eles entraram em greve e vários foram presos, acusados de
participarem de "bandos criminosos". No mesmo ano, a casa de Eliud Almaguer,
líder do movimento, foi incendiada. A Duro-Bag também organizou uma entidade
fantoche. "Subitamente, apareceu um sindicato amarelo para evitar o
independente", diz o informe de 2001. No plebiscito na fábrica para definir
qual entidade representaria os trabalhadores, toda a chefia foi postada nas
urnas exigindo a declaração de voto. Apenas três operários tiveram coragem de
declarar o seu apoio à entidade autônoma – e logo foram demitidos.
O informe de 2001 menciona uma fábrica de frutas em conserva situada em
Guanajuato, que demitiu 158 operários que paralisaram o trabalho em julho de
2000. Ela ameaçou fechar a planta da empresa e exigiu que os trabalhadores
assinassem um documento desistindo das suas reivindicações. Já o informe de
2002 denuncia que a Volkswagen conseguiu que a JCA declarasse ilegal uma
greve na sua planta em Puebla. Há também o caso da empresa de plásticos
Bajacal, de capital norte-americano, que firmou um acordo com uma entidade
fantasma para evitar a formação de um sindicato independente.
Estes são apenas alguns casos que comprovam que "a discriminação sindical é
endêmica às maquiladoras. A livre exploração da mão-de-obra é inclusive uma
condição prévia para a sua implantação. As práticas ilegais citadas com maior
freqüência são: demissão de representantes dos trabalhadores; 'listas negras'
com nomes que circulam entre as empresas; intimidações, humilhações e
violências tanto das empresas como dos poderes públicos contra os
sindicalistas e contra os que os apóiam; proibição e repressão às greves;
ameaça de fechamento de fábricas em caso de conflito e de transferência
intempestiva caso a mesma perdure; criação de 'sindicatos de empresa'",
concluí a preocupada Ciosl.
* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da
revista Debate Sindical e organizador do livro "Para entender e combater a
Alca" (Editora Anita Garibaldi, 2002).
https://www.alainet.org/pt/articulo/106439
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