ALCA: um passo rumo ao subdesenvolvimento.

27/07/2002
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Noite de terça-feira. Os olhos ensaiam preguiçosos os primeiros cochilos. Desligada a televisão, as mãos abrem vagarosamente os lençóis entre os quais o corpo espera ansioso o caloroso abraço da cama. Atraída pelo travesseiro, a cabeça se afasta do mundo e o coração torce para que o novo dia seja melhor do que acaba de findar. O silêncio e a escuridão se apoderam da casa. Estou começando a mergulhar no aconchego da noite quando o telefone interrompe bruscamente esta gostosa sensação de sossego. Alimentadas pela vontade de amaldiçoar a criatura que está do outro lado da linha, as pernas me levam para a sala enquanto os olhos registram a posição dos ponteiros: meia-noite. Desajeitada, a mão segura o fone enquanto dos lábios saem palavras que mais se parecem com estranhos murmúrios. Mas todo este esforço tem o silêncio como resposta. - "Você tem três segundos para se manifestar!", afirmo num tom que mistura raiva e curiosidade. "Um... dois... e... e... trrrr..." - "Surpresa! Sabe quem é?", responde uma voz conhecida, mas ainda não identificada. E continua: "Vou dar uma dica: enxergo de noite aquilo que você não vê de dia; portanto sou..." - "Nádia, pelo amor de Deus, você sabe que horas são?!?". - "Sim, querido secretário, é meia-noite. A melhor hora para uma coruja acordar quem dorme no ponto e espera inutilmente que o mundo se torne melhor com o simples amanhecer do dia". - "Eu só não vou xingar você porque..." - "Porque sabe que estou certa! Vocês humanos são criaturas estranhas: sonham até de olhos abertos, mas, na maioria das vezes, não dão um passo para realizá- los", responde seca Nádia tirando o meu rebolado. - "Bom, mas, pelo menos, você poderia respeitar o meu cansaço", retruco na tentativa de romper o instante de pesado silêncio que se estabelece entre nós. - "Pois fique sabendo que só liguei para tratar de um assunto tão grave a ponto de esquecer dele e tão urgente que você já deveria estar com papel e caneta na mão. Estou voando há dias nos céus do Brasil e o que os meus olhos andaram penetrando não é nada animador. Por isso, antes de pegar carona num navio rumo ao Oriente Médio resolvi ligar para que você escreva o que eu vi a respeito da ALCA". - "A respeito do que? Da ALCA? Mas que diabo é isso?", pergunto nervoso ao pensar que minhas horas de sono, pelo jeito, vão ficar bem menores. - "Desça das nuvens, meu bípede sonolento, estou falando da Área de Livre Comércio das Américas. Trata-se de um acordo comercial promovido pelos Estados Unidos e do qual deveriam participar todos os países de norte a sul do continente americano, com exceção de Cuba", retruca a coruja com voz pausada e impaciente. - "Não sei porque você ficou tão preocupada com esta história. Eu ouvi dizer que com essa tal de ALCA as coisas vão melhorar. Parece que, ao tirar as barreiras que hoje são um obstáculo à liberdade de comércio e aos investimentos entre os países das Américas, a economia vai crescer. Isso significa que vamos ter mais empregos e que a vida vai melhorar", respondo na tentativa de mostrar que andei folhando os jornais da semana. Mas as minhas palavras são cortadas por uma sonora gargalhada seguida do que parece ser um tombo. - "Caí sentada de tanto rir!", diz Nádia sem conseguir se conter. "Você é mesmo uma piada. Mas não se preocupe, isso sempre acontece com quem lê uma notícia aqui e outra aí sem ver o que se esconde nas entrelinhas. Acha que sabe tudo e acaba repetindo os discursos dos poderosos". Vermelho de raiva e de vergonha, pego papel e caneta esperando pacientemente que a minha interlocutora se recomponha. - "Pois bem, meu humano de óculos, está na hora de você limpar as lentes e abrir os olhos para a realidade. Vou reconstruir através da história as relações que ligam o Brasil ao primeiro mundo. Assim, você mesmo verá que tenho boas razões para estar preocupada. Pra começar você precisa saber que Portugal, como as demais nações européias, iniciou as grandes viagens marítimas não para fazer com que os povos conhecessem o que tinha de melhor, e sim porque a escassez de matérias-primas e de metais preciosos na Europa reduzia e colocava obstáculos à expansão de suas rotas comerciais. Ao ampliar os seus domínios, a coroa portuguesa esperava encontrar grandes jazidas de ouro e prata para multiplicar as riquezas da corte, impulsionar o comércio, aumentar o poder de suas forças armadas e, com elas, garantir o controle de novos mercados rumo à acumulação de riquezas ainda maiores". - "Isso significa que os portugueses não vieram aqui para construir, e sim para saquear?", pergunto para demonstrar que estou acompanhando a narração da história. - "Exatamente! Eles eram como raposas que procuram novos galinheiros para engordar e progredir às custas das galinhas. E é justamente a pilhagem das riquezas que vai definir a relação com o Brasil ao longo dos séculos. Mas, ao chegar em nossas terras, Portugal ficou decepcionado: por aqui não havia nenhum sinal das fabulosas minas de ouro e prata encontradas pelos espanhóis em outros países. A única riqueza visível e abundante era o pau- brasil, conhecido na Europa porque de sua madeira vermelha se extraía um corante usado, sobretudo, para tingir os tecidos. O trabalho de cortar as árvores, limpá-las e levar as toras até o navio era feito pelos índios em troca de pedaços de pano colorido, espelhos, facas, canivetes e outras bugigangas. Paca facilitar o serviço, às vezes, os indígenas recebiam também serras e machados. Com base neste tipo de troca, os lucros das companhias de navegação portuguesas eram enormes. Mas havia um problema: outras nações européias estavam de olho no Brasil, não só em função da extração da madeira, como pelas possíveis riquezas a serem descobertas. Diante da urgência da coroa portuguesa garantir a posse dos territórios do "novo mundo", era necessário criar uma base econômica que fosse além da extração predatória do pau-brasil. Em outras palavras, tratava-se de implementar uma atividade mais rentável, capaz de atrair os súditos da coroa e proporcionar bons lucros à mesma. O tipo de terra, o clima quente e o altíssimo preço do açúcar na Europa fizeram da cana a cultura ideal a ser plantada em solo brasileiro. Para ser lucrativo, o canavial devia ocupar amplas extensões de terra e uma grande quantidade de força de trabalho. Diante das dificuldades de trazer colonos portugueses e da resistência dos índios, os dominadores lançavam mão do trabalho escravo. Os negros africanos eram trazidos em condições desumanas e sua venda no Brasil ampliava ainda mais os ganhos obtidos com o seu "livre comércio" em vários países do continente americano. - "Quer dizer, então, que nesta época não se plantava nada além de cana-de- açúcar?". - "Não é bem assim. A cana era a cultura principal, mas encontramos também pequenas lavouras de mandioca, milho, arroz, feijão e tabaco que visavam garantir a sobrevivência de senhores e escravos. O plantio do algodão ganhava um pouco mais de destaque na medida em que fornecia a matéria-prima para a confecção dos sacos nos quais era transportado o açúcar e dos panos rudimentares usados pelos escravos. Devido à importância do boi como animal de tração em alguns engenhos e para o transporte da produção até os portos, começavam a nascer as primeiras fazendas de criação de gado. Nelas não havia escravos e sim índios, mestiços, criminosos portugueses que escapavam da justiça, escravos em fuga e aventureiros de toda ordem. Com a expansão da cana-de-açúcar, a criação de gado era empurrada cada vez mais para o interior onde o desenvolvimento dos rebanhos implicava em derrubar a mata para garantir as pastagens. No futuro, estas seriam transformadas em canaviais cuja localização se afastava do litoral na medida em que o solo se tornava pobre e improdutivo. Entre os resultados desta fase da exploração do nosso país estavam a concentração de grandes extensões de terras em poucas mãos e o progressivo esgotamento de uma ampla faixa de território fértil inicialmente coberto por matas tropicais que iam da Bahia ao Ceará. Mas para os portugueses este rastro de destruição não passava de um mero detalhe cujas dimensões aumentavam com a expansão dos canaviais". - "Mas, Nádia, eu já ouvi dizer que o Brasil chegou mesmo a exportar ouro para a Europa. Como é que você ainda não falou disso?". - "Simplesmente porque você fica me interrompendo a toda hora", retruca a coruja em tom de reprovação. E continua: "Você precisa saber que foi ao expandir a colonização rumo ao interior e ao explorar novas regiões, através das ações perversas dos bandeirantes e dos caçadores de escravos, que se chegou à descoberta do urucu, do cacau, do guaraná, da borracha, bem como das primeiras jazidas de ouro nas terras que hoje pertencem aos esta€äæ€xä
https://www.alainet.org/pt/articulo/106338

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