Algodões entre a cruz e a espada

05/01/2002
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Diálogos na sombra - bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura, de Kenneth P. Serbin, é uma obra imprescindível para se compreender melhor a recente história do Brasil, em especial os 21 anos de regime militar. Baseado em documentos inéditos, como os arquivos do general Antônio Carlos da Silva Muricy, e entrevistas com protagonistas, o autor descreve a série de diálogos secretos entre oficiais das Forças Armadas e bispos da Igreja católica, entre 1970 e 1974. A mediação deu-se graças ao empenho de dois leigos, os professores Candido Mendes, da Comissão Pontifícia de Justiça e Paz, e Tarcísio Padilha, da Escola Superior de Guerra. Consentida pelo general Médici, a Comissão Bipartite constituía-se do Grupo da Situação, liderado pelo general Muricy, e o Grupo Religioso, cuja liderança se dividia entre os bispos e primos Aloísio Lorscheider e Ivo Lorscheiter, e dom Eugênio Sales, arcebispo do Rio. Como fórum de diálogo em torno da conjuntura nacional, a Bipartite evitou o choque frontal e, talvez, a ruptura entre as duas instituições mais sólidas do país: a Igreja católica e o Exército. Kenneth P. Serbin demonstra, com riqueza de fatos e documentos, como os dois grupos souberam valer-se do esprit de corps para perseguir seus próprios interesses. Os militares tentaram, em vão, neutralizar a ação da Igreja em prol dos direitos humanos e cooptar os bispos para a sua cruzada anticomunista. Fraudando a confiança de seus interlocutores, permitiram inclusive que os órgãos de segurança gravassem as reuniões. Os representantes da Igreja buscaram, num primeiro momento, defender membros da instituição eclesiástica da sanha repressiva. Logo, passaram à defesa de todos aqueles que eram atingidos pelo terror de Estado. Talvez não tenham livrado muitos prisioneiros da tortura e da morte, mas com certeza evitaram que a ferocidade da ditadura se agravasse ainda mais. Por que o sigilo das conversações? Capitaneados pelo general Muricy, os militares não queriam que a iniciativa abortasse sob pressão da linha-dura, que repudiava o diálogo com a Igreja, considerada por ela um joguete do movimento comunista internacional. O livro retrata a ambigüidade do general Muricy que, de um lado, reafirmava sua fidelidade à Igreja, como católico que era; de outro, lavava as mãos diante de violações dos direitos humanos relatadas pelos bispos, sob o pretexto de que a cúpula militar perdera o controle do que se passava nos porões da ditadura, onde o pau corria solto. Em raras ocasiões o general interveio em favor das vítimas. Os bispos concordaram com o sigilo das conversações, temendo que gestões tão delicadas viessem a ser frustradas pela publicidade, além de contarem com a desconfiança de alguns de seus pares, como dom Pedro Casaldáliga, vítima da repressão. O autor revela, inclusive, que dom Luciano Cabral Duarte, arcebispo de Aracaju, era informante das Forças Armadas (p. 280). Merece destaque, na exaustiva pesquisa de Kenneth P. Serbin, o resgate de dom Eugênio Sales que, ao contrário das aparências, foi tão combativo na defesa dos direitos humanos e das vítimas da ditadura quanto dom Paulo Evaristo Arns em São Paulo, embora preferisse uma atuação mais discreta. E, pela primeira vez, o público tem a oportunidade de tomar conhecimento dos detalhes do escabroso caso de Barra Mansa, onde quatro soldados, em janeiro de 1972, foram torturados até a morte por oficiais do Exército. Os criminosos foram condenados em janeiro de 1973. Como sublinha o autor, esse foi o único julgamento e a única condenação de torturadores entre 1964 e o anúncio da anistia de 1979 (p. 379). Diálogo nas sombras joga ainda mais luz sobre as atrocidades perpetradas pelo regime militar devido à supressão da democracia em nosso país. Para nós, brasileiros, conhecer a própria história graças ao esforço de mais um brasilianista norte-americano é, no mínimo, constrangedor, pois deixa no ar uma indagação: o que fazem as nossas universidades e centros de pesquisa? Por que produzem tão escassa bibliografia sobre os anos de chumbo? Talvez, quando todos os protagonistas e testemunhas estiverem mortos, a universidade brasileira venha a se debruçar sobre o tema com o mesmo empenho com que, hoje, se dedica à escravatura. Mas terá de pagar vergonhoso tributo à excelência de trabalhos estrangeiros, como esta obra de Kenneth P. Serbin.
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