Teologia e trabalho: relação a construir
01/05/2013
- Opinión
A teologia cristã tem uma relação complexa com o trabalho e um entendimento ambíguo deste. Por um lado, o apóstolo Paulo afirma que cada pessoa tem de trabalhar, pois "quem não trabalha não tem o direito de comer". O livro do Gênesis, que relata a Criação feita por Deus do mundo e do cosmo, afirma que o trabalho encontra sua fonte no próprio Deus que trabalhou para criar o mundo. E aqui o judaísmo se diferenciava do pensamento greco-romano, para o qual o trabalho "braçal" era indigno dos cidadãos, devendo ser feito apenas pelos escravos. Por outro lado, o trabalho está colocado debaixo de maldição desde a "Queda" de Adão e Eva - trabalho do homem com suor e canseira; trabalho de parto da mulher com dores e suores. É o castigo pelo pecado original e, portanto, tem muito mais uma dimensão de pena do que de prazer.
O Novo Testamento confirma a visão da necessidade do trabalho que Paulo ratifica com palavras do próprio Jesus: “Meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho”. Afinal, de que trabalho se trata, este que o próprio Deus não cessa de executar, e que seu Filho, encarnado e andando pelo mundo, também exerce continuamente? Pode tratar-se de um castigo algo que o próprio Criador executa sem cessar, ao preço de afadigar-se divinamente? Pode ser apenas suplício e dor, algo que o Filho contempla como sendo a atividade constante de seu amado Pai?
Neste Dia do Trabalho, vale meditar em algumas implicações da fé cristã para uma teologia do trabalho. Sobretudo em tempos onde a presença de um trabalho enobrecedor e criativo corre o risco de desaparecer, engolido por um ativismo febricitante e louco, onde o emprego tomou o lugar do trabalho e é exercido apenas para sobreviver, enriquecer e consumir, sem nenhuma conotação de criatividade, gozo ou transcendência. Há pessoas que são empurradas a executar um trabalho que as embrutece porque senão morrem de fome. E há outras que trabalham cada dia mais para poder acumular os bens sem os quais creem não poder viver. O fim de umas e outras é uma morte prematura, seja por infarto, hipertensão ou depressão e suicídio.
A filósofa francesa Simone Weil experimentou na carne as agruras do trabalho operário em fábricas da primeira metade do século XX. Ali sentiu que à medida que passava os dias em frente das máquinas, os pensamentos iam fugindo e escapando de sua mente. As cadências das máquinas e o ritmo da produção eram muito rápidos. Simone havia sido sempre lenta para os trabalhos manuais e não estava habituada a agir sem pensar. Ela fazia a triste descoberta de que a sociedade moderna se edifica sobre trabalhos para os quais o ser humano deve obrigar-se a não pensar. E constatou que se não houvesse o repouso hebdomadário, que fazia com que as ideias voltassem a circular em sua cabeça, ela estaria logo convertida em uma besta de carga.
No entanto, experimentava igualmente que em meio à dureza do trabalho tão pesado para ela que jamais exercera um trabalho manual aconteciam lampejos de solidariedade fraternal que a consolavam. Cada vez que sentia na pele a mordida da queimadura do forno, o soldador que se encontrava à sua frente lhe dirigia “um sorriso triste, cheio de simpatia fraterna”, que lhe fazia “um bem indizível”. E quando, depois de uma hora e meia, o calor, a fadiga e a dor a faziam perder o controle dos movimentos, impedindo-a de baixar a tampa do forno, um metalúrgico se precipitava e baixava-o para ela. Isso a inundava de gratidão e reconforto.
E Simone então reflete sobre esta dupla face do trabalho, de embrutecimento, mas igualmente do exercício da solidariedade. Ela diz que mesmo sofrendo tudo isso, está feliz ali onde está. Declara: “Tenho o sentimento, sobretudo, de haver escapado de um mundo de abstrações e de me encontrar entre os homens reais – bons ou maus, mas de uma bondade ou de uma maldade verdadeiras. A bondade em uma fábrica é qualquer coisa de real quando ela existe; pois o mínimo ato de benevolência... exige que se triunfe da fadiga, da obsessão do salário.”
Quando Simone Weil saiu da fábrica, após um ano de trabalho, sentia que sua juventude havia ficado para trás e ela se encontrava marcada pelo ferro em brasa da escravidão. Escravidão essa que, segundo ela, é “o trabalho sem luz de eternidade, sem poesia e sem religião.” Todo trabalho, para ser criativo e realizador, deve ser ungido por essa transcendência que nos diz que não somos animais nem bestas de carga, mas participantes ativos no trabalho do Criador, que jamais abandona a obra de suas mãos.
Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (www.users.rdc.puc-rio.br/ágape )
Copyright 2013 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)
O Novo Testamento confirma a visão da necessidade do trabalho que Paulo ratifica com palavras do próprio Jesus: “Meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho”. Afinal, de que trabalho se trata, este que o próprio Deus não cessa de executar, e que seu Filho, encarnado e andando pelo mundo, também exerce continuamente? Pode tratar-se de um castigo algo que o próprio Criador executa sem cessar, ao preço de afadigar-se divinamente? Pode ser apenas suplício e dor, algo que o Filho contempla como sendo a atividade constante de seu amado Pai?
Neste Dia do Trabalho, vale meditar em algumas implicações da fé cristã para uma teologia do trabalho. Sobretudo em tempos onde a presença de um trabalho enobrecedor e criativo corre o risco de desaparecer, engolido por um ativismo febricitante e louco, onde o emprego tomou o lugar do trabalho e é exercido apenas para sobreviver, enriquecer e consumir, sem nenhuma conotação de criatividade, gozo ou transcendência. Há pessoas que são empurradas a executar um trabalho que as embrutece porque senão morrem de fome. E há outras que trabalham cada dia mais para poder acumular os bens sem os quais creem não poder viver. O fim de umas e outras é uma morte prematura, seja por infarto, hipertensão ou depressão e suicídio.
A filósofa francesa Simone Weil experimentou na carne as agruras do trabalho operário em fábricas da primeira metade do século XX. Ali sentiu que à medida que passava os dias em frente das máquinas, os pensamentos iam fugindo e escapando de sua mente. As cadências das máquinas e o ritmo da produção eram muito rápidos. Simone havia sido sempre lenta para os trabalhos manuais e não estava habituada a agir sem pensar. Ela fazia a triste descoberta de que a sociedade moderna se edifica sobre trabalhos para os quais o ser humano deve obrigar-se a não pensar. E constatou que se não houvesse o repouso hebdomadário, que fazia com que as ideias voltassem a circular em sua cabeça, ela estaria logo convertida em uma besta de carga.
No entanto, experimentava igualmente que em meio à dureza do trabalho tão pesado para ela que jamais exercera um trabalho manual aconteciam lampejos de solidariedade fraternal que a consolavam. Cada vez que sentia na pele a mordida da queimadura do forno, o soldador que se encontrava à sua frente lhe dirigia “um sorriso triste, cheio de simpatia fraterna”, que lhe fazia “um bem indizível”. E quando, depois de uma hora e meia, o calor, a fadiga e a dor a faziam perder o controle dos movimentos, impedindo-a de baixar a tampa do forno, um metalúrgico se precipitava e baixava-o para ela. Isso a inundava de gratidão e reconforto.
E Simone então reflete sobre esta dupla face do trabalho, de embrutecimento, mas igualmente do exercício da solidariedade. Ela diz que mesmo sofrendo tudo isso, está feliz ali onde está. Declara: “Tenho o sentimento, sobretudo, de haver escapado de um mundo de abstrações e de me encontrar entre os homens reais – bons ou maus, mas de uma bondade ou de uma maldade verdadeiras. A bondade em uma fábrica é qualquer coisa de real quando ela existe; pois o mínimo ato de benevolência... exige que se triunfe da fadiga, da obsessão do salário.”
Quando Simone Weil saiu da fábrica, após um ano de trabalho, sentia que sua juventude havia ficado para trás e ela se encontrava marcada pelo ferro em brasa da escravidão. Escravidão essa que, segundo ela, é “o trabalho sem luz de eternidade, sem poesia e sem religião.” Todo trabalho, para ser criativo e realizador, deve ser ungido por essa transcendência que nos diz que não somos animais nem bestas de carga, mas participantes ativos no trabalho do Criador, que jamais abandona a obra de suas mãos.
Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (www.users.rdc.puc-rio.br/ágape )
Copyright 2013 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)
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