Guerra na Ucrânia

A velha e nova abordagem midiática da guerra

A mídia empresarial foi proativa ou calou-se diante de ações da Otan contra países do terceiro mundo. Legitimou golpes de Estado sob o véu institucional na América Latina.

03/03/2022
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Foto: @sikk
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Nesses dias, a ordem dos fatores tem alterado o produto. É o que se verifica com a cobertura midiática em meio à guerra entre Rússia contra Ucrânia/Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

 

A linguagem da mídia empresarial fica evidente, como se ação da Rússia fosse fundante e inicial do conflito, o que é no mínimo, uma análise incompleta. Uma ação anunciada há décadas e defensiva por parte do governo russo foi transformada num início desproposital de conflito.

 

Essa abordagem midiática nos lembra das críticas de José Arbex Jr, presentes no livro Showrnalismo (Editora Casa Amarela, 2001), quando o jornalista falou, ainda na primeira guerra do Iraque (1991), da “desmemória” gerada pela mídia internacional, usando como um dos exemplos a cobertura da CNN Internacional, hoje presente e atuante também no Brasil.

 

O que, naquele episódio, e também agora, se resumia a: excesso de informações fragmentadas, ausência de contexto e histórico. Acrescento também: narrativa imediata e dramática, dialogando com o senso comum, aparente e imediato, em um tema de fato trágico que é a guerra.

 

No entanto, essas ferramentas narrativas justificam hoje os objetivos dos EUA/Otan. Sabe-se que, com o fim da União Soviética, os EUA se comprometeram a evitar o avanço da Otan em direção ao Leste. Esse pacto verbal vem sendo descumprido desde os anos 2000. Desde então, a Otan, enquanto aliança militar, expandiu-se de 16 para 30 países desde o fim da antiga União Soviética, passando a cercar o território russo.

 

Essas questões são desconsideradas, ou então marginalizadas na análise, por justamente terem como ponto de partida a visão da Otan como uma instituição saudável. Não interessa analisar a fundo sua expansão e ação nesses 20 anos, nem a ascensão da extrema-direita desde 2004 na Ucrânia, tampouco um governo ucraniano que, desde 2014, ataca regiões e a população pan-russa, nada disso integra o quadro de análise do conflito.

 

Não olhe pra Otan

 

A guerra é transformada em um espetáculo.

 

Chega a soar como ridícula a manchete repetida à exaustão: de que ucranianos são incentivados pelo governo a usar coquetéis molotov, com ares de heroísmo, contra a principal potência nuclear do planeta

 

Essa cobertura pró-heroísmo ocorreu no mesmo momento em que há uma possibilidade de negociação entre as partes.

 

Neste caso, a ênfase da mídia deveria ter sido focar na pauta e na saída por meio de negociação, o respeito da Otan aos acordos da década de 90, deixando de cercar a Rússia, e o respeito à determinação dos povos pan-russos, que não podem ficar à mercê de uma guerra ilusória para saciar potências capitalistas em crise, como é o caso dos EUA.

 

Nesse período, a CNN, embora reivindique um jornalismo de “fato”, chegou a repercutir como análise real a frase hiperbólica do presidente dos EUA, Biden, sobre o governo Putin querer reavivar a União Soviética.

 

Isso sem contar o olhar seletivo, a narrativa de que se trataria do primeiro conflito desde a segunda guerra mundial, o que ignora, de forma racista inclusive, as guerras descentralizadas e encampadas pela Otan na África, Oriente Médio e América Latina.

 

Estamos, com isso, falando das invasões ao Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, ataques contra o Iêmen, incursões à Somália e Sudão, ataque contra funcionário do governo do Irã, e incentivo a golpes de Estado em Honduras, Paraguai, Brasil, Nicarágua, Venezuela e Bolívia, o que faz pensar não apenas na seletividade, mas no ocultamento de um processo histórico e articulado.  

 

Expansão para o Leste: objetivo histórico e estratégico na região não dominada pelo “Ocidente”

 

Traduzido e publicado em 2018 no Brasil, o livro do jornalista estadunidense/russo, Andrew Korybko, “Guerras Híbridas”, entre várias repercussões, e também limites, como o de transpor o conceito de guerras híbridas para qualquer realidade, no entanto aborda um ponto importante, que é a compreensão da Eurásia como um vasto território, desde o início do século vinte inacessível para uma invasão e controle via frota naval, e para o qual só resta aos EUA a alternativa da desestabilização nos territórios fronteiriços à Rússia.

 

Historicamente, o Leste Europeu é alvo de disputas por tentativa de domínio. Esse foi o objetivo, por exemplo, de Hitler, se tomamos como fonte de análise a obra de Domenico Losurdo, “Guerra e Revolução”. Nela, o autor italiano aborda o fato de que a ascensão do nazismo teve como fator central a aplicação do que foi o colonialismo e o expansionismo do Capital (característicos do império britânico e do recente imperialismo estadunidense), aplicado na tentativa de controle do Leste Europeu e na tentativa de aniquilação da revolução russa. 

 

Hoje, o presidente russo, Vladimir Putin é sustentado pela classe capitalista russa. Não se trata de um dirigente de esquerda, mas de um governo que buscou reverter o processo de submissão neoliberal pelo qual a Rússia passou desde os anos 90, recorrendo ao imaginário do nacionalismo e da antiga Rússia, imaginário que o escritor Isaac Deutcher já havia qualificado como conservador, porque também foi usado ao longo do período de Stálin no poder, ao final da segunda guerra.  

 

No entanto, o próprio Putin, em entrevista exibida no canal 24 Росси (Rússia 24 horas) afirmou que as potências capitalistas pós queda do Muro de Berlim poderiam ter visto a Rússia como um aliado, mas nunca o fizeram. Isso acontece devidos aos interesses econômicos em jogo e pela expansão ao Leste como objetivo estratégico que não se encerrou, como foi colocado acima. E também, pela manutenção da unipolaridade e domínio dos EUA. Nesse sentido, a aliança da Rússia com a China e o fortalecimento econômico na Eurásia são inaceitáveis para a Otan.

 

Quem assistiu, neste final de semana, a entrevista do presidente da Otan, Jens Stoltenberg, verifica que não há intenção de recuo por parte dessa Aliança. Mas de seguir usando a Ucrânia como cabeça de ponte para fornecimento de capitais, armamentos, gerando desgaste no governo russo.

 

Instabilidade na fronteira russa e no cenário mundial

 

Desde a crise do petróleo de 1973, é fato que, como ressalta o economista francês François Chesnais, as economias não conseguiram uma acumulação de capital comparada ao período 1945 – 1973.

 

Na impossibilidade, até então, de guerras generalizadas, conflitos localizados foram sustentados pelo governo dos EUA, no marco da construção de sua hegemonia após a queda do muro de Berlim.

 

A instabilidade econômica e, consequentemente, as ações militares, têm sido a marca desse período pós 1973, ainda que descentralizadas, o que leva a questionar novamente o discurso midiático de suposta paz e estabilidade mundial até então.

 

Fato é que agora se aprofunda um conflito de proporções incalculáveis, em torno de um território estratégico para as potências centrais, conflito adormecido desde a segunda guerra mundial.

 

A mídia empresarial foi proativa ou calou-se diante de ações da Otan contra países do terceiro mundo. Legitimou golpes de Estado sob o véu institucional na América Latina.

 

E, agora, fala duro e de forma militante, basta assistir aos apresentadores/as da CNN Brasil gritando pela retaliação à Rússia, o que, na prática, significa a continuidade da guerra, ao invés de um balanço equilibrado de quais pautas estão em jogo.

 

Me parece que o atual crime é incentivar o lançamento de uma população e trabalhadores a uma guerra com molotovs, por interesses que desconhecem.

 


Referências bibliográficas:

  • ARBEX, José. Showrnalismo, a notícia como espetáculo – editora Casa Amarela, 2001.
  • CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. Xamã, 1996.
  • DEUTSCHER, Isaac. Stalin. Uma Biografia Política.
  • HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da Estética da Mercadoria. Unesp, 1997.
  • KORYBKO, Andrew. Guerras Híbridas. Editora Expressão Popular, 2018.
  • LOSURDO, Domenico. “Guerra e Revolução – O mundo após o outubro de 1917”, Boitempo, 2017.
  • SECCO, Lincon. As Guerras Mundiais (ensaio de interpretação histórica). Lutas anticapital, 2020.

 

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